Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

América Latina: onde a discriminação contra as mulheres também não é uma exceção

Tal como temos visto por meio da imprensa mainstream, a condição da mulher afegã está no centro das preocupações do Ocidente e do Extremo-Ocidente. O Extremo Ocidente, especificamente a América Latina, têm posado como modelo que contrasta consideravelmente com a realidade afegã. Se pode dizer o mesmo, em relação à América do Norte e a Europa.

Não discutiremos aqui a natureza da ligação entre a intervenção armada ocidental em Cabul e a situação da mulher afegã, o que teria sido feito, segundo o jargão intervencionista, com vistas a uma “mudança de regime”. Também não trataremos da primazia concedida a essa questão quando da retirada militar dos ocidentais, tal como presenciamos na mídia, das terras afegãs. O que faremos aqui é apresentar alguns senões em relação a outro espaço, não concernente àqueles em que foi preciso empreender uma “mudança de regime”. Trataremos especificamente da situação latino-americana, contexto mais conhecido pelo autor deste artigo.

A ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, latino-americana, atualmente Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 24 de agosto de 2021, estabeleceu de maneira firme o arcabouço ético do que poderia legitimar uma nova intervenção no Afeganistão: a forma como as mulheres e meninas neste país serão tratadas, ela afirmou, constituirá a linha vermelha. A ultrapassagem desse limite por parte do Talebã terá como resposta uma ação unida e inequívoca dos Estados-membros da ONU, de modo a reiterar que um retorno à práticas discriminatórias e que ferem os Direitos Humanos não será aceito pela Comunidade Internacional.

No entanto, a dita “Comunidade Internacional” não tem quaisquer reservas particulares em relação às formas discriminatórias de que são vítimas as mulheres latino-americanas, como, em primeiro lugar, o seu direito à vida, o que é constantemente negado pela violência masculina.

O Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe (OIG-CEPAL) relatou o assassinato de 3.529 mulheres em 2018. As taxas de assassinatos mais elevadas são registradas em El Salvador (6,8/100.000 mulheres) e em Honduras (5,1/100.000 mulheres). Em números absolutos, o Brasil e o México lideram o ranking com 1.206 e 898 feminicídios, respectivamente. O diário peruano La Republica noticiou em 3 de dezembro de 2019 que uma mulher é assassinada no Peru a cada 48 horas. Em 2019, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (CEPAL) emitiu um alerta: 12 feminicídios são registrados todos os dias na América Latina, que, segundo a CEPAL, seria a região do mundo com as mais altas taxas de violência contra as mulheres do mundo. De fato, dos 25 países do mundo com as taxas mais elevadas, 13 encontram-se na América Latina e no Caribe.

O direito sobre seus próprios corpos ainda não é universalmente aceito, e de diversas formas negado às mulheres no Ocidente. O aborto é condenado por lei em Honduras, em Nicarágua e em El Salvador. Na Argentina, no Uruguai e na Cidade do México, o aborto foi descriminalizado. Os outros países só o permitem em circunstâncias excepcionais: o perigo de vida da mãe, a não-viabilidade do feto ou no caso de gravidez resultante de estupro ou incesto. As leis relacionadas aos códigos de família, de acordo com um estudo conjunto da ONU Mulheres e da Secretaria Geral Ibero-americana, indicam que em vários países as mulheres não usufruem de direitos iguais aos dos homens. Por exemplo, na maioria dos países, a idade mínima para o casamento é bem menor para as jovens, exceto na Argentina, no Chile, no Equador e em El Salvador.

Em outras áreas, particularmente no acesso à propriedade e ao crédito, existem provas de discriminação indireta. Embora inclusiva, a lei é de fato de difícil aplicação. Apenas 30% das mulheres são proprietárias de terras agrícolas. Além disso, há enormes diferenças entre os países em relação a esse dado: por exemplo, apenas 8% delas são proprietárias de terra na Guatemala e 30% no Panamá. As mesmas observações podem ser feitas em relação à presença de mulheres no mercado de trabalho. Antes do coronavírus, 56% das mulheres tinham um emprego remunerado, em comparação com 85% dos homens.

Este contexto de desigualdade foi ampliado pela pandemia de Covid-19. De acordo com a CEPAL, a participação das mulheres no mercado de trabalho foi reduzida para 46% em 2020. Essa redução percentualmente equivale ao dobro da redução sofrida pelos homens. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) estimou que 13,1 milhões de mulheres latino-americanas perderam os seus empregos até 2020. A queda é ainda maior para as mulheres negras. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de mulheres negras desempregadas atingiu 18,2% em 2020. O fenômeno tem sido tão violento que uma economista argentina, Candelária Botto, o descreveu como a “feminilização da pobreza” [1]. Além disso, a pobreza tem sido agravada pela violência. O ISP (Instituto de Segurança Pública) do Rio de Janeiro registou 250 casos de violência contra as mulheres durante o período de distanciamento social entre 13 de Março e 31 de Dezembro de 2020 [2]. Essa constatação se assemelha àquela obtida no Equador, na província de Azuay, pelo SIS (Serviço de Segurança Integral) [3].

Conclusão: estamos muito longe de uma situação decente de garantia de direitos às mulheres mesmo no melhor dos mundos do Extremo-Ocidente, ainda que na América Latina a vida cotidiana das mulheres não seja tão incerta como a das mulheres no Afeganistão, como agora em setembro de 2021. Os coletivos de mulheres na Argentina, na Colômbia e no México estão conseguindo forçar os governos a respeitar suas exigências. Em fevereiro de 2020, o ex-presidente equatoriano Lenin Moreno pediu desculpa por um comentário inapropriado sobre assédio. Ele havia dito que as mulheres só denunciavam um transgressor quando este era “um homem feio”. Quase um ano depois, AMLO, Andrés Manuel Lopez Obrador, o atual presidente do México, depois de denunciar a ala política da Direita estava usando o feminismo contra ele, foi obrigado a esclarecer, em 8 de março de 2021, que não tinha “nada contra o feminismo […], e que o que ele condenava era antes a “corrupção e a manipulação” da causa.

Texto publicado originalmente em francês, em 2 de setembro de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Amérique latine: la discrimination des femmes n’y fait pas exception”. Disponível em: https://www.iris-france.org/159926-amerique-latine-la-discrimination-des-femmes-ny-fait-pas-exception/. Tradução: Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Maísa Ramos Pereira. Revisão de Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.

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Notas

[1] Publicado em Âmbito financeiro, 7 de março de 2021.

[2] Publicado no Jornal do Brasil, 8 de março de 2021.

[3] Publicado em El Mercurio de Cuenca, 8 de março de 2021.