Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa e a democracia

No dia 28 de outubro, a convite da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), proferi a conferência de abertura do XXVI Encontro Nacional dos Procuradores da República, em Natal, no Rio Grande do Norte. O tema em questão, as relações entre a liberdade de imprensa e a democracia, tem despertado cada vez mais atenção das autoridades e da cidadania, o que é muito positivo. Em função desse interesse crescente, tomo a liberdade de, nesta semana, usar o meu espaço nesteObservatório para publicar em primeira mão, aqui, a íntegra da minha mensagem aos procuradores da República.

O texto que segue não é a transcrição exata da conferência, que não se limitou à leitura do discurso original previamente escrito. Em algumas passagens, afastei-me do roteiro inicial e, de improviso, aprofundei-me em alguns conceitos. Após o evento, retrabalhei o discurso que tinha preparado e, a ele, incorporei os comentários espontâneos que desenvolvi durante a fala. Assim, embora não seja uma transcrição literal, o presente texto reflete com fidelidade a conferência que apresentei.

Antes de tudo, devo expressar meu agradecimento pelo convite que me foi dirigido pela ANPR. Comparecer, hoje, na condição de conferencista, a esta solenidade, é uma honra de grande relevo para mim, para a minha escola (ECA-USP) e para a minha profissão. Bem sei que, num momento em que o Ministério Público se mobiliza para aprofundar sua vocação democrática, fortalecendo a sua independência, é mais do que natural que ele busque um diálogo com a instituição da imprensa: é também um sinal de grandeza e de sabedoria. Com efeito, há mais proximidades que distanciamentos entre a natureza do Ministério Público e a natureza da imprensa – e todas essas analogias e proximidades nos levam a radicalizar a experiência democrática, assegurando as liberdades e as condições para fiscalizarmos o poder com mais eficiência, contribuindo assim para revitalizar e civilizar o próprio exercício do poder.

Esta cerimônia acontece num período em que sinais preocupantes se insinuam no horizonte. A isso não podemos fechar os nossos olhos. Seria omissão. Tem crescido em nosso meio, lamentavelmente, um discurso que vê com antipatia, no mínimo, o papel fiscalizador dos órgãos jornalísticos. É o caso de perguntar: se aos repórteres não mais caberia a função de examinar e investigar com rigor a conduta dos homens públicos, quem então deveria arcar com essa responsabilidade indispensável à vida democrática?

Ainda segundo o mesmo discurso, já existiriam, no âmbito do Estado, organismos encarregados de promover as fiscalizações necessárias. Eles seriam o Ministério Público, os Tribunais de Contas, as Comissões Parlamentares de Inquérito, o próprio Poder Judiciário. Aí, no entanto, surge um segundo desvio, que transmite perplexidade à cidadania: o mesmo discurso que pretende afastar os jornalistas de qualquer investigação, conforme se ouve das mais altas esferas da República, passa então a argumentar que as autoridades incumbidas de verificar a legalidade dos atos da gestão pública não podem atrasar obras e retardar o andamento da administração. Em resumo: conforme temos ouvido, somos obrigados a concluir que a fiscalização do poder não deveria ficar a cargo imprensa – e, mesmo nos órgãos constitucionalmente encarregados de fiscalizar governos, essa atividade jamais deveria acarretar interrupções de obras, mesmo quando falamos de obras suspeitas ou manifestamente ilegais.

De fato, é necessário e mesmo obrigatório que nos preocupemos com o crescimento dessa mentalidade. Se levada a sério, para onde ela nos iria conduzir?

O risco da investigação livre

Voltemos os nossos olhos para a realidade da imprensa. À luz dessas novíssimas e desinformadas teorias da comunicação social, os jornais, não mais se ocupando de vasculhar os bastidores do poder, devem a partir de agora apenas ‘informar’. Ora, mas sem investigar, sobre o que é que eles poderiam informar? Será que eles deveriam se contentar em difundir notícias apenas sobre os assuntos que o poder – político ou econômico, tanto faz – pretende divulgar?

Será que não ocorre aos adeptos dessas novíssimas doutrinas informativas que, para informar segundo sua missão mais alta, a imprensa precisa realizar reportagens? Será que eles nunca se deram conta de que reportagens nada mais são do que investigações levadas a cabo por meio dos métodos próprios do jornalismo? Se não serve mais para importunar, para questionar e para contestar o poder, se serve apenas para ecoar as falas do poder, de que modo a imprensa poderá ser útil à democracia? Ao cidadão bastariam os serviços de propaganda oficial?

Esta noite, neste grande salão, hoje, todos sabemos que as respostas a essas indagações passam pelo entendimento, que entre nós há de ser cristalino e pacífico, de que a imprensa, para bem informar, precisa investigar, precisa fiscalizar. Ou não será imprensa livre. Naturalmente, é de se esperar que o repórter, ao fiscalizar o poder, não se valha de procedimentos que não lhe sejam facultados pela lei e pela ética, não lhe cabendo substituir a polícia, o promotor de justiça, os juízes ou os parlamentares. Cada qual opera segundo seus próprios parâmetros e, de sua parte, a imprensa tem seus modos de investigar. Também por isso, assim como não pretende substituir a ninguém, ela é, numa palavra, insubstituível. Ninguém mais pode realizar o que ela realiza. Nenhum organismo direta ou indiretamente vinculado ao Estado pode substituir o olhar independente que só a instituição da imprensa é capaz de cultivar e exercer. Sem isso, não há democracia.

Não seria ocioso, nesse contexto, empreendermos uma breve retomada das origens e da razão de ser dos meios jornalísticos dentro da tradição democrática. Lembremos, por exemplo, a famosa passagem da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América:

‘O Congresso não deverá criar nenhuma lei… limitando a liberdade de expressão ou da imprensa.’

Recordemos Thomas Jefferson, que ensinava: ‘A única segurança que existe está em uma imprensa livre.’ Em 1823, ele declarou:

‘A força da opinião pública não pode ser negada quando se permite que ela se manifeste livremente. A agitação que ela produz deve ser atendida. É necessário manter o ambiente puro.’

Considerado um dos pais fundadores da democracia americana, Jefferson nos deixou uma frase célebre:

‘Se eu fosse chamado a escolher entre um Governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em escolher o último’.

O que seria um ‘governo sem jornais’? Muito simples: seria um regime em que o Estado ‘editaria’ a sociedade, diariamente. Ou, em outros termos, um Estado que, em lugar de resultar da vida social em liberdade, passasse a ser um condutor da vida social – claro que representado por um soberano, por um guia, por um uno que encarnasse o próprio espírito do Estado. Nesse sentido, um governo sem jornais seria uma completa inversão dos valores que fundam a democracia.

De outro lado, ‘jornais sem governo’ pelo menos manteriam acesa a esperança de que, com o tempo, a construção de um Estado de Direito sobreviria como resultante do debate público. Não por acaso, muito recentemente, na História do Brasil, a reconstrução e a própria construção do Estado de Direito se beneficiou largamente da contribuição daqueles homens, mulheres e instituições que, mesmo em tempos difíceis, souberam cultivar e levar ao limite o exercício da liberdade de imprensa. Sem jornais livres, firmemente comprometidos com a busca de sua própria liberdade, a democracia no Brasil, como em qualquer outro lugar, teria sido impossível.

Em poucas palavras: os jornais só são livres quando chamam para si o risco de investigar livremente, quando fiscalizam o poder.

Sem imprensa, a roda da democracia não gira

A liberdade de expressão, cuja expressão mais visível é a liberdade de imprensa, representa a outra face da moeda do direito à informação. É porque o cidadão é titular do direito à informação que a liberdade de imprensa não pode faltar. Ela é um direito da sociedade – não dos jornalistas. A liberdade para os jornalistas é um dever, pois a existência da imprensa livre depende do exercício desse dever. Sem jornalistas que exerçam a liberdade, como dever, a imprensa livre não respira. Do mesmo modo, poderíamos dizer de passagem, um procurador da República não tem o direito de renunciar à própria independência. Ele precisa exercê-la para mantê-la viva.

Mas aqui há mais do que a afirmação de princípios. Há, ao fundo, uma questão que poderíamos chamar de sistêmica: da imprensa livre depende nada menos que o funcionamento da democracia. Notem bem os senhores e as senhoras: a liberdade de imprensa não é necessária apenas porque atende a um direito dos cidadãos. A liberdade de imprensa não está aí porque, sem ela, a sociedade teria uma rotina mais triste ou menos dinâmica. É preciso que tenhamos esse dado muito presente: a liberdade de imprensa é indispensável para que a roda da democracia possa girar, para que o sistema aconteça, para que a lógica segundo a qual todo poder emana do povo não seja um teatro vazio.

Jefferson e seus contemporâneos garantiram a existência de jornais livres porque não hesitavam diante dessa verdade. Para capacitar-se a delegar, fiscalizar e exercer o poder, o cidadão precisa ser informado sobre os detalhes relevantes da gestão da coisa pública. Não há outro caminho.

E quem é que poderá informar a sociedade sobre como o Estado é gerido? O próprio Estado? Ainda que, em boa medida, sendo fiel ao princípio da transparência, o gestor público possa contribuir para tornar disponíveis as informações de interesse da cidadania, não é ele, o Estado, quem melhor se qualifica para processar e publicar esse conjunto de informações. É preciso que o agente a quem caiba mediar essas informações não esteja preso a qualquer subordinação a um ou outro órgão do Estado. É preciso que o agente mediador seja, numa palavra, independente do Estado.

As redações, desde que independentes, conformam uma instituição que é maior que a mera somatória dos veículos: a instituição da imprensa. Só ela, por não ter parte com as autoridades, é capaz de assegurar informação de qualidade ao cidadão, abastecendo-o dos dados necessários para que ele delegue, fiscalize e exerça o poder.

Preços a pagar

Se a imprensa informa, é porque ele, cidadão, tem direito à informação. Se ela fiscaliza, é porque ele, cidadão, tem direito de manter olhos atentos e céticos, por meio da imprensa, em direção à cena do poder. Os fundadores da democracia americana sabiam disso e não abriram mão disso. Ainda bem.

A mesma clareza nós encontramos na França revolucionária do final do século 18, o Século das Luzes. Soa hoje quase lírica a leitura do artigo 11 da ‘Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão’, lançada em 26 de agosto de 1789, naquele país: ‘A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem’. Livre circulação das idéias e das opiniões significa livre circulação de informações independentessobre o poder. Informações que resultem, também, do olhar fiscalizador.

Mais tarde, a ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, veio reafirmar, em seu artigo 19, o mesmo princípio, dando-lhe um alcance ainda maior, supranacional:

‘Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras’.

No Brasil, a mesma Constituição Cidadã que, em 1988, consagrou a forma hoje vigente do Ministério Público, conferindo-lhe a independência de direito e de fato para que ele possa seja o advogado da sociedade, também cuidou de assegurar as bases da liberdade de imprensa. Em seu artigo 5º, incisos IV (‘é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato’), IX (‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’) e XIV (‘é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional’), a Constituição afirma essas garantias, assim como no artigo 220:

‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.’

Mas será que podemos nos ver como uma sociedade consciente dos preços que temos de pagar para merecer a liberdade de imprensa? Será que nossos agentes políticos e os operadores do sistema jurídico dominam as implicações desse compromisso?

Outro fator de preocupação

Como já está mais que demonstrado, vivemos num país em que a censura é inconstitucional e a liberdade de imprensa é direito de todos. Ainda que os governantes não gostem disso, é assim que é. Não obstante, temos sido testemunhas de um recorrente atentado contra o direito à informação. Trata-se da figura da censura judicial, que, talvez por falta de clareza de alguns magistrados, ainda tem vitimado a cidadania. Nesse ponto, insurge-se outro fator de preocupação ao qual não podemos deixar de estar atentos. Também ele conspira contra a liberdade.

Recentemente, ganhou projeção a censura que se abateu contra os leitores do diárioO Estado de S.Paulo, por meio de uma decisão do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), datada de 30 de julho de 2009. O empresário Fernando Sarney conseguiu que o desembargador proibisse o jornal de publicar notícias sobre a investigação que vem sofrendo, sob sigilo judicial. Eis o trecho final da decisão do desembargador:

‘Nesse quadro, em juízo desummaria cognitio, a refletir,prima facie, a relevância dos fundamentos expendidos no presente recurso, evidenciando-se a possibilidade de ocorrência de lesão grave de difícil reparação, cumpre conceder a medida liminarmente visada, consistente em obrigação de não fazer, até o pronunciamento definitivo da Colenda Turma, para determinar ao agravado, em antecipação da tutela recursal, que se abstenha quanto à utilização – de qualquer forma, direta ou indireta – ou publicação dos dados relativos ao agravante, eis que obtidos em sede de investigação criminal sob sigilo judicial.’

Tomada há quase três meses, a medida inaceitável ainda se mantém, embora juristas eminentes, entre eles ministros do Supremo Tribunal Federal, tenham se manifestado publicamente contra ela. Infelizmente, a figura da censura judicial vem se tornando um expediente repetitivo no Brasil – o que nos envergonha diante da comunidade internacional. A Associação Nacional dos Jornais, a ANJ, denunciou 31 casos de violação à liberdade de imprensa ocorridos nos últimos 12 meses. Desses, 16 vieram de decisões da Justiça impondo a censura prévia. Em artigo publicado em 27 de agosto de 2009 naFolha de S.Paulo (‘Censura prévia é inadmissível’), Judith Brito, presidente da ANJ, afirmou:

‘A ampla e irrestrita liberdade de expressão, portanto, não é um direito absoluto, mas precede os demais.’

(…)

‘O impedimento da divulgação de informações é censura pura e simples.’

(…)

‘Essas sentenças liminares acabam sendo revogadas por instâncias superiores do Judiciário. Mas, por menor que tenha sido o período de tempo de exercício da censura, o mal já foi feito. A sociedade foi tolhida no seu direito de ser livremente informada.’

Do ponto de vista técnico, político, jurídico e ético, não há dúvidas: a intervenção estatal, quando ergue um muro entre o direito à informação de cada homem ou mulher e a informação de interesse público, é ilegítima, ineficiente, inconstitucional e indigna. Por outro lado, de modo desconcertante, as censuras judiciais abundam. Pipocam aqui e ali, de modo a sugerir que, possivelmente, uma parcela das nossas autoridades ainda não compreendeu devidamente a maneira pela qual a liberdade de imprensa deve ser protegida. Talvez ainda acreditemos, em algum nível, que é possível conciliar liberdade de imprensa e intervenção estatal (judicial) na vida dos jornais, que, em tese, deveria ser uma vida autônoma. Trata-se de um equívoco mais do que pernicioso – é um descarrilamento trágico.

A respeito desse equívoco, podemos constatar que ele se apóia em três mitos – ou em três idéias aparentemente verdadeiras e que, no fundo, além de falsas, são desastrosas. [Esses três mitos serão trabalhados mais detidamente em artigo ainda inédito, a ser publicado na revistaEstudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da USP.]

Mito número 1

O primeiro mito – que contribui para a sobrevivência dessa mentalidade que acredita poder censurar os jornais sem ferir de morte a instituição da imprensa em seu conjunto – pode ser formulado nas seguintes palavras:

O que corre em sigilo de Justiça não pode ser noticiado.

Ditas assim, tais palavras soam como verdade insofismável. O que poderia haver de mais óbvio? Se algo se encontra em sigilo de justiça, ora, é claro que não pode ser noticiado.

Mas, se pensarmos um pouco mais sobre esse postulado, desconfiaremos de sua veracidade. Já vimos que à imprensa cabe, sim, fiscalizar o poder. Investigar significa apurar os segredos que o poder gostaria de ocultar. Sabemos também que toda notícia nada mais é do que a revelação de um segredo e, quase sempre, de um segredo que desagrada o poder. Que esse segredo se origine do Poder Executivo, do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário é apenas um detalhe. Tanto faz. A sociedade precisa da imprensa exatamente para isso: para que ela revele os segredos que o poder teria preferido esconder.

Há ainda outra consideração a ser levada em conta. Se o segredo é, como nesse caso, da Justiça, os integrantes do Poder Judiciário são os responsáveis por preservá-lo. Ao jornalista – que se subordina ao direito à informação do cidadão, e não ao poder estatal – o dever que pesa é justamente o de descobrir os segredos, segundo métodos lícitos, e, a partir do interesse público que reveste esses segredos, avaliar em que termos ele será compartilhado com a sociedade. Nada pode substituir as redações nessa prerrogativa, a de avaliar autonomamente o que merece e o que não merece ser publicado.

Não por acaso, a Constituição assegura ao profissional da imprensa a prerrogativa do sigilo da fonte. O jornalista não é obrigado a dizer quem lhe passou a informação. A lei o protege. De posse da notícia, ele deverá checar sua veracidade, sua fundamentação, e, aí, trabalhará para relatá-la nos termos mais objetivos, precisos e exatos para, aí sim, publicá-la. Agindo assim, terá agido licitamente. Eticamente. Terá sido útil à democracia e à sociedade.

Enfim, à imprensa não cabe o dever de engavetar segredos do Estado. O que se dá é justamente o oposto:a imprensa cabe desvendá-los. O que é positivo, salutar, o que é bom.

Um episódio que se tornou clássico vem em nossa ajuda nessa reflexão. Uma vez, oNew York Times traiu seu compromisso de noticiar o que é de interesse público. Em 1961, a Redação doTimes dispunha de uma reportagem sobre a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, que ocorreria em poucos dias. O diário tinha apurado que forças integradas por exilados cubanos recebiam treinamento da CIA e seriam as protagonistas da invasão. Mas a informação foi sonegada ao leitor doTimes. Conta-se que, por influência direta ou indireta do então presidente John Kennedy, os editores preferiram atenuar a reportagem, em nome da segurança nacional.

Depois de muito debater, concluíram que a reportagem poderia ser publicada, falando de Cuba etc, mas sem dizer uma palavra sequer sobre o iminente ataque à Baía dos Porcos. O caso se tornou conhecido e, hoje, aparece em vasta bibliografia [ver, entre outros, LAMBETH, E.B.Committed Journalism – An Ethic for the Profession. 2a Edição. Indianna University Press. 1992. pp. 31 e 120].

Anos depois, o jornalista Gay Talese, em seu famoso livroO Reino e Poder, contou que, após o fracasso da investida contra a ilha de Fidel, ‘até o presidente Kennedy reconheceu que oTimes talvez tivesse exagerado na sua preocupação de defender os interesses americanos; se tivesse publicado tudo o que sabia sobre a aventura cubana, sugeriu Kennedy, a invasão poderia ter sido cancelada e o fiasco sangrento, evitado’ [TALESE, Gay.O Reino e o Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17].

Moral da história: até o Estado de Direito é beneficiado quando a imprensa cumpre altivamente o seu papel. Dizendo de outro modo: até o Estado de Direito é prejudicado quando a imprensa resolve lhe ser subserviente. Trocando em miúdos: até ao Estado de Direito convém que a imprensa seja independente – quanto mais independente melhor.

Portanto, se os repórteres descobrem, eticamente, um sigilo de Justiça que seja de interesse público, o seu papel é apurar o caso e publicá-lo. Repita-se: cabe à Redação, e apenas à Redação, decidir se uma história pode ou não ser publicada. Caso cometa algum abuso, essa Redação responderá por issoa posteriori. Ela não está à margem da lei, não está protegida por nenhuma forma de impunidade: terá de responder por todos os excessos. Em nenhuma hipótese, porém, é aceitável que um poder estatal, ou um braço desse poder, viole a autonomia de uma Redação jornalística para decidir, no lugar dela, o que convém publicar e o que convém não publicar. Qualquer desvio nesse sentido é uma aberração.

De uma vez por todas,não é verdade que o que está em sigilo de justiça não pode ser publicado. Muitas vezes, aliás, é preciso publicar. Para a preservação da própria democracia. Aos membros do Poder Judiciário cabe guardar o sigilo – nada de errado quanto a isso. Agora, aos jornalistas, o dever é investigar, apurar e, sendo necessário, publicar o que for notícia.

Mito número 2

Passemos agora ao segundo mito. Ele nos remete a exacerbações em torno da proteção da esfera familiar. Como a proteção da intimidade e da privacidade é também uma garantia constitucional, acredita-se que seria razoável impor censura prévia à imprensa com o objetivo de proteger a privacidade. Esse segundo mito pode ser resumido na seguinte frase:

Em casos de risco de invasão da privacidade familiar, a Justiça deve impedir previamente que os jornais a devassem por meio do artifício da censura prévia.

Outra vez, nada parece mais sensato. Imaginem se essa situação fosse vivida por algum dos senhores e senhoras. Se a lei os autoriza, como se acredita que autoriza, impor censura aos jornais para proteger a reputação de suas famílias, por que não pleitear nos tribunais essa garantia?

Outra vez, é preciso pensar sobre isso com mais cautela. Em primeiro lugar, não estamos expostos às injustiças cometidas pela imprensa apenas quando há reportagens sobre processos ou investigações que caminham sob sigilo de justiça. A toda hora, todos os dias, privacidades ou intimidades podem ser invadidas por reportagens inescrupulosas. E, se isso é verdade, por que não reclamar na Justiça a censura prévia para preservar reputações? Com efeito, são muitos os que tentam medidas assim. Com efeito, aliás, são muitos os que obtêm êxito, ainda que temporário.

Acontece que, se o raciocínio fosse realmente válido, a censura judicial poderia funcionar mais ou menos como uma vacina (embora antidemocrática) para proteger preventivamente as pessoas contra os abusos da imprensa. Desse modo, todos os cidadãos, absolutamente todos, poderiam demandar liminares que lhes garantissem essa espécie de imunidade prévia. Caso essa tese prevalecesse, os jornais só poderiam publicar reportagens sobre essas pessoas mediante autorizações de juízes. Estes, então, seriam convertidos em editores dos jornais, acima dos diretores de Redação.

Parece exagero, mas não é. Em que é diferente a reputação de uma família que tem, entre seus integrantes, alguém sendo processado sob sigilo de justiça, e uma família que não tem ninguém sendo sequer investigado? Em que a honra da primeira é inferior à honra da segunda? Por que só a segunda mereceria a proteção judicial preventiva de sua própria honra?

Ou bem concordamos que as honras de todas as famílias são iguais perante a lei, ou teremos de concordar que, em certas circunstâncias, sofrer uma investigação criminal sob sigilo judicial seria uma vantagem inestimável. Daí, todos os corruptos que pretendam esconder seus crimes no recôndito de seus lares teriam muito a ganhar quando sofressem investigações criminais sob sigilo judicial. Quer dizer: bem aventurados os que sofrem investigações criminais sob sigilo judicial, pois esses serão beneficiados pela censura prévia.

Senhoras e senhores: é realmente essa a visão que temos da liberdade de imprensa em nossos dias? Se não for isso mesmo, algo está errado na cultura subterrânea que vem fazendo proliferar a censura prévia judicial. É preciso que estejamos atentos. Será que temos a compreensão radical do significado da liberdade de imprensa?

Se voltarmos aos fundamentos da democracia, veremos que os cidadãos têm o direito – e devem ter os meios – de declarar, informar, manifestar qualquer coisa que bem entendam, a qualquer momento, sobre o que quer que seja. Depois, terão de responder perante a Justiça sobre os excessos que porventura vierem a cometer. Masposteriormente, não antes de publicar.

Isso é liberdade de expressão – e, de modo especializado, isso é liberdade de imprensa. A verdade é elementar e não admite variações: ou uma democracia garante essa liberdade ou ela não é democracia. No mais, estamos todos expostos aos dissabores dos erros da imprensa, e estamos expostos a isso, como já foi dito, o tempo todo – não apenas quando existem investigações sob sigilo de justiça. O tempo todo. Liberdade é liberdade. Ou convivemos com os riscos que ela acarreta, ou não a temos.

Façamos aqui uma comparação que, para este auditório, será mais do que esclarecedora. Pensemos nos procuradores da República. Eles dispõem de independência funcional e podem mover suas ações sem consultar outra autoridade. Imaginem agora que, a partir da verificação de que algumas ações movidas pelo Ministério Público são injustas ou mesmo infundadas, alguém passe a exigir que eles, os procuradores da República, antes de ingressar em juízo, peçam autorização a algum ministro de Estado ou ao presidente da República. O remédio não seria pior, muito pior, do que o mal que se pretende evitar? Sacrificar a independência do Ministério Público seria a solução para evitar excessos?

Todos aqui responderemos em coro que não, definitivamente não. Pois a mesma coisa se dá hoje com a imprensa. Como há reportagens que ferem ou mesmo destroem reputações, existe hoje, no Poder Judiciário, uma mentalidade que acredita que, com a censura prévia, ou seja, com o sacrifício violento da liberdade de imprensa, esses desvios poderão ser solucionados. A verdade é que essa mentalidade não soluciona coisa alguma. Ela apenas agrava as distorções já existentes.

Além de agredir o cidadão de modo afrontoso, a censura prévia por vias judiciais é ineficiente, sob quase todos os pontos de vista. Diga-se com todas as letras: nem mesmo para aqueles que alimentam pretensões que nada têm de boa fé, aqueles que querem censurar a imprensa não para preservar a própria honra, mas para dificultar a investigação propriamente dita, protegendo, não a honra, mas o crime, mesmo para esses a censura judicial é de baixo rendimento, uma vez que ela é incapaz de reprimir a dinâmica natural da notícia, que acabará vindo a público por outros caminhos. Assim, esse expediente, o da censura judicial, não apenas não resolve nenhum problema antigo, como cria problemas novos, maiores e mais perversos.

Mito número 3

Há, por fim, aqueles que alegam que, nas condições presentes, em que os conglomerados do mercado de comunicações atingem patamares e dimensões sem precedentes, ampliando seu grau de influência na esfera pública, somente o Poder Judiciário poderia atuar como contrapoder em relação ao contrapoder original, qual seja, a imprensa. Esta, originariamente concebida como o contrapoder por definição, incumbida de contrabalançar e contestar os poderes estatais, teria passado por uma hipertrofia histórica, transformando-se num poder desgovernado. É assim que alguns se perguntam: quem é que vai controlar a imprensa? Na dúvida, vão atrás de um juiz que acredite em censura prévia.

Esse ponto, como os dois anteriores, inspira apreensão. Embora se possa admitir a possibilidade de que, em certos momentos, a centralidade dos meios de comunicação na esfera pública dê à imprensa condições privilegiadas de interferir na agenda social, a presunção de que a imprensa concentra mais poder que o Estado não passa de uma conjectura insustentável e delirante. Os que acreditam nisso talvez desconheçam o significado da palavra poder.

O mais sintomático, pelo que temos visto no Brasil, é que os ataques contra o jornalismo independente têm vindo não da sociedade, mas exatamente do poder. Quem reclama com ares indignados da ‘mídia sem limites’ e se volta contra a liberdade de imprensa por meio de recursos judiciais não são os que não exercem nem postulam cargos públicos, mas, quase sempre, os agentes políticos. São os homens do poder – ou seus apadrinhados e seus parentes. Atacando os jornais com retóricas panfletárias, saem por aí brandindo esse terceiro mito, o de que a imprensa age como um partido empenhado em desgastar e desconstruir quem governa. O terceiro mito, que eles tentam passar como verdade, é o seguinte:

A imprensa é um partido de oposição.

Há pouco mais de um mês, o presidente do Senado, sintomaticamente, declarou:

‘A mídia passou a ser uma inimiga do Congresso, uma inimiga das instituições representativas’ (O Estado de S.Paulo, 16 de setembro de 2009).

Qual a dedução lógica que deveria decorrer de tal premissa, caso ela fosse verdadeira? A de que, sim, é necessário que existam freios estatais para conter a sanha destrutiva da imprensa, uma vez que, entregue ao seu próprio instinto, ela concorrerá para destruir as ‘instituições representativas’. Também aí nós temos outro ingrediente preocupante dessa mentalidade liberticida que vem se articulando à sombra da República.

Claro que não há como ignorar que a escala de influência dos meios de comunicação se expandiu de modo exponencial a partir de meados do século passado. Muitos são os pensadores que registraram analiticamente essa alteração. Citemos apenas um deles, Jürgen Habermas, em um estudo dos anos 1960:

‘A imprensa, que até então fora instituição de pessoas privadas enquanto público, torna-se instituição de determinados membros do público enquanto pessoas privadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública’ [HABERMAS, Jürgen.Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 218].

Desde então, são diversos os episódios em que os meios de comunicação se voltaram, de modo mais ou menos organizado, contra a vontade popular ou contra a própria sociedade. No Brasil, a resistência da maior parte das emissoras de TV, em 1984, em reportar a campanha pela volta das eleições diretas para a Presidência da República pode ser apontada como um exemplo. Mas, lembremo-nos bem, naquelas circunstâncias os meios de comunicação não pecaram por se voltar contra o Estado, mas exatamente por se submeter à vontade do poder ilegítimo encastelado no Estado. Por isso se voltaram contra a sociedade. Sob o beneplácito do Estado.

Outro exemplo talvez seja a inaceitável tentativa de golpe de Estado na Venezuela, em 2002, contra Hugo Chávez, presidente legitimamente eleito. Era um período de estabilidade democrática. Felizmente, o golpe foi derrotado em 72 horas e o presidente retornou ao governo, vitorioso. Depois, no entanto, o próprio Chávez, que permanece no poder até hoje, passou a perseguir e fechar televisões que não dizem amém ao seu governo. Hoje, o governo Chávez é no mínimo ambíguo, e isso na melhor das hipóteses, no que se refere ao compromisso de garantir a liberdade de imprensa.

Também por aí se aprende que a degeneração das empresas de comunicação se manifesta quando elas se insurgem contra a vontade popular, não quando elas questionam o Estado. E, também pela experiência da Venezuela, aprendemos que mais grave do que um cenário político em que emissoras que se insurgem contra o Estado é a situação de um Estado que sufoca emissoras de rádio ou TV, no intuito de controlá-las. Em síntese, é preferível um ambiente democrático em que a imprensa guarde uma relação de atrito e de tensão com o Estado àquele em que Estado e meios de comunicação se associam com vistas a conduzir a sociedade.

Se há um crescimento da centralidade dos veículos de comunicação no espaço público, como é evidente, a solução para manter o equilíbrio entre as diversas correntes de opinião não passa, nem de longe, pela intervenção do poder estatal na edição dos conteúdos jornalísticos. Aliás, é bem o contrário. Quanto maior a distância, melhor. Ao Estado cabe apenas regulamentar e regular o setor com o objetivo de preservar a pluralidade de vozes e a concorrência saudável entre as empresas. Quando as emissoras se articulam para atacar o Estado, a situação é ruim. Quando o Estado se arma para asfixiar emissoras, a situação é pior.

Ao Estado, por fim, não cabe controlar conteúdos. O melhor que ele pode fazer é agir, como foi dito, para regulamentar e regular o setor de radiodifusão. Sobre isso, a experiência americana, com a criação da FCC (Federal Communications Commission), ainda em 1934, ou seja, há mais de 70 anos, permanece como lição para nós, brasileiros, que ainda estamos atrasados nessa matéria. O Estado não deve praticar ou admitir qualquer forma de censura prévia. Mas ele não poderá escapar ao dever de regular democraticamente esse mercado – e a nossa legislação, no Brasil, ainda não cumpriu a tarefa de regulamentar e regular o setor.

Outro dado curioso, que será aqui registrado apenas de passagem, é que alguns dos políticos que hoje reclamam da ‘mídia’ como ‘partido de oposição’ sempre se beneficiaram, inclusive na esfera privada, do monopólio de fato que, durante décadas, foi a regra na radiodifusão brasileira. Nesse campo, nada mais antidemocrático que o monopólio. Esses políticos, agora convertidos ao denuncismo ‘de esquerda’, muito embora titulares de biografias de direita, colheram vantagens do monopólio no passado e querem colher vantagens da demagogia no presente. Nesse sentido, nada mais antidemocrático do que proclamar que a ‘mídia’ é ‘partido de oposição’.

Nada mais antidemocrático porque, no Brasil dos nossos dias, inexiste qualquer risco de que um golpe contra a democracia possa vir da imprensa. O que existe, bem ao contrário, são as medidas judiciais provocadas por políticos, ou por protegidos de políticos, para intimidar a imprensa. O que existe, de forma cada vez mais ostensiva, são os germes da mentalidade contrária à liberdade.

A instituição da imprensa só existe quando a liberdade de expressão tem vigência plena. Seu corpo está nos jornais e nas revistas, nas emissoras de rádio e televisão, nosblogs e no debate público. Seu corpo físico está no conjunto plural dos meios. Sua dimensão maior, não corpórea, está no império da lei e do Estado de Direito, que consagra a liberdade. Por isso, a cada agressão contra um veículo, qualquer que seja ele, mesmo quando nós não gostamos da linha desse veículo, é toda a instituição da imprensa que sangra.

Senhoras e senhores, encerro estas palavras externando a minha fé radical na missão da imprensa, que se confunde com a minha admiração pela trajetória do Ministério Público Federal. As duas instituições, na história recente do nosso país, são beneficiárias e construtoras da liberdade. As duas instituições só vivem à medida que conquistem e fortaleçam a sua independência. As duas têm muito a aprender uma com a outra, pois têm em comum os ideais da democracia e do bem-servir à sociedade.

Faço aqui os meus melhores votos de êxito a este Congresso, ainda sensibilizado pela honra que me coube de dirigir a minha palavra a um público tão respeitável, tão brasileiro, tão democrático. Muito obrigado a todos.

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Jornalista, professor da ECA-USP