Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Genética perde um mestre e cavalheiro

 

Professor, mentor e cientista dos mais renomados, James Crow foi um dos principais nomes da genética ao longo do século 20. O biólogo estadunidense, nascido em 18/1/1916, em Phoenixville, cidadezinha ao lado de Filadélfia (Pensilvânia), faleceu no último dia 4 de janeiro, em Madison (EUA), duas semanas antes de completar 96 anos de idade.

Soube de seu falecimento apenas na sexta-feira (27/1). Um amigo me alertou para o obituário publicado na edição do dia anterior da revista científica Nature – ver artigo “James Crow (1916-2012)” (Nature 481: 444), de Alexey Kondrashov. A partir de então, não demorei a perceber que a notícia já circulava há mais de duas semanas – ver, por exemplo, a matéria “James F. Crow, population genetics pioneer, dies at 95”, de Nicholas Wade, publicada no New York Times (10/1).

A própria Universidade de Wisconsin, onde Crow passou quase toda a sua vida profissional, havia divulgado uma nota de falecimento no início de janeiro – ver artigo “UW geneticist James Crow passes away”, assinado por Jill Sakai (6/1). Só não consegui localizar foi um registro na imprensa brasileira, mas isso não foi exatamente uma surpresa…

Vida acadêmica

Filho mais velho de Hollie Ernest Crow, um professor de Biologia, e Lena Whitaker Crow, dona de casa, James Franklin Crow desde cedo se interessou por ciência. Estudou na Universidade Friends, em Wichita (Kansas), onde seu pai lecionava, concluindo a graduação em 1937. Continuou seus estudos na Universidade do Texas, em Austin, onde obteve um doutorado (1941). Foi lá que ele conheceu Ann Crockett, então uma estudante. Os dois se encontraram na orquestra da universidade, onde ele tocava violino e ela, clarinete. Começaram a se relacionar e, pouco mais de um ano depois, se casaram. Foram casados durante 60 anos, até a morte dela, em 2001.

Concluídos os estudos em Austin, Crow pensava em ir para a Universidade de Chicago, fazer um pós-doutorado com Sewall Wright (1889-1988). Os tempos sombrios da Segunda Guerra Mundial, no entanto, o forçaram a mudar os planos. Ao invés de se candidatar a uma bolsa de estudos, ele então foi atrás de um emprego. (Anos depois, no entanto, ambos se tornariam “vizinhos de gabinete”: na década de 1950, depois que Wright se aposentou em Chicago e a Universidade de Wisconsin o convidou a ir para Madison; convite aceito, Crow e Wright conviveram e interagiram durante mais de 30 anos.)

Sua carreira profissional teve início na Faculdade de Darthmouth, em Hanover (New Hampshire), onde lecionou de 1941 a 1948. Por causa da guerra, terminou assumindo um leque amplo e variado de disciplinas (genética, estatística, parasitologia, anatomia comparada, embriologia, endocrinologia etc.), uma experiência que parece ter aguçado ainda mais as suas habilidades e o seu gosto pelo trabalho docente.

Em 1948, Crow foi trabalhar na Universidade de Wisconsin, em Madison, onde permaneceria até o fim da vida. Aposentou-se em 1986. Apesar disso, no entanto, continuou sendo um membro bastante ativo da comunidade acadêmica. Nunca parou de escrever e, mesmo aos 95 anos de idade, ia ao campus quase todo dia – duas semanas antes de falecer, esteve em sua sala na universidade por conta de um artigo que estava preparando. Muitos de seus ex-alunos afirmam que ele era um professor notável, além de um sujeito extremamente gentil e atencioso – para o depoimento de um ex-orientando, ver “James F. Crow and the art of teaching and mentoring” (Genetics 189: 1129-33, 2011), de Daniel L. Hartl.

Efeitos genéticos das radiações e mutações

Ao longo de uma trajetória autoral que se estendeu por nove décadas (o primeiro artigo apareceu em 1939), Crow publicou livros, capítulos de livros e inúmeros artigos científicos, sozinho ou em coautoria. Mesmo quando o coautor ou os coautores eram alunos ou orientandos seus, tinha o costume de só assinar um artigo quando ele tivesse efetivamente participado do trabalho.

Entre os seus livros, não poderia deixar de citar aqui o agora clássico An introduction to population genetics theory (Harper, 1970), escrito em coautoria com o biólogo japonês Motoo Kimura (1924-1994); além de Princípios de genética (LTC, 1978), talvez o mais acessível livro-texto de genética publicado por uma editora brasileira. Fora de catálogo há vários anos, este último livro é a versão em português da sétima edição de uma obra intitulada no original Genetic notes (ou Crow’s notes, como diziam os seus alunos), cuja última edição (oitava) apareceu em 1983.

Seu legado bibliográfico é rico e variado, fruto de uma trajetória intelectual que percorreu diversas áreas da genética. Crow não só acompanhou as transformações radicais pelas quais a genética passou ao longo do século 20, como efetivamente trabalhou para sedimentar os alicerces da disciplina. Ao longo de sua carreira, lidou com algumas questões teóricas da maior importância, sem deixar de lado demandas e problemas imediatos. Alguns temas, como mutação, carga genética, deriva, endogamia e tamanho efetivo de populações, eram quase recorrentes em seus escritos; mas ele também escreveu sobre vários outros tópicos, como a evolução da dominância, a genética da resistência contra inseticidas, os efeitos genéticos das radiações e a ocorrência de mutações deletérias em seres humanos.

Participação em comitês e conselhos gestores

Nos últimos anos, vinha publicando alguns artigos de revisão e principalmente análises históricas, em geral ilustradas por casos vivenciados por ele próprio. Penso que alguns desses artigos seriam de leitura bastante proveitosa, tanto para profissionais como para estudantes da área. Os exemplos a seguir devem servir de amostra:

** “Hardy, Weinberg and language impediments” (Genetics 152: 821-5, 1999; [c. 125 KB]), sobre a formulação da famosa equação de Hardy-Weinberg;

** “Was there life before 1953?” (Nature Genetics 33: 449-50, 2003; [c. 275 KB]), sobre a genética, antes e depois do surgimento da “era molecular”;

** “Maintaining evolvability” (Journal of Genetics 87: 349-53, 2008; [c. 110 KB]), sobre a manutenção de variabilidade genética em populações naturais; e

** “Mayr, mathematics and the study of evolution” (Journal of Biology 8: 131-4, 2009; [c. 135 KB]), sobre um curioso imbróglio em torno do papel e da importância de modelos matemáticos na teoria evolutiva.

Não bastasse a brilhante carreira acadêmica, como professor e cientista, ele ainda atuou em outras esferas da administração pública, participando, por exemplo, de comitês e conselhos gestores, tanto em escala nacional como internacional, além de assumir funções burocráticas, dentro e fora da universidade – para detalhes, ver “James F. Crow: his life in public service” (Genetics 190: 1-4, 2012), de Seymour Abrahamson.

“Por que reverenciar o Jim?”

Ao longo da vida, Crow recebeu inúmeros prêmios e honrarias. De todas as homenagens, no entanto, arrisco dizer que a mais simbólica – senão a mais significativa – talvez tenha sido o uso do seu nome para batizar o “J. F. Crow Institute for the Study of Evolution”, um centro multidisciplinar de pesquisa, ensino e extensão da Universidade de Wisconsin, formalmente estabelecido em janeiro de 2010.

No mês passado, coincidentemente, a revista científica Genetics – com a qual ele colaborava desde a década de 1940 – anunciou que pretende publicar em suas próximas edições uma série de artigos em sinal de reverência a James Crow. Nas palavras dos editores (tradução livre):

“Com este número, nós iniciamos uma série de artigos 'Perspectivas & Revisão' em reverência ao nosso colega James F. Crow, que, junto com esta revista, celebrou este ano [2011] o seu 95º aniversário. Por que reverenciar o Jim? A resposta é óbvia para muitos que têm o privilégio de conhecê-lo: um cavalheiro e um erudito do mais alto nível, ele representa o melhor do nosso campo.

“Jim Crow é um elo vivo entre nossas gerações e os fundadores da genética de populações. Jim foi colega de Sewall Wright na Universidade de Wisconsin, em Madison, durante décadas (1955-1988); Jim iniciou uma amizade com Ronald Fisher em um bate-papo com champanhe improvisado na década de 1940; e ele acolheu J. B. S. Haldane para uma memorável palestra em Madison, no início da década de 1960 (após saber pelo New York Times que a Carolina do Norte havia cancelado uma palestra pública desse famoso comunista). São poucos os geneticistas de populações que não têm um significativo débito intelectual com Jim; nenhum que não tenha ciência de sua maestria em nosso campo e nas interações humanas. Para muitos de nós, Crow & Kimura (1970) foi uma introdução elegante e inspiradora aos modelos matemáticos que formam a base da teoria genética de populações. Crow materializa o ideal de uma época saudosa quando os modos e as roupas eram um sinal de refinamento. E ninguém que o encontre ficará surpreso ao saber que ele é um violinista habilidoso.” – Michael Turelli & Charles Langley, “Honoring our colleague James F. Crow, an outstanding gentleman, citizen, and scientist” (Genetics 189: 1127, 2011).

Vida e obra

A pretensão original da revista, como se vê, era promover uma comemoração em vida; desgraçadamente, porém, a publicação agora se converterá em uma homenagem póstuma – ver “James F. Crow (1916-2012) a remarkable geneticist, a remarkable man” (Genetics 190: 1-2, 2012; [c. 460 KB]), de Daniel L. Hartl.

Não conheci James Crow pessoalmente; mesmo de longe, porém, arrisco dizer: a genética perdeu não só um mestre, mas um verdadeiro cavalheiro. Para o leitor interessado em saber mais a respeito de sua vida e obra, uma das alternativas é localizar e capturar aqui o arquivo com a transcrição (em inglês) de uma entrevista dada por ele em 2005.

James Crow faleceu em casa, enquanto dormia. Ele era viúvo e deixou três filhos (um homem e duas mulheres), seis netos e dois bisnetos.

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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]