Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Livre para ser preso

Ele usa uma balaclava enfiada na cabeça, tem um blogue feito de carniça, acredita que estamos mais perto do inferno do que do céu e escreve sobre o lado escuro da vida. Estou falando, é claro, do escritor gaúcho Afobório, pseudônimo de Alexandre Durigon, 31 anos, que acaba de lançar seu livro de estréia, Livre Para Ser Preso (2009, R$25,00), pela editora carioca Multifoco.

Acostumado a escrever contos, Livre Para Ser Preso é sua primeira narrativa longa e já chega surpreendendo e mostrando que veio para ficar – por mais que isso incomode os politicamente corretos e românticos de plantão. Afobório criou uma novela com os elementos práticos e sucintos da produção do contista que sempre foi: nada sobra e nada falta na engenhosa história de Alencar e Jorge, seus perturbados protagonistas. O primeiro, um fazendeiro mais pedante que esperto, sofre pelos chifres que sua falecida mulher colocou em sua testa. O outro, fugitivo da polícia, é completamente apaixonado por uma boneca e acredita piamente ser uma onça pintada.

O enredo lhe pareceu absurdo? E é.

Isso até que se comece a ler a extraordinária história de dois homens que desafiam sua própria humanidade e lançam mão de uma guerra particular onde só cabem dois soldados, buscando na selvageria qualquer coisa que os aproxime dos homens que nunca foram.

Proximidade sinistra com a realidade

Diferentemente de muitos autores de suspense e literatura fantástica – que acabam apenas refazendo o que já foi feito – Afobório não busca em escritores consagrados nem em filmes do gênero inspiração para suas histórias. Sua matéria-prima é a vida que ele enxerga pela janela de sua sala:

‘Escrevo coisas que vejo e encontro nas pessoas. Acredito que as estórias que desenvolvo têm um bom fundo de verdade. Se você prestar atenção à sua volta, verá que o que não falta são bizarrices. O mundo é feio, mas a maioria das pessoas reluta contra isso e o pinta de bonito para disfarçar o que incomoda e envergonha a sociedade. Eu vejo as coisas por outro lado. É por isso que exploro o lado negativo do ser humano, e da vida.’

E é isso que encontramos em suas histórias, abundantemente: realismo e verdade. E é também exatamente isso que mais perturba na literatura de Afobório. Tudo que está escrito é passível de se tornar real.

Essa proximidade sinistra e sensacional que o autor possui com a realidade dura, crua e assombrosamente nua, torna seu blogue um espelho que reflete o lado negro e os becos e vielas de uma vida que não gostamos de ver nem de assumir que existe. Lá estão publicados mais de 100 contos, escritos entre 2007 e 2009, e cada um possui em suas linhas uma infinidade de personalidades e situações que nos deixam com a incômoda sensação de pertencermos àquilo tudo.

Agradecer a Deus ou ao Diabo

Segundo a escritora Jana Lauxen, responsável pelo prefácio desta delirante edição, enquanto lia os originais da obra, mais de uma vez se pegou embrulhada, enjoada, desconfortável:

‘Diversas vezes precisei parar para retomar meu fôlego e me certificar de que o mundo lá fora não havia se transformado em uma perseguição convulsiva e furiosa, onde homens se confundem com bestas feras e sentimentos se viram ao avesso para comprovar o que todos nós sabemos, mesmo sem gostar: existe um bicho faminto e intolerante dentro de cada um de nós. Um animal irracional e violento, bruto, impetuoso, preocupado exclusivamente com sua sobrevivência, desprovido de tudo aquilo que acreditamos nos tornar humanos. A história de Alencar e Jorge é, também, a história de todos os homens que deixaram para trás sua civilidade e sua compaixão, e mesmo assim continuam infiltrados no coração de uma sociedade aparentemente organizada, instituída e solidária – a sociedade onde eu e você vivemos, e onde nos sentimos muito, muito seguros.’

Apesar das sensações e sentimentos pouco ortodoxos que Afobório desperta em seus leitores, tratamos aqui de literatura de primeira linha. Raros são os autores atuais que se dispuseram a retratar aquilo que poucos de nós gostam de assumir. E Afobório não somente faz isso, como faz muito bem feito. Livre Para Ser Preso, tais como os contos que frequentemente disponibiliza em seu blogue, possui o refino ideal para retratar histórias de horror e violência sem apelar para efeitos literários especiais ou ganchos ordinários: ele não choca o leitor com brutalidades óbvias e apelações previsíveis. Afobório é o sujeito certo, na hora certa, escrevendo exatamente o que deve e sabe escrever.

E para os amantes de literatura policial, de suspense e de horror, só resta levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus pela existência de um autor tão bom naquilo que nos faz tão mal.

Agradecer a Deus, ou ao Diabo, é claro.