Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

G1 reduz 140 mil cidadãos a “bunker de bandidos”

(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Os 244 foragidos da Justiça escondidos no Complexo da Maré formaram estatística suficiente para G1 denominar a região como “bunker de bandido”, em matéria publicada na última quarta-feira (26). Pelo tom pejorativo e reducionista aos 140 mil moradores do bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, a reação nas redes sociais não poderia ser outra senão negativa. O termo acabou sendo suprimido, conforme consta a discreta alteração adicionada ao final do texto.

Produzida por quatro jornalistas, a reportagem detalha como a localização privilegiada da Maré favorece a concentração de quadrilhas em diferentes pontos da capital. Leitores, principalmente os habitantes do complexo, contestaram o óbvio: não se enxergavam como parte da expressão criada pelo veículo. “‘Bunker’ de bandidos é no Condomínio Vivendas da Barra”, escreveu um dos usuários, em referência ao conjunto da Tijuca onde morava Jair Bolsonaro até se mudar para Brasília.

Uma população inteira pode ser vista como ‘bandida’ (Foto: Reprodução Twitter)

Ao Brasil de Fato, Gizela Martins, jornalista e habitante do bairro, propõe uma nova chave de leitura: Maré é bunker de solidariedade, cultura e lazer, diferente do que preconiza uma visão condescendente aos territórios distantes dos centros. No Twitter, a hashtag #MaréBunkerDePotência, lançada pelo Instituto Marielle Franco, também buscou visibilizar notícias sobre projetos do complexo.

E na mesma rede, o repórter independente Ruben Berta destaca como a expressão de G1 pode ser capitalizada por interesses políticos. No dia seguinte à veiculação da matéria, Wilson Witzel, governador do estado atualmente afastado, escrevera sobre os “grandes bunkers” que existiam nas comunidades dominadas por “narcoterroristas” do Rio de Janeiro.

“Mas o fato não fala por si?”

Os mais apressados podem minimizar o problema e dizer que se trata “apenas” de um título. Podem recorrer ainda a certo cinismo corporativo e perguntar o que seria possível de ser feito no lugar dos jornalistas que assinaram a matéria. O fato noticiado não permite afirmar que, realmente, há traficantes que utilizam a Maré como esconderijo? A mera informação não fala por si mesma?

Para esse grande chavão do jornalismo, a resposta é um alto e sonoro “não”. Sim, há interesse público no acontecimento e não se questiona o valor-notícia por trás dele. O objeto de crítica é o tratamento dado à informação – sempre mediada, claro, e despida de “voz própria”, que não “fala por si”. Ao contrário do que talvez apostem exercícios argumentativos transcendentais de parcela dos jornalistas.

Façamos as contas: 244 foragidos da Justiça representam 0,2% dos cerca de 140 mil moradores da Maré. Complexo formado por 17 comunidades, a região é maior do que 90% dos municípios brasileiros, como a própria matéria identifica. É a disparidade nessa porcentagem que resvala em um problema ético: a homogeneização de um vasto território à simplória, redutora e preguiçosa expressão “bunker de bandido”.

Imagine se o termo fosse usado para definir uma cidade qualquer de médio porte no interior do Rio Grande do Sul, por exemplo. Escandaloso, não? E por que aceitar com naturalidade essa escolha de linguagem no caso da Maré? Porque não tratamos de um problema novo no jornalismo, mas de um imaginário popular que há anos associa favelas à criminalidade. O jornalismo não é o único, mas certamente é um dos discursos que conformam esse estereótipo, materializando-o em textos e imagens.

O inferno são os outros

Para citar um rápido exemplo: em 2007 a revista Veja publicou uma edição especial sobre crimes. Em sua capa, anuncia que pretende ir à raiz do problema, tratar da impunidade e apresentar soluções. O imaginário sobre fronteiras como locais perigosos é constantemente reiterado: uma das matérias apresenta infográfico sobre o “mapa do crime” no Brasil, situando a rota do tráfico de drogas na Tríplice Fronteira com Argentina e Paraguai – países supostamente responsáveis por transportar o problema da criminalidade às fronteiras urbanas brasileiras, nas favelas paulistas e cariocas.

A edição 1990 de Veja aborda crimes que ocorrem nas fronteiras do Brasil. (Foto: Reprodução Acervo Digital)

Ao longo da revista, chamam atenção aspectos como a ênfase nas prisões enquanto solução punitiva no combate às facções, a invisibilidade dos crimes de colarinho branco e, assim como no caso da Maré, a redução de populações inteiras a termos como “terra rasa”, no caso de Ciudad del Este. Em artigo científico que analisa a edição, os pesquisadores Nelson Sobrinho e Denise Moraes comentam essa escolha de linguagem:

Ao se referir à região como uma área aberta ao tráfico, ao retratá-la como região ligada à criminalidade, onde é comum praticar atos ilegais, sendo estes tolerados por autoridades e pela população, Veja coloca seus mais de 560 mil habitantes não apenas em suspeição, mas como partícipes de atos ilegais. A publicação se esquece, ou prefere ignorar, que se determinados crimes ocorrem na Tríplice Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, estes são fruto das características particulares das fronteiras, e não advêm da sua população (p. 123).

Quando o assunto são fronteiras – sejam elas entre países, ou internamente, entre centro e periferia –, esse tratamento jornalístico redutor é relativamente comum. Pense em matérias sobre contrabandistas na fronteira Brasil e Paraguai, por exemplo, ou na conflituosa relação de classe entre favelas e bairros de classe alta que convivem praticamente lado a lado.

São pautas que servem de prato cheio para dicotomias preguiçosas, ao atribuírem o “outro” como responsável por trazer problemas a um território. O tema é presa fácil ao discurso jornalístico justamente pelo seu caráter potencialmente disciplinador. Ele ordena valores, hierarquiza informações, sugere papeis morais para vilões e heróis, desejados e indesejados, corretos e desviantes da norma. Mas o discurso também é localizado: ao estabelecer que o território do “outro” é responsável por determinado problema, estamos falando de um território “nosso” que é atingido. Cabe questionar: o título de G1 dialoga com qual leitor? A audiência da Maré vai se identificar com o bunker de bandido? Ela também é parte do problema? Ou o veículo sequer teve a pretensão de imaginá-la como potencial leitora do site?

Um território de cor

Para além desse argumento, o problema de fundo, como aponta Bruno de Castro, é a irrisória importância das redações às questões raciais e à perpetuação de estereótipos. Jornalista com experiência em reportagem e edição, Castro defende a criação de comitês internos nos jornais para debater conteúdos por uma perspectiva racial. Essa é a discussão em jogo: o reforço do imaginário sobre favelas atrela-se a uma problemática de cor e endereço. Conforme escreve:

Mas e o “bunker de bandidos” do Leblon, Ipanema, Lagoa, Gávea, Jardim Botânico, Leme, Humaitá, Copacabana e Botafogo? Não há foragidos da Justiça nos bairros mais caros do Rio de Janeiro? Quando eles vão figurar num mapa bem ilustrado em um dos portais de notícias mais acessados do Brasil? Eles não estão nos jornais por um motivo: são brancos. Todos esses bairros são brancos. De moradores, visitantes e turistas brancos. E, ideologicamente, bandidos somos nós, negros. Um referencial compartilhado pelo G1, como bem evidencia essa ‘reportagem especial’.

Castro ainda levanta dados sobre a baixa porcentagem de editores negros no país (apenas 5%), o que contribui para apagar pontos de vista étnico-raciais nos processos de produção da notícia. Disparidades e representações equivocadas sobre esses territórios são motor para a criação de iniciativas como o Voz das Comunidades, conforme comenta o fundador Renê Silva ao tratar do caso da Maré. Texto recente de Juliana Freire Bezerra também elenca uma série de organizações lideradas por moradores de comunidades que vêm se destacando no combate à Covid-19.

(Foto: Reprodução Twitter)

Na entrevista que realizei com a jornalista e pesquisadora Fabiana Moraes, mencionei um vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre os perigos de se proferir uma “história única” a respeito de diferentes povos. Seu discurso cristalino novamente nos auxilia e se faz necessário para desvelar mecanismos de linguagem no jornalismo. O problema não está em reproduzir mentiras, mas “meias verdades” – precisamente o modo como funcionam os estereótipos, generalizando particularidades.

Daí que a resposta ao bunker de bandidos pouco tem a ver com fechar os olhos para a violência em territórios como a Maré – muito embora a seletividade do olhar vigilante não contemple outras regiões – mas, sim, deixar de tomá-la como característica definidora para a sua população. Se títulos podem não ser suficientes para capturar a complexidade de tantos moradores, evitemos o que é possível: estereótipos que desumanizam e fornecem endereço para problemas de segurança pública.

Texto publicado originalmente em objETHOS.

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Dairan Paul é doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS.