Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dia em que a polícia britânica prendeu David Miranda

Era domingo e, pela hora, Glenn Greenwald desconfiou que não vinha boa notícia. O jornalista americano estava dormindo em sua casa no Rio quando foi acordado pelo telefone, pouco depois das sete da manhã. Do outro lado do Atlântico, um agente da Scotland Yard, a Polícia Metropolitana de Londres, perguntou o que já sabia, se Greenwald conhecia David Miranda. E então disse a que vinha: “Estou ligando para informar que ele está detido sob a Lei Antiterrorismo 2000.”

Ainda se passariam 24 horas até Greenwald – que junto com a documentarista Laura Poitras vem divulgando segredos da espionagem americana vazados por Edward Snowden – rever o companheiro. “Eles acharam que eu ia quebrar, mas isso não ocorreu. Quando a gente começou a trabalhar com essas histórias, sabíamos que coisas assim poderiam acontecer”, diria depois Miranda, que está sempre presente quando Greenwald assina contratos e define onde publicará seus artigos.

Mas Greenwald não reagiu com fleuma à ligação que o acordou em 18 de agosto. Ficou furioso com a menção a terrorismo. Um mês e meio antes, a própria Laura passara por Londres, saindo do Brasil, e nada havia lhe acontecido. Ele perguntou em vão ao agente se podia falar com Miranda. Quis saber quanto tempo o parceiro ficaria detido. “Temos o direito de detê-lo por nove horas, depois podemos pedir mais tempo à Justiça ou prendê-lo”, ouviu em resposta.

Ou falava ou era processado

Miranda havia sido detido três horas antes, às 8h05 em Londres (quatro da manhã no Brasil), quando desembarcou no aeroporto de Heathrow, onde faria conexão para o Rio. Com passagem paga pelo Guardian, o jornal britânico do qual Greenwald é colunista, ele tinha passado uma semana em Berlim, parte dela hospedado na casa de Laura. Além de um laptop Samsung recém-comprado e outros aparelhos eletrônicos – um celular, um console de videogame, dois SmartWatchs –, trazia dois pen drives e um disco rígido com arquivos confidenciais que a documentarista enviara para Greenwald.

Ainda no avião da British Airways, os passageiros tinham sido instruídos a desembarcar com os passaportes em mãos. Na saída do finger, o rapaz de cabelo moicano foi identificado por dois policiais de terno, com os crachás virados. “Pode me acompanhar?”, disse um deles, tomando seu passaporte. O brasileiro foi levado para uma sala sem janelas, monitorada por câmera e mobiliada com uma mesa, quatro cadeiras e um computador para identificar digitais. Revistaram sua bagagem e levaram todos os equipamentos.

Teve início então um espetáculo do absurdo, roteirizado pelo Apêndice 7 – que se aplica a portos e aeroportos – da Lei Antiterrorista 2000. Quando Miranda perguntou o que queriam dele e que direitos tinha, mostraram-lhe uma primeira notificação, segundo a qual, confinado numa saleta, ele não estava sob custódia, detido ou preso. “Você não é necessariamente suspeito de ordenar, planejar ou instigar atos de terrorismo. O objetivo do interrogatório é determinar se você pode ser essa pessoa”, dizia o documento, que não dava a Miranda o direito de ficar calado: ou falava ou era processado. Apenas dez minutos depois, ele recebeu outra notificação-padrão. Agora era considerado detido. Poderia informar alguém e consultar um advogado – mas as duas medidas poderiam ser atrasadas por ordem superior, como de fato ocorreu. O interrogatório começou.

Senhas do celular e do computador

No Brasil, Greenwald ligou para os editores do Guardian, que contataram a firma de advocacia Bindmans LLP. Gavin Kendall, o advogado destacado para a emergência, tentou falar com Miranda pelo telefone, mas a polícia não deixou. Seguiu então para Heathrow. Greenwald sentou-se ao computador para avisar Laura Poitras e Edward Snowden. “Fiquei o dia todo falando com eles. Ficaram com muita raiva. [As autoridades britânicas] acharam que o David era o elo mais frágil. Não fariam isso com americanos ou ingleses”, disse Greenwald no fim de agosto.

No aeroporto de Londres, o interrogatório continuava. Seis agentes se revezavam, e um sétimo aparecia à porta às vezes. Perguntavam sobre Laura, sobre Snowden (com quem Miranda nunca falou). Pediram o endereço de Laura em Berlim (o brasileiro tinha jogado fora o papel em que Greenwald o anotara). De vez em quando desviavam o assunto para os protestos no Brasil e a vida de Miranda (teve infância pobre e, aos 28 anos, estuda marketing).

Miranda fala inglês bem. Mas, cansado, pediu um intérprete e não teve. Pediu também papel e caneta para anotar as perguntas (os policiais tomavam notas em cadernos), sem efeito. Em certo momento, deixaram-no sozinho na sala. Ele começou a falar alto para a câmera – “Isso é tortura, quero que fique pelo menos uma pessoa aqui comigo” – até que mandaram alguém. Recusou-se a beber a água que traziam. No meio da tarde, foi escoltado até uma máquina, onde pegou uma Coca-Cola e um chocolate. Depois de oito horas, Miranda pôde falar com Kendall. O advogado o aconselhou a entregar as senhas do celular e do computador. “Se achassem que eu não estava cooperando, eu poderia ir para a cadeia. Foi a ameaça que fizeram o dia inteiro.” A polícia também pediu as senhas para decodificar os arquivos enviados por Laura, mas o brasileiro afirma que não as tinha nem tem. No celular havia fotos de uma viagem a Búzios com Greenwald. Os dois estão juntos há nove anos.

Criptografia sofisticada

Quando Miranda foi liberado, depois de nove horas contadas, levaram-no para o saguão da Imigração, vigiado por dois agentes. Ele tinha sido encaixado num voo da British para o Rio no dia seguinte e, ironicamente, teria que entrar no país que acabara de detê-lo. Irritado, gritou para um dos policiais: “Quero falar com a minha embaixada, quero voltar para o meu país!” Por fim conseguiram um voo da TAM para a mesma noite. Antes do embarque, Miranda pediu o telefone de um funcionário da companhia aérea. Tentou três vezes ligar para Greenwald, sem sucesso. Falou com um amigo e pediu que avisasse ao parceiro que estava bem.

Nos dias seguintes, o governo britânico alegou que o brasileiro possuía “informações roubadas que ajudariam o terrorismo”. Também revelou-se que o Guardian, pressionado pelas autoridades, tinha destruído documentos passados por Snowden. Em carta ao Ministério do Interior, os advogados de Miranda classificaram como ilegal a utilização da lei antiterror no caso dele. “É sabido que se a polícia quiser acesso a material jornalístico pessoal e confidencial precisará obter um mandado judicial. O uso dos poderes do Apêndice 7 contra nosso cliente parece ter permitido à polícia contornar importantes proteções”, argumentaram.

Uma polêmica irrompeu depois que um colunista americano comparou Miranda a uma “mula” de traficantes. “O jornalismo existe para dar transparência aos atos dos poderosos, e por isso trabalha com segredos de Estado. A espionagem americana não deixa a internet livre, então temos que entregar coisas pessoalmente. Se as pessoas pensam que é crime possuir documentos, pensam que o jornalismo é crime”, rebateu Greenwald. Ele contou que a polícia londrina, que busca indícios para incriminar Miranda, tinha acabado de entregar um informe à Justiça sobre o caso. “Eles conseguiram saber quantos documentos estão nos pen drives [58 mil, segundo o governo britânico], mas não conseguiram abrir nenhum porque estão protegidos por uma criptografia sofisticada.”

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Claudia Antunes é editora de piauí