Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A morte espreita o ofício do jornalista

O recente atentado (com armas de fogo e granadas, sem vítimas) contra as instalações da rede mexicana Televisa, em sua sucursal de Monterrey (terça-feira, 6/1), requer no mínimo uma tentativa de análise muito além dos dados de um boletim de ocorrência numa zona de fronteira, a norte com os Estados Unidos, mergulhada num permanente e assustador clima de guerra entre o narcotráfico e as forças de segurança. No meio de tudo, cidadãos inocentes despedaçados por balas perdidas ou rajadas de metralhadoras.


Para observadores mais antigos e atentos da cena política e social do México, um incidente histórico logo vem à mente como uma espécie de aviso e referência obrigatória da atual situação do país, desafiado e encurralado pelos quatro grandes cartéis do narcotráfico, o chamado crime organizado, que só no ano passado fez 5.360 mortos. O tal incidente é o assassinato do colunista Manuel Buendía, baleado em l984 com cinco tiros pelas costas, à luz de um fim de tarde, na calçada de um estacionamento de uma das avenidas mais movimentadas da Cidade do México, a Insurgentes.


Rede de crimes e corrupção


Um delinqüente foi preso, logo ruidosamente apresentado como autor físico do atentado, mas até hoje o caso não foi esclarecido a contento. Ninguém, na verdade, tem se atrevido a apontar, com certeza, os mandantes da morte do jornalista, que se tornou um símbolo de coragem e sacrifício de sua profissão. Não faltam também, até hoje, conjeturas ou hipóteses comentadas discretamente: a execução se deveu, entre outros motivos, às denúncias de Buendía, então veterano e influente colunista do jornal Excelsior, sobre a penetração do narcotráfico nas altas esferas da Secretaría de Gobernación (o Ministério do Interior mexicano).


Buendía também vinha denunciando em sua muito lida coluna ‘Red Privada’ a descarada, e tradicional, corrupção no poderoso sindicato petroleiro mexicano, que congrega os trabalhadores da gigantesca estatal Pemex. Rumores na época, espalhados por mentes algo fantasiosas, atribuíram à CIA a autoria intelectual do crime. Como nos filmes de Hollywood, o agente Buendía, de repente, não mais serviria aos interesses locais da casa e por isso foi borrado do mapa.


A julgar pelos temas explosivos abordados por Buendía, fica claro que o jornalista, pouco antes de sua morte, sabia que se expunha de forma perigosa, suicida até, por conta de suas denúncias, aos poucos ficando preso numa intrincada e sinistra rede de crimes e corrupção, não só por parte do narcotráfico como de pilares do próprio sistema mexicano – sindicatos, burocracia, exército –, naquele tempo fortemente repressivo, incluindo o controle férreo dos meios de comunicação.


Vigilantes do poder público


É verdade que desde 2000, quando o candidato presidencial de oposição Vicente Fox derrotou nas urnas o rival do todo-poderoso PRI – Partido Revolucionário Institucional, no comando do país havia 70 anos, o sistema, enfim democratizado, concedeu ampla liberdade de expressão, já ensaiada no governo anterior, do presidente Ernesto Zedillo, dando à imprensa escrita sobretudo, de alto nível técnico e profissional, mais tranqüilidade e espaço para fazer seu papel: a crítica e a análise do país e seus governantes. Contudo, à medida que a liberdade de expressão cresce e se aprimora, continuam sendo assassinados jornalistas por todo o México.


De fato, nos últimos anos o México tornou-se um dos países mais perigosos para o ofício jornalístico, com a morte registrada, desde l987, de 76 profissionais, a maioria deles de jornais do interior ou da fronteira com os Estados Unidos, invariavelmente dedicados a denunciar as barbaridades do narcotráfico e suas obscuras ligações com o poder estabelecido. Desde 2000, foram mortos 38 repórteres e colunistas, e oito desapareceram.


Curiosamente, boa parte dos jornalistas assassinados eram ainda jovens, gente na casa dos 35, 40 anos, provavelmente movidos por um desejo íntimo, tão próprio do ofício, de ganhar notoriedade entre os leitores e o respeito dos pares, ao mesmo tempo cumprindo o objetivo maior, o de funcionar como zelosos e equilibrados vigilantes do poder público.


Insinuação reveladora


Insistiram em suas denúncias, receberam ameaças, mas optaram pelo risco calculado e acabaram fuzilados nas ruas, em um caso particular na frente dos filhos pequenos, na saída de uma escola. Alguns poucos, quando as ameaças se estenderam às suas famílias, foram mais cautelosos e se mudaram para os Estados Unidos. O caso mais conhecido de auto-exílio foi o do proprietário e presidente do grupo Reforma, de Monterrey, que edita o competente jornal do mesmo nome na Cidade do México, Alejandro Junco de la Vega, que, com a família, em setembro passado, foi morar em Austin, no vizinho Texas.


Quase todos os assassinatos acabam na mais descarada impunidade, levando a Associação Mexicana de Editores de Jornais (AME) a exigir, com crescente freqüência, leis federais mais duras para os crimes contra jornalistas. Não poucas vezes, as próprias autoridades locais, membros da polícia, da classe política e do Judiciário, ameaçados ou corrompidos pelos fartos dólares do narcotráfico, fazem corpo mole nas investigações, o problema se arrasta, e a perda de um jornalista só fica mesmo na lembrança da família.


A propósito, o suposto envolvimento cúmplice de autoridades com o narcotráfico é claramente insinuado na inscrição deixada nas paredes externas pelos delinqüentes mascarados que atacaram Televisa em Monterrey, no horário do noticiário noturno da emissora: ‘Parem de transmitir notícias sobre nós, transmitam também sobre os narcomandatários’.


Aumento de incursões letais


Dias atrás, o presidente mexicano Felipe Calderón, sóbria figura de estadista e decidido a combater com mais rigor e energia a desgraça do narcotráfico, montou uma ampla operação de relações públicas ao redor do mundo, por meio de seus embaixadores e cônsules, para esclarecer que o México, suas ruas e cidades, não se tornaram, ao contrário do que divulga a imprensa internacional, o reinado da insegurança e do pavor; não há no país caos urbano algum, principalmente na cidade do México, gerado pelo pânico dos cidadãos à mercê de balas perdidas e o narcotráfico tem recebido duros e constantes ataques das forças federais.


Ironicamente, talvez mesmo por causa desses ataques, os cartéis, inimigos mortais entre si, agora perseguidos e apertados pela repressão oficial, ficaram mais ousados e cruéis na disputa feroz de cada palmo de território e clientela; daí, o aumento, nos últimos tempos, das suas incursões letais, que não poupam ninguém: num único dia eliminam a tiros cinco ou seis concorrentes ou torturam e liquidam os dedos-duros infiltrados na rede. E acaba sobrando também para os jornalistas mais corajosos e fuçadores.

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Jornalista, ex-correspondente da revista Veja no México e América Central