Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um presságio histórico da política de comunicação

O estado do Rio Grande do Sul dá um passo importante com a conclusão da primeira etapa de criação do conselho estadual de comunicação (ver aqui). Depois de cinco reuniões e encontros entre representantes do governo e da sociedade civil foi definida a minuta do Projeto de Lei (ver aqui). O documento de cinco páginas soma-se a esforços de alguns outros Estados e tem como objetivo tratar de uma questão desamparada pelo governo federal, o problema da total desregulação do setor de mídia brasileiro (ver aqui).

O debate sobre a criação de conselhos foi resgatado pela esquerda brasileira com o objetivo de reivindicar a participação popular no período pós-ditadura. Os conselhos foram propostos como órgãos vitais da república e do exercício da democracia. Num primeiro momento a estratégia era provocar a participação da sociedade na gestão das cidades. A conquista de elementos de democratização na política brasileira possibilitou que os conselhos se transformassem em elementos centrais da luta pelo acesso a direitos fundamentais e melhoria da qualidade de vida das pessoas.

O cenário rio-grandense atual não deixa dúvidas quanto à mobilização do governo pela ampliação do processo democrático que abre caminho para a descentralização e para a participação social na gestão da comunicação. É quando, pela primeira vez, há a real possibilidade de criação do conselho estadual de comunicação, apesar dos limites de atuação. Concordo, pois, precisamente porque o conselho está se estruturando, suas linhas estão sendo escritas de forma participativa, que as transformações já começaram a ocorrer, mesmo que de forma lenta quando comparado a outras experiências de conselhos de comunicação, por exemplo, o conselho municipal de comunicação de Porto Alegre.

Muitas pessoas não sabem e outras parecem não querer falar sobre a experiência da prefeitura de porto alegre em tentar regulamentar a comunicação (digo isso pela dificuldade de encontrar material sobre o assunto). Decorre que, de forma sucinta, a criação de um conselho municipal de comunicação ocorreu estrategicamente por vontade política do poder Executivo. A criação do conselho acontece em 1989 através da portaria nº 9426 assinada pelo prefeito da época, Olívio Dutra.

Com o objetivo de reunir informações sobre o conselho municipal de comunicação de Porto Alegre procuramos Pedro Luiz da Silveira Osório que participou da coordenação de comunicação da prefeitura municipal em duas gestões, 1989-1993/1993-1997 e escreveu a dissertação “Comunicação e cidadania: a contribuição da administração popular de Porto Alegre para um novo modelo de comunicação política e governamental”,2003 – Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (dissertação de mestrado), não publicada.

Abaixo, a entrevista.

“Um instrumento que permitisse a interlocução com a sociedade”

Qual foi a participação da sociedade civil na criação do conselho municipal de comunicação em Porto Alegre?

Pedro Luiz da Silveira Osório – Não foi bem participação da sociedade civil, aqui que entram detalhes interessantes. Nós assumimos e eu integrei a coordenação de comunicação da prefeitura municipal em duas gestões. A primeira, na gestão do Olívio, no primeiro governo da administração popular e no segundo quando o Tarso foi eleito prefeito e eu já era coordenador que era o cargo de secretário de comunicação. O conselho teve três momentos importantes, o terceiro eu já não participei e não posso falar com tanta propriedade. Conquistamos o governo municipal e quem coordenou e trabalhou na campanha para a prefeitura municipal e depois assumiu a coordenação de comunicação foi um professor e jornalista militante chamado Daniel Herz (ver aqui).

O Daniel Herz tinha uma larga militância nacional e havia participado da constituinte e, portanto, da criação do conselho de comunicação social do congresso, que foi regulamentado anos depois. Ele chega com um projeto completamente diferente pra área de comunicação centralizando recursos orçamentários, humanos e técnicos, portanto, centralizando a comunicação no governo. E a sua ideia era a implantação municipal de uma proposta dos movimentos que lutavam pela democratização do país naquela época da constituinte. Nós assumimos a prefeitura em 1989 e em 1988 houve toda uma movimentação para a constituinte, para a criação do capítulo da comunicação na constituição. E as duas razões do Daniel para criar esse conselho de comunicação são as seguintes: primeiro, em virtude da sua militância na área e, segundo, porque a prefeitura, o governo municipal, entra cercado pelos meios de comunicação, completamente cercado e sem recursos, absolutamente sem recursos. Uma prefeitura sem recursos. Nós entramos e arrecadávamos 100 e gastávamos 104, em termos simbólicos. E lutamos muito para criar uma estrutura de comunicação, mas logo percebemos que deveríamos ter um instrumento que nos permitisse estabelecer uma interlocução com a sociedade sobre o comportamento da mídia, o papel da mídia (ver aqui). A solução imediata foi criar através de uma portaria na expectativa de levar a Câmara e transformar num conselho criado por uma lei, com base numa lei, assentado numa lei. Isto nunca aconteceu, até quanto eu sei.

O “espírito” do orçamento participativo

No primeiro governo criamos esse conselho por uma portaria, numa constituição provisória coordenada pela secretaria de comunicação, mas neste governo ele não foi implantado porque eram tantas as dificuldades. A luta da comunicação foi tão pesada que nós não tivemos como dar segurança a esse movimento, o orçamento participativo ainda estava embrionário. Ele começa a nascer no governo Olívio de uma forma embrionária e o nosso esforço, a nossa energia da área de comunicação foi canalizada para criar instrumentos e ferramentas de comunicação institucional que nos permitisse estabelecer uma interlocução diferenciada com a sociedade. Portanto, o conselho foi criado e ficou ali. O Daniel não termina a sua gestão, ele acaba saindo e assume o Guaracy Cunha, que depois veio a ser secretário de comunicação no governo Olívio no Estado. Nesse período do Guaracy Cunha, quando instalamos o conselho, já tínhamos um clima diferenciado, tínhamos mais fôlego na prefeitura, o orçamento participativo se consolidando e a prefeitura teve um setor de comunicação, modéstia a parte, porque foi uma coisa coletiva que corria e foi significativa paralela ao orçamento participativo.

Criamos um programa de rádio e TV chamado Cidade Viva que marcou época porque quem falava era a população. Nos governos do PT que eu participei foi sempre a população falando, então, a população se apropriando daquilo que o governo fazia, daquilo que era dela e também reclamando e colocando algumas questões. Isso nos deu clima para implantar o conselho municipal de comunicação e fizemos um lançamento. O Murilo Ramos esteve aqui em Porto Alegre e deu uma palestra e compusemos o conselho ainda com base na portaria e este conselho teve um papel significativo porque foi ainda que provisoriamente e sem a participação dos empresários, ainda que convidados. Foi esse conselho de comunicação que permitiu a criação do canal comunitário, primeiro canal comunitário do país e foi o conselho que se mobilizou para organizar o primeiro seminário de radiodifusão comunitária que veio depois a germinar na ABRAÇO. O conselho estabeleceu uma interação forte com os jornais de bairro, criando uma política de relacionamento com os jornais de bairro, comunitários e alternativos. Mas ficou restrito a um grupo do qual os empresários se recusavam a participar.

O conselho teve um papel significativo porque envolvia muitas entidades, universidades e representantes dos círculos de pais e mestres. Participavam das reuniões os representantes dos jornais e um grupo significativo do ponto de vista social. O conselho era alimentado, digamos, pelo “espírito” do orçamento participativo. A sociedade se mobilizava para a implantação desse conselho ainda que de uma forma muito restrita, ela se mobilizava porque vinha emulada pelo orçamento participativo. Porque o orçamento participativo foi uma ação política, mas fundamentalmente uma ação de comunicação.

“Estávamos longe de um conselho estadual de comunicação”

Quais as limitações que o conselho municipal de comunicação apresentou?

P.L.S.O. – Uma dificuldade que depois veio a desaparecer foi a implantação de políticas de comunicação no município, a medida que os meios de comunicação estão 'regulados' por leis federais e, evidentemente, nós não tínhamos o cabo, que a recém dava os primeiros passos, a internet começando a se disseminar e nós não tínhamos essas opções que depois se colocaram como intervenção local na comunicação, propriamente dita.

Então, nós nos deparamos com essa dificuldade. Nós nos deparamos com uma dificuldade clássica que é um certo desconhecimento, por parte dos conselheiros, da questão da comunicação. A sociedade brasileira não esta, digamos, “alfabetizada”, nem audiovisualmente, nem do ponto de vista das políticas de comunicação. Em determinados momentos estabelecia uma tendência censória. Em algumas reuniões chegava a predominar a reivindicação de suspensão de determinado programa, reivindicando a proibição de determinado programa. Coisa que não esta de acordo com a democracia e nem com o propósito de um conselho de comunicação. Um conselho deve, na minha opinião e na de muitos, estabelecer normas, diretrizes que venham a ser acatadas pelos órgãos responsáveis, pelo controle de comunicação e venham a ser adotadas pelos meios de comunicação.

Não há como imaginar um conselho que interfira diretamente na RBS ou na TVE. Ele deve traçar e propor uma política que o município implementa e regula os meios de comunicação. E claro, ele deve criar um “caldo de cultura”, uma discussão pública sobre os conteúdos dos meios de comunicação. De forma que os meios de comunicação, além da lei, se sintam pressionados pela sociedade para discutir o que estão fazendo.

Então, essa tendência de proibir era uma coisa perigosa porque nós estávamos saindo de uma ditadura e nós lutamos o tempo todo contra isso. Não interessa subir ao poder e dizer, “Olha, isso pode e isso não pode”. É a sociedade junto com o governo que deve decidir, senão, nós vamos estabelecer um pensamento único, vamos cair na lógica de um regime autoritário.

Essa era uma das dificuldades, mas, naquele governo, o conselho seguiu fazendo este papel. Atuando, promovendo alguns debates, seminários de qualificação, trazendo algumas pessoas para discutir conteúdo, legislação. Mas claro, estávamos longe de algo que, embora a gente fale com uma certa mágoa pela pouca importância que o governo deu, estávamos longe de qualquer coisa como conferência de comunicação e conselho estadual de comunicação.

O que fazer com um conselho de comunicação?

Os vereadores tiveram alguma participação no conselho?

P.L.S.O. – Só no governo seguinte. Nos dois governos seguintes. No Governo do Raul e depois no governo do Tarso sucedido pelo Verle na prefeitura de porto alegre. Houve movimentos para transformar o conselho municipal de comunicação em lei. Chegou a acontecer uma conferência municipal de comunicação e este projeto foi encaminhado para a câmara de vereadores e acabou não sendo votado. O governo municipal numa determinada negociação acabou não 'bancando' a questão do conselho municipal de comunicação por razões políticas que eu não me lembro quais eram.

Assim, o conselho municipal de comunicação não virou lei, perdemos a prefeitura e os governos que sucederam desarticularam a estrutura de comunicação que tínhamos construído.

E as dificuldades de implantação de um conselho municipal de comunicação?

P.L.S.O. – As principais dificuldades para a implantação do conselho de comunicação em Porto Alegre se deram por causa dos limites da ação municipal que eram restritos, dadas as características da tecnologia da época, hoje já não são. É possível ter um bom conselho municipal de comunicação com as tecnologias sobre as quais nós podemos discutir e incidir, mas aonde o conselho incide, de que forma ele incide? Acho que esse é o principal problema: o modo como se articula um conselho e o modo como se cria uma massa de pensamento que possa receber a atenção especial do poder público.

A experiência internacional pode nos ajudar, muitos órgãos pelo mundo afora que exercem o papel regulatório, mas acho que nós não podemos perder de vista o seguinte: a sociedade não pode abdicar do Estado. A ideia de que a sociedade autonomamente se organize é uma ideia que nos leva a um beco sem saída porque ela depende de estruturas institucionais para a execução e para a sua permanência. Então, essa nossa preocupação tem que ser paralela, mas o problema maior é esse: o que fazer com um conselho de comunicação? Há o que fazer, sem dúvida há. Mas nós não podemos aspirar poderes que não nos competem e competências que nós não temos. Essa é a discussão principal.

“Se sai uma coisa suja, não tenho pra quem reclamar”

A mídia nos induz a dois erros. Primeiro, de achar que tem donos; e tem mesmo porque se comportam como donos. E, segundo, o de achar que qualquer crítica é um atentado à liberdade de expressão. E o senso comum incorpora essa ideia, né? “Não pode mexer com conteúdo porque tá fazendo uma coisa censória”, isso é um equívoco porque não há um direito absoluto, não há nenhum direito que se impunha sobre todos os outros.

Então, mesmo o direito a liberdade de expressão tem que ser regrado, tem que ser limitado. Eu não posso dizer o que bem penso, o que acho sobre qualquer pessoa. Não pode ser assim eu não posso colocar qualquer conteúdo. E o que disse o Lula uma vez e o que disse a Dilma sobre o melhor controle ser o controle remoto é uma grande bobagem porque ignora o seguinte: os meios de comunicação ao mesmo tempo que eles informam eles formam, por exemplo, se eu tô em casa e abro a torneira e sai água suja eu tenho pra quem reclamar, eu aqui em Porto Alegre vou no departamento municipal.

Agora, se eu ligo a TV e sai uma coisa que eu acho suja eu não tenho pra quem reclamar, mas é mais do que isso, muitas vezes, eu não percebo que sai “suja”, eu povo, não tenho essa informação, não tenho essa percepção, não tenho essa sensibilidade, e com frequência deixo a minha família, os meus filhos expostos a determinados conteúdos sem perceber que aquilo traz uma consequência, seja ela boa ou ruim.

A história da comunicação em Porto Alegre

A presente entrevista de Pedro Luiz Osório é uma verdadeira aula de história e filosofia da comunicação de Porto Alegre. Através de sua coordenação e contribuição, Osório, faz uma análise da constituição de um modelo de comunicação e suas relações com o exercício de uma determinada cidadania.

Desta maneira, é interessante observar que a comunicação foi ganhando novos patamares de importância nas distintas gestões públicas municipais. Em princípio, promover uma discussão sobre comunicação parecia ser algo desnecessário, até fora da realidade. Para abordar a questão foi preciso construir um mecanismo de comunicação direta com a sociedade, portanto, saindo do eixo “emissor (governo municipal) – intermediário (empresa de comunicação) – receptor (morador da cidade de Porto Alegre)”.

No período citado por Osório parece que uma nova onda de comunicação foi instalada em Porto Alegre com a possibilidade das pessoas se apoderarem daquilo que é delas, ou seja, a comunicação, assim como a saúde e a educação, também funcionando como um bem público, como um direito que não termina simplesmente no acesso a informação, mas que só tem sentido na dimensão do direito à expressão, na participação de todos e todas.

Passaram-se 23 anos desde o governo Olívio Dutra em Porto Alegre. Na procura exaustiva e interminável por informações que pudessem auxiliar numa resposta ao dilema da comunicação na capital do Rio Grande do Sul encontramos, ao contrário do que nos acostumamos a pensar, que a comunicação foi uma das principais estratégias dos governos da esquerda, mas não uma das prioridades políticas no contexto histórico. Isso significa que a comunicação pode ter uma história e uma filosofia que influenciaram todas as lógicas dos acontecimentos políticos na atualidade. E mais, que essa história e essa filosofia precisam ser preservadas e resgatadas se quisermos entender o cotidiano da comunicação (empresarial, comunitária etc.) brasileira e rio-grandense.

No que se refere ao estado do Rio Grande do Sul, as considerações ampliam-se. Todas as previsões e determinações apontam para a difícil batalha que o governo irá enfrentar para legitimar o conselho estadual de comunicação; Mas, confiantemente, os ventos sopram a seu favor. Resta saber se quem interpreta e legisla sobre os acontecimentos está disposto a fazer valer sua condição cidadã e cumprir a sua parte.

Se a história da comunicação em Porto Alegre, aqui relatada por Pedro Luiz Osório (a quem gentilmente agradecemos), deixar de ser uma sombra no passado, este breve artigo, que termina aqui, terá cumprido o seu papel.

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[Marlos Mello é jornalista e psicólogo, Porto Alegre, RS]