Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O jornalista quando chora

Miriam Leitão chorou. Não foi voz embargada, foi choro mesmo. Por acaso havia outros jornalistas na sala: choraram ao ouvir a veterana repórter deixar de lado sua cruzada ambientalista e suas analises sobre a economia, para falar sobre Zilda Arns. Foi na quarta-feira, às 12h30, no Repórter CBN.


Tirar lágrimas da audiência nem sempre é um recurso jornalisticamente correto. Sobretudo em trabalhos editados, parece truque. Mas comover-se ao vivo, diante do público, torna a profissão do jornalista menos burocrática, menos fleumática. Acaba com o mito da objetividade. Neutraliza os ressentimentos que a própria imprensa é capaz de produzir. Irradia humanidade.


Miriam Leitão chorou quando falou em solidariedade – Zilda Arns trouxe a noção de solidariedade para a vida pública brasileira. (Alberto Dines)


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Zilda Arns: chamado que salvou vidas


José Maria Mayrink


Reproduzido do Estado de S.Paulo, 14/1/2010; intertítulos do OI 


Se os homens fecham as janelas, Deus abre uma porta – assim pensou a médica Zilda Arns Neumann, depois de conversar com o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, um de seus 12 irmãos, que lhe telefonara para perguntar se aceitava empreender uma obra capaz de salvar milhões de crianças. Pediatra e sanitarista, viúva e mãe de cinco filhos, ela estava encostada atrás de uma mesa da burocracia da Secretaria da Saúde do Paraná, após 23 anos de trabalho – os últimos 13 como diretora de Saúde Materno-Infantil do Estado, em Curitiba.


D. Paulo, então arcebispo de São Paulo, ligou para dar um recado do secretário executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), James Grant, com quem acabara de se encontrar em Genebra, na Suíça. ‘Por que a Igreja Católica, que tem tanta influência nas camadas mais pobres da população, não faz uma campanha contra a desnutrição?’, propôs Grant, dispondo-se a financiar a obra se d. Paulo quisesse começar por sua arquidiocese. O cardeal argumentou que não teria tempo para tal empreitada, mas sugeriu o nome de Zilda.


‘Tenho uma irmã que é especialista na área e pode fazer isso’, respondeu o cardeal, e imediatamente levou a proposta adiante. ‘Não tenho grande mérito, a não ser o de aceitar a ideia’, disse d. Paulo 20 anos depois, como se sua participação tivesse parado aí. Não parou. Foi ele também quem indicou o nome do então arcebispo de Londrina, d. Geraldo Majella Agnelo, para ajudar na organização de um projeto para reduzir a mortalidade infantil que se transformaria no ano seguinte, setembro de 1983, na Pastoral da Criança. Foi um trabalho árduo que Zilda iniciou em casa, numa noite de vigília e oração.


Começou conversando com os filhos na cozinha, onde se reunia com eles antes de irem dormir, para tomar uma vitamina e contar as coisas do dia. ‘D. Paulo me telefonou e a mãe vai preparar hoje à noite um projeto que vai salvar milhões de crianças no Brasil e no mundo’, disse Zilda, explicando o que pretendia fazer. Tomou um café preto para espantar o sono, pediu que Deus a ajudasse – ‘Vinde, Espírito Santo, enchei os corações de vossos fiéis’ – e se pôs a meditar sobre aquele trecho do Evangelho que narra o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. ‘Se Jesus mandou que seus discípulos dessem de comer, eles mesmos, ao povo que estava com fome, achei que, em vez de ficar dependendo do governo, nossas famílias deviam se organizar para cuidar de seus filhos.’


Escolheu-se então o município de Florestópolis – 14.700 habitantes, 73% deles trabalhadores boias-frias – para a implantação do projeto. Situado a 80 quilômetros de Londrina, arquidiocese de d. Geraldo Agnelo, que poderia acompanhar tudo de perto, era o campo ideal. ‘Florestópolis era o fim do mundo, tinha o maior índice de mortalidade infantil do Estado e vivia sob a influência de uma usina de açúcar de Porecatu que pagava os boias-frias com vales que eles tinham de gastar no mercado da fazenda, comprando coisas de que não precisavam’, lembra d. Geraldo Agnelo, atualmente cardeal primaz de Salvador e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).


Três freiras


Quando Zilda voltou a Florestópolis, um mês após o lançamento do projeto, os líderes envolvidos, todos voluntários, já eram 76, quase todos funcionários públicos, principalmente professoras. ‘Era muita gente, mas não dispensei ninguém, para não desanimar’, disse a fundadora da Pastoral da Criança, que então dividiu os voluntários em cinco grupos, cada um encarregado de uma ação básica. Com a ajuda de técnicos da Secretaria da Saúde, a pediatra e sanitarista distribuiu apostilas para orientação dos primeiros coordenadores.


As coisas iam caminhando bem no segundo semestre de 1983, quando a Igreja decidiu transformar em Pastoral da Criança o projeto de redução da mortalidade infantil. O exemplo de Florestópolis suscitou iniciativas semelhantes em São Paulo – onde o então bispo auxiliar d. Luciano Mendes de Almeida repetiu a experiência na região episcopal do bairro do Belém – e, logo em seguida, no Rio Grande do Sul. A nomeação de d. Geraldo Majella Agnelo para a Comissão Episcopal de Pastoral (CEP) facilitou o processo, pois ele viajava com frequência para Brasília, onde tinha contato não só com outros bispos da CNBB, mas também com a direção do Unicef.


Antes de se mudar para a sede atual, a Pastoral da Criança funcionava na casa da dra. Zilda, que tinha ali também seu consultório particular de pediatria. Meio apertado, mas deu para conciliar enquanto os colaboradores não eram tantos e não havia tanto material como hoje. Como a médica trabalhava também no serviço público, as coisas foram ficando cada dia mais complicadas, pois não havia tempo nem espaço para tudo.


Os pobres, principalmente os pobres, recorriam sempre a ela – o que significava 18 consultas de graça em cada 20. A situação ficou ainda mais difícil quando a coordenadora da Pastoral da Criança passou a viajar com mais frequência, com ausências de semanas seguidas. ‘Fico pouco em Curitiba, apenas alguns dias por mês.’


Nelson Arns Neumann, que também é médico pediatra e assumiu a função de coordenador nacional adjunto, substituía a mãe durante suas constantes viagens. Mergulhou de cabeça no programa, cujas atividades vem acompanhando desde a fundação – ele e os outros irmãos. Seguiram tudo de perto, apoiando e dando palpites – o voluntariado em família.


Eram adolescentes e crianças, em 1983, quando a dra. Zilda aproveitou a conversa, naquela noite em que fazia uma vitamina para eles na cozinha, para falar do telefonema de d. Paulo, o tio cardeal. Agora, Rubens é veterinário, Heloísa é psicóloga e Rogério é administrador de empresas. Sílvia, que também era administradora de empresas, morreu num acidente de carro em 2003 e deixou um filho, de 3 anos, que foi morar com a avó.


A família tem uma chácara, a 20 minutos do centro de Curitiba, que mãe e filhos compartilhavam, cada um em sua casa, como faziam os Arns em Forquilhinha, na colônia de imigrantes alemães de Santa Catarina, onde Zilda e seus irmãos – eram sete mulheres e seis homens – nasceram. Além de d. Paulo, havia mais um frade na família, frei Crisóstomo, franciscano como o cardeal. Três das mulheres se tornaram freiras.


Clima de guerra


Zilda queria ser médica e missionária, mas acabou se casando. Perdeu o marido, Aloysio, que morreu afogado, aos 46 anos, quando tentava salvar das ondas uma adolescente que o casal tinha sob sua tutela. A moça se salvou. Os Arns moravam num colônia alemã de Forquilhinha, em Santa Catarina, mas costumavam passar férias no litoral do Paraná, onde ocorreu o acidente.


Durante a Segunda Guerra, Zilda e seus irmãos acordavam de madrugada para ajudar a mãe a queimar livros e revistas escritos em alemão, porque tinham medo de seu pai ser preso. Uma noite, enterraram um gramofone e uma coleção de cem discos no meio do mato.


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O Nobel da Paz brasileiro


Eliane Cantanhêde


Reproduzido da Folha de S.Paulo, 14/1/2010; intertítulo do OI


Zilda Arns foi o que todas nós, ou muitas de nós, gostaríamos de ser ou de ter sido: uma mulher de infinita dedicação às suas crianças, à sua gente, ao seu país e ao seu mundo.


Ela morreu como viveu: chacoalhando em desconfortáveis jipes militares, aos 75 anos, numa guerra contra a pobreza, a sujeira, a ignorância. A favor da vida. Morreu para que tantos outros vivessem no pequeno Haiti, o mais miserável país da América Latina, quase um encrave da África pobre na região.


Médica, especializada em educação física e pediatria, coordenadora da Pastoral da Criança da CNBB, Zilda foi indicada três vezes pelo Brasil para o Prêmio Nobel da Paz.


Merecia, e seria uma honra para cada um de nós. Mas ela não era só brasileira, era do mundo.


Personagem única


Suas soluções simples, baratas e enormemente eficazes cruzaram fronteiras e foram salvar vidas em 15, 20 países pobres da América Latina e da África. Coisas assim como lavar as mãos, tomar banho, aproveitar os alimentos até o último detalhe. Quem não leu sobre macerar cascas de ovos para adicionar cálcio à alimentação de pobres? Quem não sabe da mistura caseira para salvar crianças de desnutrição e desidratação?


Sua história e seus ideais se confundem com os de um ícone mundial, que foi Madre Tereza de Calcutá. Mas Zilda não era freira, não usava hábito e dedicou sua vida à vida alheia, mantendo-se bonita, vaidosa, imensamente feminina. Não interpretou um papel. Era apenas ela mesma em ação.


Se Zilda Arns tivesse morrido de uma doença qualquer, de um acidente qualquer, mesmo assim sua morte teria imensa repercussão e geraria uma tristeza nacional. Quis o destino, ou a sua saga, que ela morresse no Haiti, num terremoto.


Torna-se, portanto, uma personagem única, cercado por símbolos e exemplos que deixam marcas, rastros. Zilda, definitivamente, não passou pela vida em vão.


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Zilda Arns, a mãe do Brasil


Frei Betto


Reproduzido da seção ‘Tendências/Debates’ da Folha de S.Paulo, 14/1/2010; intertítulos do OI


Pode-se repetir que ninguém é insubstituível, mas a dra. Zilda Arns, vítima do terremoto que arruinou o Haiti, era, sim, uma pessoa imprescindível. Nela mostrava-se imperceptível a distância entre intenções e ações. Formada em medicina e movida por profundo espírito evangélico -era irmã do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo-, fundou a Pastoral da Criança, alarmada com o alto índice de mortalidade infantil no Brasil.


Em iniciativas de voluntariado podem-se mapear dois tipos de pessoas: as que, primeiro, agem, põem o bloco na rua e depois buscam os recursos, e as que se enredam no cipoal das fontes financiadoras e jamais passam da utopia à topia.


Zilda Arns arregaçou as mangas e, inspirada na pedagogia de Paulo Freire, encontrou, primeiro, recursos humanos capazes de mobilizar milhares de pessoas em prol da drástica redução da mortalidade infantil: mães e pais das crianças de 0 a seis anos atendidas pela pastoral transformados em agentes multiplicadores.


Ela, sim, fez o milagre da multiplicação dos pães, ou seja, da vida. Aonde chega a Pastoral da Criança, o índice de mortalidade infantil cai, no primeiro ano, no mínimo 20%. Seu método de atenção às gestantes pobres e às crianças desnutridas tornou-se paradigma mundial, adotado hoje em vários países da América Latina e da África. Por essa razão, ela estava no Haiti, onde pagou com a morte sua dedicação em salvar vidas.


Sem temor


Trabalhamos juntos no Fome Zero.


No lançamento do programa, em 2003, ela discordou de exigir dos beneficiários comprovantes de gastos em alimentos, de modo a garantir que o dinheiro não se destinasse a outras compras. Oded Grajew e eu a apoiamos: ressaltamos que apresentar comprovantes não era relevante, valia como forma de verificar resultados. Haveria que confiar na palavra dos beneficiários.


Em março de 2004, no momento em que o governo trocava o Fome Zero pelo Bolsa Família, ela me convocou a Curitiba, sede da Pastoral da Criança. Em reunião com José Tubino, da FAO, e dom Aloysio Penna, arcebispo de Botucatu (SP), que representava a CNBB, debatemos as mudanças na área social do governo. Expus as tensões internas na área social, sobretudo a decisão de acabar com os comitês gestores, pelos quais a sociedade civil atuava na gestão pública.


Zilda Arns temia que o Bolsa Família priorizasse a mera transferência de renda, submetendo-se à orientação que propõe tratar a pobreza com políticas compensatórias, sem tocar nas estruturas que promovem e asseguram a desigualdade social.


Acreditava que as políticas sociais do governo só teriam êxito consolidado se combinassem políticas de transferência de renda e mudanças estruturantes, ações emergenciais e educativas, como qualificação profissional.


Dias após a reunião, ela publicou, neste espaço da Folha, o artigo ‘Fôlego para o Fome Zero’, no qual frisava que a política social ‘não deve estar sujeita à política econômica. É hora de mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate à fome e à miséria’.


E alertava: ‘Erradicar os comitês gestores seria um grave erro, por destruir uma capilaridade popular que fortalece o empoderamento da sociedade civil; (…) por reforçar o poder de prefeitos e vereadores que nem sempre primam pela ética e pela lisura no trato com os recursos públicos. O governo não deve temer a parceria da sociedade civil, representada pelos comitês gestores’.


Título eterno


O apelo da mãe da Pastoral da Criança não foi ouvido. Os comitês gestores foram erradicados e, assim, a participação da sociedade civil nas políticas sociais do governo. Apesar de tudo, o ministro Patrus Ananias logrou aprimorar o Bolsa Família e o índice de redução da miséria absoluta no país, conforme dados recentes do Ipea. Falta encontrar a porta de saída aos beneficiários, de modo a produzirem a própria renda.


Zilda Arns nos deixa, de herança, o exemplo de que é possível mudar o perfil de uma sociedade com ações comunitárias, voluntárias, da sociedade civil, ainda que o poder público e a iniciativa privada permaneçam indiferentes ou adotem simulacros de responsabilidade social.


Se milhares de jovens e adultos brasileiros sobreviveram às condições de pobreza em que nasceram, devem isso em especial à dra. Zilda Arns, que merece, sem exagero, o título perene de mãe da pátria.


[Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 65, frade dominicano, é assessor de movimentos sociais e escritor, autor de A Mosca Azul – Reflexão sobre o Poder (Rocco), entre outros livros. Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004)]