Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Onde o jornalismo não tem vez

Foto: S. Forrest/pa.picture alliance

Quando ouvimos histórias sobre jornalistas sendo perseguidos ou sobre violações relacionadas à liberdade de expressão, inevitavelmente pensamos em algum desses países comunistas ou ultrafundamentalistas como a Venezuela, a Coreia do Norte ou a Arábia Saudita. De fato esses países figuram entre os dez países mais censurados do mundo, conforme apuração da ONG Comissão para Proteção dos Jornalistas (CPC). No entanto, por pior que eles sejam em relação ao tratamento conferido à imprensa, seja ela nacional ou estrangeira, nenhum deles supera a jovem Eritreia.

“Eritreia, Eritreia, Eritreia, terra de fervor de nosso coração, viva seu povo”, canta a primeira estrofe do hino deste país localizado ao leste da África subsariana e que possui 121.329 km², menos da metade do Estado de São Paulo. Situado ao norte do Chifre da África e com um longo litoral que se estende pelo Mar Vermelho, o país rodou por mãos italianas e britânicas por anos antes de adquirir a independência da Etiópia, em 1991, após três longas décadas de conflitos armados. A partir daí seguiu o triste destino muito comum aos diversos povos africanos inseridos dentro do contexto do pós-colonialismo: ser governado despoticamente pela facção responsável por libertar o país de forças estrangeiras.

No comando encontram-se Isaias Afewerki e a Frente do Povo para Democracia e Justiça (FPDJ), presidente e seu partido, respectivamente — mas que na prática equivalem a um ditador e seu exército. Lá estão desde 1991, há trinta anos, sem que se cogite a possibilidade de que outra pessoa ou partido ocupem o governo da Eritreia. E não faltam candidatos bem dispostos, grupos rebeldes em geral, que operam nos desertos do Djibouti e da Etiópia e que há anos vagam em busca de povos enfraquecidos ansiando por “libertação”. Porém, a atuação quase selvagem desses insurgentes indica de forma muito clara que nada querem trazer de novo ao país que já não tenha sido implementado pelo seu atual governo. Seria trocar seis por meia-dúzia.

A Eritreia é um dos poucos países, inclusive, que ainda impõe firmes restrições relacionadas à saída do território nacional por parte de seus próprios cidadãos, obviamente com a finalidade de controlar a população e mitigar as possíveis denúncias que daí poderiam advir. Apesar desse desejo por parte do governo, o país figura em 5° lugar na lista de países de onde mais se originam pessoas em busca de asilo, com cerca de 3000 a 5000 mil eritreus fugindo — ou tentando fugir — do país mês após mês.

Essas e diversas outras informações estão detalhada em um longo e riquíssimo relatório apresentado em 2015 pela Comissão de Inquérito dos Direitos Humanos na Eritreia, dirigida pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que esmiúça com precisão as condições aterrorizantes sob as quais vivem os cidadãos eritreus, especialmente aqueles que ousam contrariar, denunciar, criticar ou questionar, ainda que de maneira branda, as “políticas” adotadas pelo governo despótico do país.

No que diz respeito à comunicação, a situação é bastante preocupante. Até o final de 2014 estimava-se que apenas 1% de toda a população tinha acesso a Internet, número bem abaixo dos 26,6% de todo o continente africano, que por sua vez está bem aquém da média mundial de 51%. O acesso se dá principalmente por meio de computadores em cyber cafés e lan houses, a grande maioria concentrada em Asmara, capital do país. Nas zonas rurais a Internet é basicamente inexistente. Como se isso não bastasse, o acesso é monitorado de maneira permanente pelo Governo, que tem todo o poder para bloquear o acesso a determinados sites. Os próprios proprietários e funcionários dos cyber cafés parecem receber algum tipo de incentivo para denunciar ao governo qualquer atitude suspeita protagonizada por algum dos usuários das máquinas. De mais a mais, não faltam testemunhos indicando a ocorrência de prisões e ameaças envolvendo usuários da Internet que simplesmente compartilharam informações ou se comunicaram com pessoas consideradas suspeitas pelo governo. Há mesmo uma crença generalizada no país de que o governo possui os meios necessários para rastrear e localizar a origem de um usuário caso ele resolva acessar um site considerado indevido pelo Estado. Porém, isso nem a própria Comissão de Inquérito foi capaz de confirmar.

Também de acordo com o relatório, verificou-se que, pelos menos desde 2001, não se vê na Eritreia qualquer coisa que se assemelhe àquilo que conhecemos como liberdade de imprensa, entendida precisamente como o direito de publicar informações sem a influência estatal através dos meios de comunicação de massa. Os poucos veículos independentes que costumavam existir, todos com estruturas precárias e sem nenhuma condição para combater os abusos do governo, tiveram suas redações fechadas e seus jornalistas silenciados através de prisões, torturas ou desaparecimentos. Isso porque “crítica ao governo”, na Eritreia, significa traição, expressamente. Toda informação que circula pela Eritreia tem caráter oficial e recebe o rigoroso controle do Ministério da Informação, órgão responsável não apenas por carimbar as notícias difundidas entre a população, mas também por autorizar e fiscalizar toda a atividade jornalística que ocorre no país.

Uma breve leitura do trecho do relatório relativo à liberdade de imprensa deixa claro que só existem três caminhos que o jornalismo pode seguir no país: o oficial, o estrangeiro ou o clandestino. No primeiro você é um cidadão eritreu em gozo dos direitos políticos, livre de qualquer suspeitas, alinhado aos princípios governista, sem qualquer autonomia ou liberdade para expressar aquilo que realmente pensa e que possui o devido registro no Ministério da Informação, que vigiará cada uma das suas atividades — dentro e fora do exercício da profissão. No segundo você é um jornalista estrangeiro com acesso restrito ao país cujo ingresso ocorre mediante a permissão com prazo de validade não superior a um ano, expedido pelo mesmo Ministério da Informação que detém total discricionariedade para rejeitar sua entrada e que sem dúvida alguma irá monitorar cada um dos seus passos pelo país, não permitindo que você veja aquilo que eles não querem que você veja. Terceiro, você não está em nenhum desses casos e muito provavelmente está sendo perseguido e logo será preso, interrogado, torturado e por fim, executado.

O que quer a população queira saber, deverá ler no Haddas Ertra, o canal de comunicação oficial do Governo, aguardar para que seja transmitido pelos dois canais televisivos ou nas três estações de rádio existentes ou procurar nos diversos jornais impressos e em circulação no país, todos devidamente fiscalizados e chancelados pelo Ministério da Informação. Na prática, isso equivale a dizer que toda informação oficialmente disponível no país não é mais que propaganda pró-governo convenientemente empacotada em um invólucro de informação livre e isenta. A justificativa empregada pelos governistas para legitimar as restrições impostas ao livre exercício do jornalismo no país segue à risca a narrativa totalitária de “assegurar a concretização dos interesses nacionais” ou “preservar a ordem pública”, clássicos jargões frequentemente invocados quando se pretende disfarçar a violação sistemática de direitos humanos com um verniz de patriotismo e heroísmo político.

E se engana quem pensa que os atos de censura direcionados ao exercício da liberdade de imprensa ocorrem todos por debaixo dos panos, sem haja um procedimento escrito com validade jurídica. As próprias leis nacionais asseveram a repressão aos jornalistas, como o próprio documento que regulamenta a profissão no país, e que estabelece, conforme o relatório da Comissão, que “o jornalista e o editor-chefe do jornal que publica artigos sobre assuntos proibidos, perturbando a paz geral, devem ser processados perante a Suprema Corte por terem cometido os seguintes crimes: injúria às autoridades constitucionais, insultos aos emblemas nacionais, ataques à independência do Estado, comprometimento do poder defensivo do Estado, alta traição, traição econômica, colaboração com o inimigo ou pela provocação e participação nessas ofensas”, quase todos punidos com longos anos de encarceramento ou, não raras as vezes, com prisão perpétua.

Esse controle exercido sobre a atividade jornalística no país, e que infelizmente é reproduzido em várias outras nações dentro e fora do continente africano, é empregado sempre com finalidade de manipular a opinião pública de modo a manter sólidas as bases que legitimam o poder estatal, quase sempre destacando as atividades positivas do governo, reiterando os propósitos libertadores que alçaram aqueles que lá estão ao comando da nação e impedindo a introdução e a disseminação de notícias estrangeiras capazes de pôr em xeque a visão que os cidadãos nacionais têm de seus respectivos governos.

Abaixo seguem alguns relatos feitos à Comissão pelos jornalistas eritreus que testemunharam os procedimentos de censura dirigidos pelo Governo da Eritreia:

“Recebi orientação em minha carreira de jornalista para escrever sobre desenvolvimento e nada mais. Você tinha que dizer apenas coisas boas sobre o país. Você tinha que dizer coisas positivas o tempo inteiro.”

“Nós tínhamos que divulgar informações sobre as conquistas do Governo, como a construção de uma nova barragem, mas nunca sobre os problemas ou questões enfrentadas pela população.”

“Não havia nenhum acesso à informação. Havia restrições quanto a ‘quem’ podia falar ‘o que’. Não fazíamos investigações nem entrevistas. Você recebe o texto e diz aquilo que te mandam dizer.”

“A principal razão pela qual eu parti foi porque minha profissão foi prejudicada. Eu não estava contando a verdade, a situação real do meu povo, mas apenas aquilo que meus supervisores queriam que eu dissesse.”

“A quantidade de trabalho que você deve fazer é incompatível com o seu salário. Você trabalha muito, às vezes 10 horas por dias, às vezes das 8 às 22 horas, e recebe muito pouco, 500 nafka (cerca de R$ 188) por mês. Isso era considerado parte do serviço nacional. O dinheiro é suficiente apenas para três dias.”

A interferência estatal nas atividades dos jornalistas começa logo no início da profissão, em um curso desenvolvido inteiramente de modo a servir aos interesses e propósitos do Governo. E não se trata de um curso formal com duração de quatro a cinco anos como na maioria dos países. É efetivamente um treinamento que se concluí em mais ou menos um ano, sem livros nem laboratórios de estudos, sem as aulas de história da comunicação contando a invenção da prensa móvel de Gutenberg, sem a lei das três fontes, sem aquelas teorias como a da agulha hipodérmica ou a da agenda setting, sem aquele papo de gatekeeper nem watchdogs da democracia. O que não se olvida nas aulas é a presença quase sempre simpática de um militar turrão ou de algum membro da segurança nacional. Para falar a verdade, não é nem mesmo um treinamento: é pura doutrinação.

O pior ocorre depois, quando, ao não seguirem a cartilha do Governo, os jornalistas são sumariamente perseguidos, detidos, intimidados e muitas vezes submetidos a tratamentos desumanos. A Comissão da ONU tem documentado diversos casos de profissionais da mídia nessas condições na Eritreia, a grande maioria envolvendo a colaboração de jornalistas nacionais com organismos estrangeiros através do fornecimento de notícias e informações revelando a realidade do país. Vários desses casos documentados tratam de detenções ocorridas entre 2000 e 2013. Até hoje pouco ou nada se sabe quanto ao paradeiro da maioria desses jornalistas detidos.

Abaixo segue o relato assustador de um deles, o qual permaneceu preso durante meses em 2009, suspeito de colaborar com uma rádio estrangeira:

“Eles me prenderam, depois me algemaram e me amarraram a uma corda para que eu ficasse pendurado como Jesus Cristo, mas sem os braços abertos. Minhas pernas foram erguidas até meu abdômen. Acusaram-me de ser um crítico do governo e de contribuir com a rádio. Permaneci nessa posição por dez minutos enquanto eles me agrediam com um chicote. Depois me levaram para a cela. Os meus amigos receberam golpes nas solas dos pés. Não fizeram isso comigo. Não existem regras para torturar. Podem te surrar por cinco minutos ou uma hora como bem entenderem. Fiquei algemado por volta das cinco da manhã até as dez horas da noite. Não eram algemas normais. Elas são aparafusadas com muita força e impedem a circulação do sangue. Eu estava quase morrendo. Eu era apenas um jornalista e um artista amador. Estava furioso com aquilo que eles estavam fazendo. Fiquei inconsciente. Repeti que não era membro da rádio. Quando eles removerão as algemas, minhas mãos ficaram paralisadas. Isso durou três meses. Eu não conseguia fechar minhas mãos nem movê-las. O sofrimento durou seis meses. Até hoje tenho problemas neurológicos e sinto dores nos braços.”

É horrível, mas é apenas uma das inúmeras crueldades praticadas pela ditadura instalada no país. O documento final produzido pela Comissão termina com a conclusão de que “violações sistemáticas, generalizadas e flagrantes dos direitos humanos foram e estão a ser cometidos pelo Governo da Eritreia e que não existe nenhuma responsabilização por elas”. Entre os diversas elementos que caracterizam os abusos cometidos, há a concentração de toda a autoridade estatal no Poder Executivo, um Legislativo e um Judiciário sem nenhuma sombra de independência, uma interferência constante na vida privada dos indivíduos, a manipulação deliberada de informações e dados estatísticos, a supressão de liberdades individuais, a prisão de suspeitos sem a mínima observância ao princípio da dignidade humana, a prática generalizada de tortura (inclusive sexual), a duração indefinida do serviço militar obrigatório, a utilização de trabalho forçado como forma de punição, o desrespeito ao direito à propriedade privada e a discriminação e violência gratuita contra mulheres.

Organizações como a Anistia Internacional, Humans Right Watch, Repórteres sem Fronteiras e a própria ONU continuam denunciando os crimes perpetrados pelo Governo da Eritreia. Há pouquíssimos dias um novo massacre envolvendo pelo menos trinta mortos teve lugar na fronteira entre a Etiópia e a Eritreia, ambos aliados — pelo menos até o momento. Notícias como essas vindas do continente africano quase já não nos impressionam mais, mas deveriam. Se um único jornalista eritreu, qualquer um desses que vivem sob o julgo da ditadura de Isaias Afewerki, viesse a tomar conhecimento das liberdades que temos por aqui, eu não tenho duvidas de que ele se chocaria ao perceber que, com todas as denúncias, documentos e testemunhos existentes até então, nada tem sido feito senão esperar por novas denúncias para colher novos testemunhos e produzir novos documentos sem que sejam tomadas ações efetivas capazes de cessar o que lá se passa.

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Pablo Santos Ferreira é catarinense, estudante de jornalismo e escritor em aprimoramento.