Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jornalismo, ciência e a perspectiva do futuro

Foi uma enorme e dramática aula de geociências em escala planetária. Num único dia bilhões de pessoas aprenderam o significado de palavras freqüentemente restritas ao vocabulário de especialistas: tsunami, maremoto, terremoto, escala Richter, epicentro e placa tectônica, entre outros termos.

Mas a lição não esteve restrita às ciências da Terra e às contorções que, periodicamente, afetam como um calafrio o corpo inteiro do Planeta. Poucas vezes a efemeridade da vida foi exposta de maneira tão inequívoca como no domingo (26/12), com a enganosa aparência de um desses dias modorrentos em que as pessoas fazem pequenos balanços da vida, ocupam-se de tarefas sem importância, ou simplesmente relaxam e curtem a vida.

O maremoto que teve origem (epicentro) a noroeste da ilha de Sumatra, atingiu a magnitude 9 na escala Richter e espalhou a destruição pelo interior da Baía de Bengala afetando todos os países da região sob a forma de tsunamis, as ondas gigantes que se originam de maremotos (terremotos no mar) e podem varrer ilhas inteiras, além de áreas costeiras, com danos materiais e morte.

Em acidentes dramáticos como este, o jornalismo se revela em toda sua potencialidade como recurso capaz de minimizar, no que for possível, a dor de todas as perdas, além de oferecer inteligibilidade possível aos acontecimentos.

Durante todo o domingo, a BBC e a CNN transmitiram dos vários países afetados do Sudoeste da Ásia cenas de destruição e morte provocadas pelo sismo. Com isso sensibilizaram o resto do mundo não apenas para a ajuda material, ainda no domingo articulada por vários governos, mas a solidariedade e a compaixão, sentimentos que tornam a vida suportável e lhe dão algum sentido.

Claro que se algum leitor abriu a internet e consultou as opiniões de internautas sobre o desastre asiático, encontrou mensagens de todo tipo. Algumas delas indignas de um mínimo de humanidade. Mas essa é natureza do Homem. Nem a mais dura lição nos convencerá de nossa orfandade cósmica, de nossa possível solidão no silêncio abissal entre as estrelas, e da necessidade de nos identificarmos como humanos – os que, de alguma maneira, têm consciência de existir.

Comparação irrisória

Em catástrofes como essa nenhuma estrutura, nem mesmo a militar, se compara ao jornalismo em termos de agilidade e capacidade de reação. Repórteres que estavam desfrutando suas férias na região atingida, no primeiro momento deixaram tudo de lado e fizeram contato com suas redações. Transmitiram relatos, registraram cenas e com isso ajudaram a desenhar a extensão do drama onde o número de mortes sobe a cada minuto, à medida que os escombros vão sendo remexidos e a memória dos que sobreviveram recupera a capacidade de se dar conta das ausências.

As redações dos jornais, impressos ou de qualquer outro meio, em datas como as que separam o Natal e o Ano Novo, geralmente ficam esvaziadas. Nunca vazias. Os desastres, especialmente, não têm uma data prévia para se manifestar. Jornalistas de plantão rogam a todos os santos para que nada disso ocorra. Essas datas costumam ser momentos de pausa, de trégua no processo infinito de registrar as ocorrências no mundo. Mas, como ocorreu no domingo, a trégua é dramaticamente rompida e a adrenalina sobe a níveis nada usuais.

Apresentadores de telejornais podem, eventualmente, mudar de fisionomia como alguém que troca de máscara de um segundo para outro, entre ler uma e outra notícia. Ao longo do domingo, no entanto, uma única máscara esteve frente às câmaras: a da dor e da impotência frente às cenas das águas levando objetos, corpos e náufragos em meio ao que poucos minutos antes eram ruas e avenidas, com paradas de ônibus, bancas de jornais, lojas e tudo o mais que dá forma a uma cidade.

Dramaticamente, e não há nenhuma intenção de exagero nessa frase, é de se esperar que acidentes terríveis, naturais ou não, ocorram com freqüência e intensidade crescentes.

O efeito-estufa, aquecimento da atmosfera de origem antrópica, pela liberação de gases que vão de atividades industriais à formação de enormes rebanhos bovinos, está trazendo alterações profundas no clima segundo a imensa maioria dos climatologistas. Com isso, tempestades seguidas de ventos destruidores podem mudar a fisionomia do tempo meteorológico.

Atentados terroristas, reações patológicas a iniciativas terroristas eventualmente deflagradas por Estados e igualmente patológicas, podem ser outra forma de acontecimentos dramáticos que vão exigir da imprensa como um todo uma enorme capacidade de ação.

E apenas para acrescentar um terceiro dado. O choque possível de um asteróide com a Terra pode fazer de um desastre como o maremoto do sudoeste asiático uma comparação irrisória. Alguns milhares de asteróides de pequeno porte cruzam a órbita da Terra e nem todos são detectados antes de uma aproximação ameaçadora com este mundo.

Calor remanescente

Boa parte das pessoas acredita piamente que, em algum lugar, uma consciência maior zela por nossa segurança. Não vamos discutir o caso, mas certamente as coisas não são tão óbvias assim. Quero dizer que, no mínimo, precisamos fazer a nossa parte. O que significa considerar que atingimos uma idade científica quando ao menos parte dos problemas pode ser identificada e prevenida.

Não é, lamentavelmente, o que ocorre com os sismos. Mas também neste caso, mesmo com toda a dor dos acontecimentos, é preciso enxergar além da tragédia, como de alguma maneira fizeram os gregos antigos.

Os sismos são acidentes naturais e, mesmo sendo mecanismos de destruição, também estão na origem da vida. Sismos estão intimamente relacionados a vulcanismo – e os vulcões, além de potenciais fontes da vida, na passagem da matéria inorgânica para a orgânica, também reciclam gases. Entre eles o dióxido de carbono (CO2) que mantém a Terra aquecida com um cobertor gasoso.

A compreensão desses fatos mais que nunca, em especial pela elevada população do planeta, é necessária, ainda que esteja de muitas maneiras pontuada pela tragédia.

Devemos, por exemplo, a compreensão do mecanismo básico de sismos e vulcanismo a um homem que morreu humilhado por seus colegas de profissão.

Quando disse (no início do século passado) que a superfície da Terra está quebrada como a casca de um ovo cozido e que cada uma dessas porções se move em relação às demais como enormes balsas rochosas, Alfred Lothar Wegener, meteorologista alemão (1880-1930) foi chamado de charlatão.

Foi só nos anos 1960, com a habilidade adquirida pelos computadores de fazer cálculos complexos e rápidos, que as idéias de Wegener foram aceitas. As placas tectônicas (as porções da casca quebrada do ovo cozido) previstas por ele são o mecanismo que disparou o desastre do domingo.

Pressionadas uma contra a outra, duas ou mais placas podem acumular tensões capazes de ser liberadas pela destruição dessas áreas de atrito. Essa liberação de energia se dá sob a forma de ondas de choque, como uma marretada gigante desferida contra o solo. A usina de força que faz deslocar as placas tectônicas está, literalmente, no coração da Terra. É o calor remanescente da formação do planeta, há 4,6 bilhões de anos, da pressão gravitacional e também da radioatividade natural.

Progressão logarítmica

O Brasil, ao menos em princípio, assentado sobre a enorme placa Sul Americana, está livre de fenômenos desse tipo. A placa Sul Americana está em choque com a placa de Nazca, no Pacífico, e é esse atrito que fez nascer e ainda hoje eleva lentamente a enorme cordilheira dos Andes. É o que explica também os sismos e vulcanismos (resultado da destruição das placas) freqüentes nos países andinos.

Epicentro, como as pessoas estão compreendendo desde domingo, é o ponto na superfície da terra ou do mar onde o sismo ocorreu nas profundezas da Terra (pela destruição das bordas das placas em atrito).

O que a Escala Richter faz é aferir a magnitude de um sismo. Inspirada na magnitude estelar, a escala foi desenvolvida em 1935 pelo geofísico norte-americano Charles Francis Richter (1900-1985) – inicialmente para ser utilizada na Califórnia, onde uma enorme falha geológica já produziu e ainda deve gerar enormes sismos (o chamado Big One é uma ameaça constante).

Com progressão logarítmica, a Escala Richter indica que um sismo de magnitude 9, como foi o tremor principal do domingo, seja dez vezes mais intenso que o de magnitude 8 e 100 milhões superior a um abalo de magnitude 1.

Continuidade da espécie

Nos maremotos, ou terremotos que ocorrem sob os mares e oceanos, a principal forma de destruição está nos temíveis tsunamis, ondas gigantes que se deslocam quase à velocidade de um jato comercial. Diminuindo a velocidade, mas aumentando sua altura ao se aproximarem de áreas costeiras, os tsunamis são belos e terríveis monstros destruidores que podem alcançar os 50 metros de altura.

Boa parte das pessoas pode acreditar, como aparece nos registro da internet, que acidentes desse tipo são uma forma de punição divina pelos desencontros humanos – o que nos remete à Idade Média, a uma época pré-científica e pré-renascentista, quando os céus podiam ser terrivelmente vingativos.

Na verdade, o processo de criação-destruição é uma constante no Universo. Não só a Terra, mas todo o Sistema Solar e uma infinidade de estrelas da Via Láctea descendem de estrelas mortas em explosões cataclísmicas, quando a Via Láctea era bem mais jovem. Por isso somos todos – a Terra, o Sol, os oceanos, as borboletas e os nossos próprios corpos – literalmente, poeira de estrelas.

Talvez a lição legada por um acidente tão terrível como o do Sudoeste da Ásia seja o de indicar que o destino do homem está em suas próprias mãos e que a ciência é sua tábua de salvação. Não uma ciência qualquer, mas a ciência comprometida com os valores humanos e que enxergue na diversidade, inclusive das culturas, uma das características básicas da vida.

Partilhar a ciência como uma jangada capaz de abrigar humanos órfãos e náufragos do oceano cósmico é uma tarefa de educação; e, aqui, mais uma vez o jornalismo tem uma função extraordinária: a de sensibilizar para a perspectiva da ciência.

Nesse contexto tem um sentido claro as palavras de Konstantin Tsiolkovski (1857-1935), o pai da Astronáutica: ‘A Terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver eternamente no berço’.

Ainda que soe como ficção, este é o chamado mais claro rumo ao espaço, onde a ocupação de outros mundos é a única maneira de assegurar a continuidade da espécie humana. A única forma de proteção e solidariedade com nossos descendentes.

Feliz 2005 a todos aqueles que, apesar das tragédias, não perdem a perspectiva do futuro.