Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bellingcat: o monopólio da informação está migrando para o jornalismo independente

(Foto: Divulgação – Bellingcat)

O nome Bellingcat foi retirado de um desenho animado onde os ratos, cansados da perseguição de um gato mau, resolvem colocar um guizo em seu pescoço e, assim, partir para a fuga ao ouvir o sino tocar. Começava aí o coletivo de jornalismo investigativo criado pelo britânico Eliot Higgins, de 36 anos, que, inspirado pelo desenho preferido de sua filha e sem sair de casa, passou a atrair uma equipe de ouro de voluntários pelo mundo dedicados a gastar todo tempo diante das redes sociais, vídeos e internet. Foi assim que esse grupo de jornalistas revelou a verdade sobre o desastre, em 2014, do avião da rota Amsterdã-Malásia, voo MH17, que matou 298 pessoas. Apesar das negações de Vladimir Putin e do seu ministro da Defesa em várias reportagens, a equipe de Higgins colocou o guizo no gato mentiroso e corrupto e apontou o governo russo como culpado pelo atentado. Os jornalistas checaram durante anos todas as imagens disponíveis na internet, transformaram algumas em 3D, usaram drones, compararam a posição dos tanques nas ruas, as entrevistas televisionadas e as mensagens no Facebook das mães dos pilotos russos e descobriram a verdade, inclusive o nome do militar responsável por acionar os lançadores de foguetes BUK.

Bellingcat deflagrou ainda imagens fake, algumas retiradas de jogos da internet atribuídas ao campo de batalha na guerra da Síria, e desvendou os criminosos do misterioso envenenamento de um espião russo no Reino Unido. Foram atacados de todos os lados, Higgins chamado de “general da poltrona”, que não conhecia nada de táticas de guerra além de Rambo e Schwarzenegger, mas foi assim que Bellingcat descobriu inverdades no noticiário jornalístico.

Por que as grandes redes de notícias, TV e imprensa não fizeram o mesmo? Eles explicam no documentário Bellingcat: A verdade em um mundo pós-verdade, que será exibido durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo nos dias 29 e 30 de outubro, no Espaço Itaú Frei Caneca e Augusta: primeiro, grandes redes de jornalismo profissional, como BBC, e agências, como Reuters, têm uma vasta estrutura por trás, o que acorrenta os jornalistas nas coberturas, e a única coisa com que um coletivo independente de jornalismo como o Bellingcat pode contar é a verdade, a confiança, a evidência dos fatos.

Eles provaram que um garoto que aparecia morto na guerra da Síria era uma imagem antiga ocorrida na ilha de Malta e o garoto nem tinha de fato morrido; que um vídeo falso retirado de um videogame tinha sido usado como verdadeiro pela agência Reuters na reportagem da guerra da Síria; que a imagem de um jornalista decapitado no Iraque poderia ser adulterada para provocar pânico; que a guerra da informação não está sendo analisada como deveria e é utilizada para desestabilizar as partes contrárias, como a Europa Ocidental pelos russos. Eles provaram, por exemplo, que a imagem da explosão de um carro-bomba no Iraque foi forjada para espalhar, em seguida e em torno do tal carro-bomba, corpos de pessoas mortas em outra ocasião – mas a imagem fake foi “engolida” pela agência Reuters e pelo The New York Times.

No documentário, Aidan White, jornalista há cinquenta anos, declara: “O monopólio da informação está mudando, nunca vi nada igual na mídia profissional tradicional, descuido e desinteresse, eles não investem na informação, não gastam na investigação, as redações minguam a cada dia e o bom jornalismo vai desaparecendo nas páginas e das telas pouco a pouco. O que está salvando é o jornalismo independente, em geral voluntário”.

Comentários e tweets de Trump, acusações de Putin, ameaças de todo lado, nada intimidou os Bellingcats, que tiveram sua denúncia sobre a queda do MH17 confirmada na Corte Criminal de Haia anos depois e viram um de seus voluntários, Christiaan Triebert, ser “pescado” para integrar a equipe do The New York Times. Bom sinal para a grande imprensa. Uma luta sem fim para manter a liberdade de apuração, a verdade dos fatos e a profissão. Há suspeitas de que um dos membros da rede Bellingcat tenha sido envenenado também, mas sobreviveu. No Facebook e no Twitter, o Bellingcat tem 100.000 seguidores.

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Norma Couri é jornalista.