Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

“Alguma coisa está fora da ordem”

“Alguma coisa está fora da ordem / Fora da nova ordem mundial”
(Caetano Veloso, Fora da ordem)

Na década entre 2000 e 2010, o Brasil era um país protagonista no ambiente político. A política externa coordenada pelo ex-ministro Celso Amorim surpreendia o establishment e os países do G8, um clube fechado e exclusivo até o ex-presidente Lula avançar como um coprotagonista, um comediador, especialmente entre a comunidade internacional e o Irã e seu programa de enriquecimento de urânio. Na época, o ex-presidente Lula e, com ele, o Brasil, tornava-se presença constante em questões globais.

Barack Obama visitou o Brasil, assistiu concerto no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e conversou amigavelmente com a ex-guerrilheira Dilma Rousseff, na época a primeira presidente mulher do país de proporções continentais. A Casa Branca tinha um commander in chief afrodescendente e as forças democráticas pareciam robustas, exercitando maturidade. Até João Gilberto comparecia aos shows, como no Teatro Municipal do Rio, naquele agosto de 2008, comemorando os cinquenta anos da bossa nova. Dois meses depois, seria a vez de outro concerto histórico, dessa vez do outro lado do oceano: João Donato celebrava o mesmo motivo, varando a noite, mas no Tausend, em Berlim. Apesar da crise financeira, que chegou ao Brasil como uma “marolinha”, o clima de pessimismo que se espalhara pelo mundo não acometeu o país.

Dependências midiáticas

Enquanto, nos EUA, a emissora Fox News era notória contra tudo do governo de Barack Obama, o governo de Angela Merkel, na Alemanha, levava o país a um outro patamar, sem o ranço de ficar sempre na retaguarda da política externa devido ao trauma do nacional-socialismo. A filha de um pastor luterano e de uma professora de inglês, nascida em Hamburgo mas criada e socializada na parte oriental da Alemanha, transformou-se na política mais importante do mundo, na líder europeia, enquanto dava aos alemães aquilo que eles mais prezam: a sensação de segurança. Não importavam os sobressaltos no mundo: a “Mutti” saberia resolver o problema da melhor forma possível. Essa nova década trará a incerteza da era pós-Merkel (09/2021), mesmo que essa pauta ainda esteja debaixo do tapete.

A imprensa alemã de todas as nuances políticas via em Merkel a melhor opção, com poucas críticas à chanceler. A Copa do Mundo de 2006 serviu para ratificar a Alemanha moderna, liberal, de um povo alegre e festeiro, mesmo que os dois últimos quesitos tenham sido snapshots bem comercializados pela mídia internacional, especificamente pelos grandes canais da TV brasileira, que reforçaram (e continuam reforçando) sua ignorância, vista grossa e ingenuidade em pautas sobre o país da cerveja e de fabricantes de carros.

O episódio recente do Globo Repórter pautado na Alemanha ratificou que a inocência em relação ao que é a vida de brasileiros no país continua atual, além de prezar a perpetuação de estereótipos culturais dos dois lados, atribuindo às culturas características obsoletas e afirmações que nada têm a ver com a realidade, como “os alemães parecem ter descoberto a receita do equilíbrio entre o trabalho e o lazer”, nas palavras da âncora Glória Maria.

O mesmo discurso se viu na tradicional tomada de turistas estrangeiros nas lentes de emissoras brasileiras durante o réveillon de Copacabana. Diante de um alemão que desejou “feliz ano novo” em seu idioma natal, o repórter comentou: “É bem difícil, né?”. “Como tudo na língua alemã”, complementou o turista. Nas tomadas, que são sempre as mesmas há anos, o repórter fica entre a alegação da cidade em ter “o maior réveillon do planeta” e seu próprio bairrismo, estilizado ao máximo, como produto de uma falsa modéstia.

Equívoco e vulnerabilidade

Enquanto a imprensa estabelecida procurou, durante anos, um candidato que não fosse o do PT, tentou Eduardo Campos, que morreu de forma trágica e deixou, de fato, uma grande lacuna no cenário político – que, na sequência, iria exibir uma crônica falta de alternativa. Em 2014, a imprensa foi de Aécio Neves, que deveria ser o salvador da pátria, mas que, de príncipe, virou sapo de um dia para o outro. Enquanto isso, um deputado taxado de “polêmico” chamado Jair Bolsonaro, mesmo quando suas declarações e seu comportamento mereciam denominações jurídicas como injúria, difamação e quebra de decoro parlamentar, transformava-se no enfant terrible da imprensa, que não percebeu o perigo em seu discurso e dialética: a quebra de tabus linguísticos que resultam na quebra de tabus nos costumes de uma sociedade até se exibirem nas ruas, nos restaurantes, nos palanques. Esse processo da mídia brasileira é bem semelhante ao da imprensa alemã ao lidar com o partido extremista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla).

Em 2014, o partido recém-fundado havia acabado de angariar um percentual surpreendente (6,5%) nas eleições europeias, era moderado no discurso e tinha na sua “primeira fila” professores universitários e intelectuais.

A imprensa alemã tentou ignorar o partido não “somente” pelo viés ideológico de alguns meios de comunicação, mas por falta de um plano B. Na Alemanha de 2020, o partido que escorregou para a extrema-direita, representado por 95 deputados no parlamento alemão em Berlim e com claras ligações com as cenas neonazistas, é o terceiro mais forte. Mesmo com grandes possibilidades de ascender no âmbito federal, tornando-se um parceiro inevitável para os próximos governos, a imprensa alemã ainda se mostra despreparada e fica devendo coerência ao lidar com ele, numa mistura entre voyeurismo e o bom samaritano cheio de boa vontade.

O fim da nova ordem mundial

Aquela nova ordem que desabrochava com a queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e o antagonismo intransponível entre a Otan e os países do Pacto de Varsóvia não existe mais. O zeitgeist do pós-verdade e das fake news aliado ao plano diabólico do estrategista Steve Bannon, ao discurso de Donald Trump e a Jair Bolsonaro fez do mundo um lugar bem mais inseguro, perigoso e, acima de tudo, imprevisível. Celebram a volta dos muros de concreto como metáforas de antagonismos intransponíveis e regados pelo ódio.

Do país que já foi presença certeira no ambiente político – ou “top de linha”, como diz a personagem Lourdes (Regina Casé) na novela Amor de mãe (Rede Globo) -, o Brasil sucumbiu ao papel de um lacaio dos EUA. Gregório Duvivier, em sua coluna na Folha, expressou isso, frente a vários exemplos, de forma certeira. No âmbito da política externa, o Brasil está no período de João Figueiredo, numa época antes do globalizado e em que uma Terra de Gigantes chamada Brasil era “uma ilha, a milhas e milhas e milhas de qualquer lugar”, frase eternizada pelos Engenheiros do Hawaii nos anos 1980.

Do outro lado do oceano, a Alemanha ainda pisa em ovos tentando encontrar seu novo papel em ser ativa e determinante, mas sem ser opressora. O atual ápice do conflito entre o Irã e os EUA exibe, mais uma vez, o dilema. Em caso de uma guerra, os pontos estratégicos de bases militares alemãs se tornarão pautas urgentes em uma dinâmica que ainda não se pode precisar.

Já os EUA, no desgoverno Trump, se acostumam com o fato de que o que está escrito no Twitter, hoje, poderá se tornar o cerne da política externa do país. Ao perceber os milhares de iranianos no funeral do comandante assassinado e os discursos acalorados que juram vingança, Trump escreveu, no dia 5 de janeiro: “Eles nos atacaram e nós revidamos. Se atacarem de novo, algo que eu os aconselharia a não fazer, nós os iremos atacar ainda mais severamente do que já foram todas as vezes antes”.

A nova década que se avizinha terá um dos maiores desafios da História: derrubar os ditadores e fortalecer os instrumentos da democracia. Os déspotas estão cada vez mais firmes em suas cadeiras: Erdogan, Trump, Assad, Bolsonaro, Putin. O desenvolvimento na Argentina, no México e na Espanha mal servem como motivo para otimismo; eles são pequenos oásis num mundo fora de si e no início de uma década em que a primeira semana já exibiu a hashtag #IIIWW (Terceira Guerra Mundial), tornando público o medo que acomete o mundo.

Ainda durante o mês de janeiro, a UE terá seu maior baque desde sua fundação. Como resultado do referendo de junho de 2016, o Reino Unido volta para o nacionalismo, optando por fronteiras, obriga a Escócia correr atrás do prejuízo e faz renascer o clima eternizado na música Sunday bloody sunday, da banda irlandesa U2.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.