Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Jogo e a Liberdade: recomendações para o 7 de setembro e depois

Foto: Marcos Corrêa/PR

Por que manifestações que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso ou a instauração de uma ditadura abusam da liberdade de expressão e rompem com o jogo democrático?

Existem três tipos de resposta a essa questão. A mais fácil delas é que não devemos usar nossa liberdade de expressão para pedir o fim das instituições que devem, em última instância, garantir essa e outras liberdades, quando sentimos que são violadas. Não me entendam mal. Nós temos, sim, liberdade e até o dever de protestar contra leis e decisões injustas, e contra autoridades que abusam do seu poder, mas defender a extinção dos Poderes da República é no mínimo um contrassenso. Pois mesmo quem entende que a liberdade de expressão é a liberdade de dizer tudo o que se pensa, “e quem se ofender que me processe”, ainda precisa das leis e de um Judiciário reconhecido para decidir sobre a questão. Para esses, a democracia é como um jogo de futebol profissional, em que os adversários farão de tudo para vencer, inclusive jogar sujo e tentar ludibriar o juiz. Mas quem passar dos limites e tratar o outro time como inimigo a ser destruído, pode ir para o chuveiro mais cedo. E ainda que o juiz seja um péssimo profissional, ou mesmo corrupto, é necessário apelar para… a Justiça Desportiva. Sem juiz não tem jogo, da mesma forma que sem a Lei, o Judiciário ou a fiscalização entre os poderes não existe liberdade de expressão, ou qualquer outra liberdade. O que existe é a vontade de quem manda e a obediência de quem serve. E como sabemos, o presidente do clube não é seu dono, e nem mesmo os sócios o são diretamente, pois há um conselho que faz a mediação entre sócios e o presidente.

O segundo tipo de resposta a porque manifestações que pedem o fechamento do Supremo, do Congresso ou uma ditadura abusam da liberdade de expressão e rompem com a democracia, é porque entendemos que nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros. E quando os interesses de uns conflitam com os interesses dos outros, sejam amigos ou adversários, é preciso estabelecer entre si regras mínimas para que as desavenças sejam resolvidas, e a bola possa rolar, ainda que isso implique chamar um terceiro para ser juiz.

A democracia é para esses como um jogo de futebol society, que não por acaso pode ser traduzido para “futebol sociedade”. Neste caso há um respeito pressuposto às regras de quem aluga o campo, seja horário de funcionamento, vestimentas mínimas e condutas proibidas, mas o que importa mesmo é como os dois times decidem jogar. Se houver falta ou desentendimentos, a resolução partirá desse acordo prévio e do debate livre entre os jogadores, sem ofensas ou brigas, haja juiz ou não. Para que o jogo tenha um resultado justo e seja prazeroso para todo mundo, ainda que muito competitivo, vai depender das relações entre os jogadores e de como resolverão os conflitos em campo. E se tudo correr bem, ainda pode rolar uma cervejinha no final. O que não pode é pedir o fechamento do espaço, não pagar o aluguel ou violar as regras mínimas de uso. Senão nem jogo tem e todos sairão descontentes.
O terceiro tipo de resposta que podemos dar é o mais difícil, pois representa uma forma ainda mais profunda de encarar a liberdade de expressão e a democracia. Neste caso dizemos que manifestações pela derrubada das instituições e por golpes de Estado, em nome de quem quer que seja, abusam da liberdade de expressão e rompem com a democracia porque a liberdade de expressão só existe em ambientes em que todos nós, mais ou menos diferentes, reconhecemos as liberdades uns dos outros como válidas.

Como diz Anshuman Mondal, professor de literatura e estudos pós-coloniais na Universidade de East Anglia, na Inglaterra, isso implica entender a liberdade de expressão não com a pergunta “qual é o meu limite de dizer tudo aquilo que eu quero dizer?”, mas “o que é bom dizer?”. A ideia de que só sou livre para me expressar na medida em que os outros me reconhecem como tal e vice-e-versa, é um apelo para que recuperemos um sentido ético de liberdade de expressão e de democracia. Mas não confunda essa ideia ética com “a moral e os bons costumes”, pois ela envolve o embate e a convivência de diferentes visões, além da possibilidade de mudanças. Neste caso, também o Estado só é válido quando reconhece e realiza uma mediação sensível dessa reciprocidade, muitas vezes conflituosa, entre as liberdades e valores como respeito, solidariedade e igualdade.

Para quem pensa assim, o jogo democrático está mais próximo da modalidade “futebol callejero”, ou futebol de rua, cujo movimento, com ligas na América Latina, na África e Europa, busca associar o esporte à educação popular com o propósito de promover transformação social e formar lideranças juvenis. No futebol callejero não há juiz. As equipes, sempre mistas, decidem antes do jogo quais serão as regras básicas: se o lateral é batido com o pé ou com a mão, se vale o goleiro pegar com a mão bola recuada, se há impedimento etc. Além disso, espera-se que no jogo, as equipes se relacionem consigo mesmas e entre si com respeito e solidariedade e participação entre todas jogadoras e jogadores. O jogo então transcorre normalmente, com a vitória valendo somente um ponto para a equipe vencedora. Mas o resultado só é definido num terceiro tempo, em que as duas equipes debatem, com a ajuda de uma mediadora ou mediador, sobre se houve ou não respeito, solidariedade e participação. E como cada um desses quesitos vale um ponto, o placar pode virar mesmo após o fim da partida. Não adianta querer ganhar a qualquer custo ou impor sua opinião no grito. Ambas as equipes devem decidir, por consenso ou por voto, o placar final.

Por isso, neste Sete de Setembro e depois, nas ruas ou nas redes, podemos escolher ser jogadores profissionais, de futebol society ou callejero. Só não dá para acabar com o jogo pedindo a expulsão do juiz ou dizendo que é o dono da bola. Pois ao final, vença quem vencer, o jogo (ou a luta) precisa continuar.

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Vitor Blotta é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade.