Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Entrevista de Lula à emissora RTP portuguesa

Foto: Reprodução/YouTube

Alinhavando o seu retorno ao sinteco político internacional, o ex-presidente Lula concedeu entrevista à TV pública portuguesa, RTP, durante o noticiário mais assistido do país, o “Telejornal”, exibido no pico do horário nobre. A entrevista veiculada dia 02/04 foi anunciada anteriormente com grande abrangência. Lula falou sobre o momento político do Brasil, afirmou que a candidatura à presidência não seria sua prioridade e criticou seriamente o atual governo, especialmente no âmbito da política externa. Apesar da inegável simbologia da gravata com as cores da bandeira do Brasil, o ex-presidente frustrou a sede jornalística do âncora José Rodrigues dos Santos sobre confirmação e concretização de candidatura em 2022.

Logo de início, o jornalista que não é um dos mais brilhantes em terras portugueseas, abordou a troca no gabinete do atual presidente Jair Bolsonaro. Um dia após o aniversário de 57 anos do início da Ditadura Militar no Brasil e devido à reverberação de um possível decreto de Estado de Sítio que gerou forte insegurança na imprensa e nas redes sociais, mesmo com a alegação de Bolsonaro que “joga dentro da Constituição”, com essa pergunta específica o âncora expressou a insegurança generalizada da comunidade internacional em relação ao Brasil.

Lula classificou as mudanças de gabinete como “normais”, acrescentando: “Não vejo isso como sinal de crise”. Decerto uma resposta inesperada frente ao reboliço causado na mídia durante os dias da troca de 6 pastas. O período de inquietação, insegurança e expectativa em vários setores da sociedade fez a pauta-mór, a pandemia da Covid-19, inusitadamente, deixar de ser prioridade no âmbito midiático por alguns dias.

Alicerces danificados

A política externa do governo Bolsonaro conseguiu um feito histórico: em carta aberta, cerca de 300 diplomatas na ativa e espalhados pelo mundo, pediram a demissão de Ernesto Araújo.

Em um item no troca-troca de pastas, o ex-presidente mostrou, sim, preocupação.

“Ele substituiu o Ministro das Relações Exteriores e coloca um substituto que não tem nenhuma experiência de diplomacia, num posto em que o Brasil sempre teve grandes diplomatas exercendo a função. (…) O Brasil chegou a ser a quarta economia do mundo e hoje em dia é tratado como um país muito insignificante”.

Ao ser indagado o que fará com os seus direitos políticos recuperados, Lula fez um longo briefing sobre o trâmite jurídico em si, criticou a imprensa e protelou até chegar, de fato, à uma resposta concreta. (aos 5:15 min)

Somente aos 6:29 minutos da entrevista, Lula ao responder a pergunta sobre seu “futuro político”, reitera “preocupação com o ano 2021” e engata itens de sua agenda programática como quem desde já se encontra em campanha eleitoral. Não faltou o acerto de contas também de âmbito financeiro com a operação Lava Jato e o arrematar do discurso com um toque social: “Eu quero que os brasileiros tomem café, almocem e jantem”.

Ao mencionar que sua meta seria “restabelecer a credibilidade interna e externa” do país, Lula protelou a resposta fundada em argumentos de como pretende realizar essa meta, já que não goza do chamado “bônus-do-cargo” por estar fora do sinteco político internacional há muitos anos e ainda precisará de meses para tecer novas alianças e requentar as mais antigas.

Lula foi cuidadoso über no que concerne à sua candidatura: “Vamos esperar chegar 2022 (…)e, na sequência constatou de forma imperativa: “A verdade que eu sei é que o Bolsonaro não pode continuar governando o Brasil”.

Tentando mais uma vez driblar a resistência de Lula ao evitar em falar abertamente da candidatura à presidência, Rodrigues tirou a última carta da manga e partiu para o ataque: “Se o senhor for eleito, o que vai mudar no Brasil?”

Fazendo uso de um balde de água fria, o ex-presidente desacelerou a fome jornalística do âncora com a expressão clássica para isso: “Olha, deixa eu lhe dizer uma coisa (…). Em formato de morde e assopra, a resposta já transportou o assunto para o âmbito mundial, com discurso de estadista, cobrando ação e autorreflexão de todos os países sobre a distribuição da vacina e sobre o empresariado da crise.

Em termos de estratégia de comunicação, o ex-presidente marcou um golaço entre não dar precocemente a cara para bater, mas ter na ponta da língua a agenda programática e já acenando para a comunidade internacional via trás-os-montes. Em tom daquele motivador, dando bronca em sua turma que não fez o trabalho de casa, Lula reclama soltando frases em velocidade estonteante:

“O Secretário Geral Gutierrez já poderia ter convocado uma reunião especial da ONU para discutir o Covid-19 (…)”

“O G20 já poderia ter sido convocado (…)”.

“Eu falei com a Angela Merkel pela imprensa (via matéria publicada no semanário Der Spiegel) e vou falar com meu amigo Antônio Costa”, o premiê de Portugal.

Sobre a Venezuela

Da pauta pandemia, o âncora, citou o grande número de portugueses radicados na Venezuela e acrescentou que o ex-presidente apoiou o governo daquele país. Enquanto isso, o semblante de Lula começava exibir grande irritação que culminaria em discurso acalorado, porém de conteúdo superficial, saindo pela tangente e isento de credibilidade, já que o mundo inteiro sabe que a Venezuela é um país anti-democrático.

Lula atesta para o âncora que a situação da Venezuela estaria nas mãos dos eleitores e que eles teriam chance de votar e mudar. Essa frase soa como uma cartilha amarelada e com o ranço do tempo, que não perdoa. O que o ex-presidente deixou de mencionar é que as eleições na Venezuela são frequentemente marcadas por fraudes, eleitores são frequentemente coagidos e partidos políticos sequestrados, como denunciam as ONG’s Freedom House, Amnesty International e Human Rights Watch. Lula perdeu o prumo, caiu em contradições em retórica descartável, depositou grande responsabilidade no “bloqueio americano” e seguiu misturando alhos com bugalhos ao comparar a situação política da Venezuela com a dos portugueses. Lula também culpou a imprensa americana como se a mesma tivesse passando uma imagem que não existe e ainda sugeriu que o premiê Antônio Costa viajasse para a Venezuela com uma delegação de parlamentares. Para quem acabava de atestar “uma questão “interna dos venezuelanos”, a conta não fechou.

Por que então uma delegação da Europa para visitar a Venezuela? Pra constatar o que? A retórica de contra-ataque, para se esquivar de se “queimar” com aliados políticos da América Latina foi o momento mais fraco e menos austero na entrevista do ex-presidente à RTP. Em postura resignada e já pelas tabelas, Rodrigues encerrou a entrevista. Ficou um gosto amargo e de frustração, não “só” para o âncora, mas também para os espectadores no fim abrupto da conversa, depois de tanto conteúdo relevante nos tens iniciais.

A edição da entrevista gravada pouco antes do noticiário entrar no ar também não colaborou para minimizar o corte abrupto.

Tempos Modernos

A entrevista de Lula exibiu para os portugueses e também para os seus possíveis eleitores, que otimizou, sim, a forma de estruturar o discurso e no alinhavar da argumentação, mas que teima em manter percepções arcaicas, determinadas por correntes ideológicas. Se, teimosamente, persistir nesse caminho o maior empecilho de Lula será a tarefa de Hércules imposta pelo Zeitgeist: Realpolitik combinados com novos parâmetros da política externa em alinhamento com a contemporâneidade da nova Ordem Mundial resultantes da maior pandemia sanitária de que se tem notícia.

Em tempos de desafios gigantescos incluindo a imunização em massa, o recuperar da economia, voltar a retirar grande parte da população da miséria total, além dos desafios ambientais, não há lugar para premissas obsoletas e bem longe da realidade.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.