Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Rir é o remédio

Foto: Alan Santos/PR

Se não podemos nos alegrar com 115 pedidos de impeachment mofando no Congresso, pelo menos temos alegria retroativa ao ano 44 a.C quando Júlio Cesar foi cercado por 60 senadores receosos de que o ditador romano se perpetuasse no poder e o apunhalaram com 23 facadas. Se não imitar, pelo menos podemos visitar o museu que a prefeita de Roma, Virginia Raggi, vai instalar no local do assassinato, Largo di Torre Argentina.

Porque de pequenas alegrias vamos vivendo nessa pandemia política, econômica, sanitária. Apesar de saber que, se a ciência não fosse negada, três de cada cinco brasileiros que morreram podiam não ter morrido segundo o neurocientista Miguel Nicolelis, foi um conforto ver a foto vencedora do World Press Photo Award tirada na casa de repouso Vida Boa, em São Paulo. O fotógrafo dinamarquês Mads Nissen captou amor e união no abraço protegido por plásticos da enfermeira Adriana Souza e Rosa Luzia Lunardi de 85 anos.

Mas também deu alegria saber que será uma mulher, Carmem Lúcia, quem vai decidir se Ricardo Salles será investigado pela passada de boiadas enquanto o povo estava distraído com 370 mil mortos na pandemia. Deve haver algum temor pelas mulheres já que o general nomeado para a Petrobrás, Joaquim Silva e Luna baniu, pela primeira vez em 24 anos, as mulheres do comando da companhia.

Dá alegria ouvir Chico Buarque declarar seu “compromisso hereditário” para nunca aceitar vaga na Academia Brasileira de Letras. Isso desde que seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, assinou uma carta junto com Carlos Drummond de Andrade e outros quando Getúlio Vargas foi eleito para a ABL. Deve ser pela firmeza de caráter ou fidelidade paterna, uma alegria inexplicável neste momento de terror que vivemos.

É tão dramático que dá vontade de rir do riso de escárnio de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) na foto das manchetes sugerindo punição: rachadinha, compra de mansão, ataque ao lockdown.

Ou do absurdo do riso dos CEOs das empresas de luxo nas fotos do Valor. Não podendo viajar, os ricaços, que jeito?, estão gastando seus milhões no país onde vivem, consumindo mansões, canetas, grifes, joias. O luxo está bombando enquanto a renda da classe média despenca em até 50%, quase 5 milhões de pessoas migraram para as classes D e E.

Rir, sim, do general Augusto Heleno que divulgou um vídeo exaltando a Nova Funai, dizendo que a entidade ouve os povos indígenas e defende o meio ambiente, enquanto uma audiência na OAB desmascarava a não demarcação das terras indígenas e o avanço do garimpo ilegal.

É rir ou chorar da carta do governo brasileiro a Joe Biden contabilizando os êxitos na preservação da Amazônia e pedindo ajuda depois de desdenhar dinheiro estrangeiro. Ou o cargo que Pazuello na mira da CPI vai ganhar no Planalto.

Mas dá alegria ler o ex- chanceler Celso Lafer no Estadão assumir a queda de Ernesto Araújo como “impeachment informal”, citando o provérbio latino “quos Deus vult perdere, prius dementat, a quem Deus quer perder, primeiro tira o juízo – incluído o juízo diplomático”.
A alegria salva, e a arte existe para que a verdade não nos destrua, dizia Nietzsche. Assim a memória preserva o que restou de bom nos documentários do Festival É Tudo Verdade.

Alvorada, de Anna Muylaert e Lo Politi sobre os últimos dias de Dilma no Palácio em 1916 traz a citação de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. Dá vontade de rir de nervoso pensando no tamanho do mal hoje, quando Bolsonaro quer armar a população já violenta com Henry de 4 anos morto por chutes de Jairinho enquanto a mãe trafegava entre cabeleireiro e selfies.

Os Arrependidos, de Ricardo Calil e Armando Antenore, traz o mea culpa e a delação, forjada pela ditadura, dos militantes da luta armada nos piores anos da repressão militar, mas hoje Bolsonaro exalta a ditadura e volta a dizer que as Forças Armadas garantirão a “liberdade”.
A memória permite escapar do presente, e Serge Tréffaut traz de volta a lembrança do Brasil que levou há 40 anos quando saiu daqui e filma em Paraíso a seresta dos aposentados reunidos no Palácio do Catete, antiga sede do governo até JK inventar Brasília em 1960.

E Venício Artur de Lima descreve em livro e filme seus Parceiros de Caminhada (ed. do autor) como reconhecimento e memória pelo seu percurso de vida em 20 ensaios e ali estão Paulo Freire, educador e amigo, seu colega Henfil (Riquim) do curso de Sociologia e Política em Belo Horizonte que o chamava de Bolinha, e Alberto Dines com quem colaborou no Observatório da Imprensa de 1996 até o fim, “um jornalista maior e um grande ser humano”.

Memória viva como desenhos em sépia do cartunista Claudius sobre sua prisão no Dops, destaque do festival serrote (Instituto Moreira Salles) pelo YouTube. Ou as 15 mil cartas do exílio de Celso Furtado que viraram Correspondência intelectual, 1949-2004 (Cia das Letras) organizadas pela viúva e jornalista Rosa Freire d’Aguiar.

Se isso não dá alegria traz um respiro pelas vozes da resistência. Como a de Billie Holiday, perseguida pelo FBI, cantando Strange Fruit no Café Society novaiorquino em 1939 sobre os negros pendurados nas árvores, abertura de Estados Unidos vs. Billie Holiday de Lee Daniels. O filme é baseado no livro de Susan-Lori Parks que não chegou ao Brasil mas vai ser taxado em 12% batendo 20% porque ler para o governo Bolsonaro é coisa de rico.

Foi uma alegria ver o presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Souza doar milhares de livros para a biblioteca pública de Celórico de Bastos, vila do município mais pobre de Portugal, onde sua avó Joaquina nasceu. “Havia de encontrar onde apostar no desenvolvimento”, diz, “entendi que era, a longo prazo, na cultura e na educação”.

Na pesquisa Retratos da Leitura a classe C é a que mais lê no Brasil, 49% do total da amostra, 21,3 milhões dos 44 milhões de brasileiros. E as classes D e E formam 21% dos leitores com 5,6 milhões, deixando 30% de consumo de livros para as classes A e B. O ministro Paulo Guedes não deve ter lido a pesquisa feita em 2019-20 pelo Pró Livro e Itaú em 2019- 2020, em 208 municípios brasileiros.

Mas no Brasil 2021 a maior audiência de todos os tempos é do BBB. Só não dá para rir porque “Cai de boca no meu bucetão” virou o TCC de 66 páginas na Relações Públicas da Uerj, e tirou nota 10. O trabalho de conclusão de curso de Tamires Coutinho de 30 anos foi baseado nos versos escritos por Ludmila em 2018, cantados pela funkeira Mc Rebecca e pretendeu fornecer “uma análise do funk como potência do empoderamento feminino”, no “hino de libertação sexual da mulher…empreendedorismo”.

A Faculdade de Comunicação Social da Ufrj defendeu “o corajoso trabalho” e a pluralidade cultural da sociedade brasileira alegando “repudiamos qualquer iniciativa de cerceamento à liberdade de expressão e de pesquisa que venha a questionar o direito de nossos alunos e professores de refletir sobre os fenômenos culturais de nosso tempo”.

Mas Tamires levou paulada de Eduardo Bolsonaro, do presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, e do guru dos bolsonaros, Olavo de Carvalho. Três dos maiores demolidores do Brasil lembraram a degradação moral, intelectual e comportamental das “cadelas” submissas”. Olavo fez a paródia em sua linguagem habitual “em homenagem a este brilhante trabalho publicarei em breve minha tese acadêmica ‘cai de cu no meu pintão’ ”.

Rir é o melhor remédio. Mas aonde mesmo chegamos a ponto de ser Olavo, Eduardo e Camargo a cobrar nível cultural? Enquanto o governo taxa livros e corta a verba das universidades e escolas públicas, provocando a falência de editoras e livrarias como a Laselva, Saraiva, Cultura, Fnac, Cia das Letras? Quando o BBB21 turbina os pontos de audiência e “Cai de Boca” está em alta? Além do consolo do riso, resta aos brasileiros embarcar para a lua na SpaceX de bilionário Elon Musk que vai construir uma nave para levar astronautas. Ou, como ninguém mais pode viajar para Portugal se não for residente, nós sempre teremos Tonga para nos receber de braços abertos na fatia que nos cabe hoje no mundo.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).