Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

É leviana a maneira como a imprensa defende as privatizações das estatais do Brasil

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Não é ser contra ou favor da privatização das estatais. É pelo direito que tem o leitor de receber todas as informações sobre o assunto de maneira simples e precisa. Desde que comecei a trabalhar em jornal como repórter, lá em 1979, nos tempos que o ar das redações era inundado pelo barulho cadenciado das máquinas de escrever e nublado pela fumaça dos cigarros, a cada ano tomava corpo nas reportagens a defesa da privatização das estatais como sinônimo de desenvolvimento. Mesmo durante a ditadura militar (1964 a 1985). Com a redemocratização do país, em 1985, o volume a favor das privatizações aumentou e se incrustou de tal maneira no cotidiano das redações que começou a fazer parte dos nossos textos sem maiores explicações. Por quê? Simples. É assim que as redações funcionam desde que o mundo é mundo. Alguém diz alguma coisa e nos ficamos repetindo através dos tempos. Mas os tempos mudaram com a popularização das redes sociais e a diversificação das plataformas de comunicação. Essa nova realidade exige de nós repórteres maior precisão e riqueza de detalhes no que escrevemos ou falamos. Por esse motivo estou propondo uma reflexão sobre a questão das privatizações aos meus colegas repórteres, em especial aos jovens que estão na correria da cobertura do dia a dia.

Vamos enfileirar os fatos. Pegamos o exemplo da Petrobras, fundada em 1953. Por muitas décadas, os preços dos combustíveis, incluindo gás de cozinha e diesel, eram “amaciados” pela empresa, que praticava uma espécie de subsídio não declarado, impedindo que as oscilações do mercado internacional fossem repassadas na sua integridade para o consumidor e, com isso, ajudassem a empurrar a inflação para cima — principalmente no período da hiperinflação de 1980 a 1990. Mesmo depois que a inflação desceu a níveis civilizados, o subsídio disfarçado da Petrobras foi mantido por vários motivos, um em particular: mais de 70% das cargas no Brasil são transportadas por caminhões. Em 1997, a Petrobras deixou de monopolizar a indústria de petróleo no Brasil e se tornou uma empresa de capital aberto, sendo a União o acionista majoritário. Em 2016, no governo do presidente Michel Temer, assumiu a presidência da estatal o engenheiro e administrador de empresas Pedro Parente, 67 anos. No final de 2017, Parente alinhou os preços dos combustíveis, incluindo o diesel e o gás de cozinha, às variações dos mercados internacionais. Com isso, os preços nas bombas dos postos passaram a oscilar até duas vezes por semana, quase sempre para cima. Aqui é o seguinte. Com uma canetada, sem consultar ou discutir com ninguém, Parente acabou com a prática de subsídios disfarçados nos preços dos combustíveis que vigorava havia pelo menos quatro décadas.

Essa canetada causou uma confusão na economia, a tal ponto que os transportadores de carga e os caminhoneiros reclamarem de estarem contratando um frete por um valor e ainda durante a viagem o preço do diesel subia, alterando os custos e as margens de lucro. Em maio de 2018, os empresários do setor de transporte de cargas e os caminhoneiros autônomos colocaram o país de joelhos com uma greve de 10 dias que causou um prejuízo de R$ 16 bilhões para a economia nacional. Além do prejuízo econômico, a greve ajudou a radicalizar ainda mais a disputa política que acontecia pela Presidência da República. O candidato que liderava as pesquisas de intenção de votos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, havia sido preso pela Operação Lava Jato em abril. O seu principal adversário, Jair Bolsonaro, aproveitava cada oportunidade para consolidar a sua posição na disputa. Fez campanha forte nos piquetes dos caminhoneiros e se comprometeu com a categoria a dar um jeito na situação caso fosse eleito. Parente se demitiu e saiu de mansinho do cenário, deixado para trás um prejuízo de R$ 16 bilhões. Bolsonaro se elegeu presidente e agora os caminhoneiros estão batendo na sua porta, cobrando as promessas de campanha e ameaçando com nova grave. A paralisação só sai se os donos das empresas apoiarem. Eles ainda não se pronunciaram. Pelo menos publicamente. O presidente não tem como resolver esse problema. Se lá atrás tivesse sido discutida uma solução para o alinhamento dos preços da Petrobras que agradasse a todas as partes envolvidas, a situação hoje seria outra. Atualmente, o brasileiro ganha em reais e paga o combustível reajustado pelo dólar. Vai dar rolo.

Outra privatização que está sendo cogitada pelo governo federal e que não vem merecendo destaque na imprensa é da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Mesmo tendo fechado 300 agências, os Correios ainda têm postos espalhados por todos os cantos do Brasil. A capilaridade da empresa possibilita que os produtos cheguem aos mais distantes rincões com um preço de frete civilizado. E quem opera nesses rincões distantes? O agronegócio, principalmente o plantio de soja e a criação de gado de corte, dois esteios da economia nacional. Uma eventual privatização da empresa que não levar em consideração o atendimento aos rincões do país acabará sendo prejudicial para a economia, em particular o agronegócio. O mesmo raciocínio vale para as empresas do setor elétrico. Aqui um detalhe. A internet no Brasil funciona bem nas regiões metropolitanas, cidades de porte médio e em alguns municípios pequenos. No resto do país é um pesadelo.

A realidade é que uma empresa privada não vai investir em uma operação que não lhe traga lucros. Não tem como fazer isso. Esse fato tem ficado de fora das nossas matérias sobre privatizações. Temos focado os nossos conteúdos em ser contra ou a favor, nas sacanagens dos dirigentes das empresas e na discussão do tamanho do Estado. Deixamos de lado o fato de que foram essas estatais que levaram para todo o território nacional a estrutura de serviços e industrial ao redor da qual a economia brasileira cresceu. Por exemplo: a produção e distribuição de energia elétrica, o petróleo e a construção de estradas. Todo esse contexto precisa ser avaliado na hora de discutir as privatizações. Por quê? Nosso leitor precisa saber o que irá se alterar na sua vida com o destino da cada empresa. Lembrei-me de uma história que ouvi quando era estudante da Fabico, a Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na época, eu frequentava os botecos próximos às redações para conviver com os jornalistas e pegar o jeitão deles. Tinha um velho repórter que certa vez, depois de empilharmos várias garrafas vazias de cerveja, me deu um conselho. Disse-me: “Cuidado com a Síndrome de Wyatt Earp”. Pensei que se tratava de alguma doença venérea. Ele me explicou: “Quando o repórter convive muito tempo com suas fontes, acaba pensando, agindo e até se vestindo como elas. Tu vê. Os caras que fazem cobertura de polícia, de tanto lidar com policiais e bandidos acabam se vestindo e falando como eles. E quando começam a escrever como se fosse um polícia ou um bandido, perdem valor para o leitor”.

Eu optei pela especialização na minha carreira de repórter em conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras. Nas matérias especiais, adotei como norma pedir a um colega, de preferência recém-chegado à redação, para ler os meus textos. Queria saber se não estava escrevendo só para que entendia do assunto. Na questão das privatizações, os colegas da editoria de economia convivem tanto com economistas, empresários e lobistas que acabam assumindo o que esses grupos pensam e dizem como se fosse a única verdade. Não é. E nosso leitor merece saber a história toda.

Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.