Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Omb o quê?” Ainda?

(Foto: Freepik)

Publicado originalmente no site objETHOS

Vou lembrar o milagre, mas não o santo. Desculpem. Mas li em algum lugar, há alguns anos, que quando alguém foi procurar pelo ombudsman da Folha de S.Paulo na recepção do jornal, o funcionário se espantou com a palavra: “omb o quê?!”, teria dito, esclarecendo-se a situação somente após o nome do então ocupante do cargo ser fornecido. A função, no entanto, já existia no jornal há vários anos. Em 24 de setembro de 1989, pela primeira vez em um jornal da América Latina, alguém era pago para defender o leitor. Caio Túlio Costa estreava como o primeiro defensor do leitor no Brasil. Estamos celebrando, portanto, trinta anos da estreia do ombudsman na imprensa brasileira.

E, três décadas depois, podemos nos perguntar: a palavra ainda causa espanto? Talvez. Alguns já estão cansados de ouvir, mas é uma palavra sueca. No Brasil, a Folha adotou o termo para ambos os gêneros e ombudsmans, no plural, ainda que em países de língua inglesa tenha se convencionado usar ombudsman, ombudswoman (mais raramente) e ombudsmen, que podem ser encontrados em algumas referências.

E se a palavra não soa tão familiar, podemos afirmar que o brasileiro conhece o conceito de ouvidoria? Nas entidades privadas, o ombudsman entra primeiro nas empresas jornalísticas, passando pelo setor bancário e outros segmentos na sequência. A função que visava atender ao cidadão se estabeleceu no país onde, segundo Caio Túlio Costa (2006, p.11), a cidadania é um “desejo difuso e uma possibilidade distante”. E lembremos: a atividade, de caráter bastante democrático, surge no jornalismo pouco depois da nossa Constituição de 1988 ter sido aprovada. Ao longo dos anos, a ouvidoria pública foi pouco a pouco sendo adotada nas mais importantes esferas governamentais, tal como na saúde (no Sistema Único de Saúde – SUS, em hospitais, etc), na segurança (polícias, secretarias) e na educação (universidades federais).

A propósito, a instituição, na Suécia, surgiu com o termo justitiombudsman, e possuía mais esse caráter público e cidadão. Em 1967, os jornais americanos Louisville Courier Journal e Louisville Times, ambos de Louisville, no estado de Kentucky, foram os pioneiros na implantação do cargo e resolveram adotar a nomenclatura para o defensor do leitor. Em diferentes países, a terminologia muda, sendo defensor del lector na Espanha, médiateur na França, provedor do leitor em Portugal. Para seu ombudsman, a Folha se baseou nas experiências do Washington Post e do El País, e acabou adotando a nomenclatura existente nos EUA.

Brasil: ombudsman crítico

Embora os modelos de jornalismo como quarto poder, vigilante dos outros poderes e o termo watchdog tenham surgido nos Estados Unidos, lá, nos primórdios, o ombudsman de imprensa era mais ouvidor do leitor e menos crítico de imprensa. Desde o início, o ombudsman brasileiro reunia ambas características: a de ouvir o leitor e criticar, além do seu próprio jornal, a mídia em geral.

O ombudsman teve sua era áurea em meados dos anos 1990, década de florescimento democrático no Brasil e no mundo. Diversas ouvidorias começaram a ser implantadas. Tivemos eleições diretas, tínhamos uma constituição recente, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diversos direitos civis foram conquistados. No mundo, era o fim da Guerra Fria e o Muro de Berlim havia caído em 1989, trazendo novos ares de liberdade em diversos países. Ainda assim, não foi majoritariamente adotado em jornais – assim como se propagaram, no Brasil, a ouvidoria pública e serviços de atendimento ao consumidor em empresas particulares e prestadoras de serviço. A partir dos anos 2000, o número já havia caído drasticamente. Difícil precisar a quantidade quando até mesmo a organização internacional dos ombudsmans de imprensa (ONO – Organization of News Ombudsmen and Standards Editors) tem números e mesmo membros desatualizados, como podemos conferir pela não atualização do ombudsman da Folha (há vários cargos, por sinal…). A própria organização deixa a desejar. Talvez eles precisem de um ombudsman…

Hoje, apenas os jornais Folha de S.Paulo e O Povo, no Ceará, mantêm o ombudsman no Brasil. Qual a explicação? Há algumas opiniões pertinentes de jornalistas, pesquisadores, ombudsmans e ex-ombudsmans. A partir das pesquisas que fiz e li ao longo dos anos, apresento alguns indicativos. O jornalismo carrega consigo uma ambivalência em seu âmago: é um negócio que presta serviço público. É feito por empresas que, a princípio, precisam ter lucro para se manter. Ao mesmo tempo, devem prestar informações de interesse público. Obviamente, relações perigosas entre público e privado sempre existiram ao longo dos anos e o jornalismo é um dos maiores exemplos. Porém, essa dicotomia ganha destaque no trabalho do ombudsman e mesmo na decisão de tê-lo ou mantê-lo.

Responsabilização e transparência

Pelo que pude perceber, as empresas, de modo geral, e também as jornalísticas, querem se mostrar respeitosas, responsáveis e accountable. Ombudsman, entre outros, é um meio de accountability. Pois bem, o jornal quer se mostrar accountable, porém não deseja ser tão transparente. Neste raciocínio, ter um ombudsman é mostrar-se accountable. Não querer que o ombudsman mencione ou traga a público certos assuntos é não querer ser totalmente transparente.

Com isso, é mais fácil imaginar a estabilidade de ouvidorias no serviço público. Este, como o nome já diz, é serviço prestado por entidades públicas, com dinheiro coletado dos impostos de toda a população. E, como o dinheiro é de todos, a cobrança vem de diversos setores. O setor público desenvolveu meios de checagem e funcionamento ao longo dos anos que tornam a cobrança mais efetiva e parte do sistema. Mesmo assim, nem tudo são flores.

Por princípio, serviços públicos e privados funcionam de maneira distinta. O governo, apesar de ser obrigado a cobrar cumprimentos legais, não pode intervir no funcionamento interno de uma empresa. Com isso, o ombudsman pode ser considerado um mecanismo de accountability, sendo, em uma empresa privada, um meio voluntário. Para uma empresa, um valor tanto simbólico quanto prático é a credibilidade. Alguns terão diferentes ideias do que traz confiança. Para alguns, ter transparência com os erros, feedback dos clientes e tentativa de melhorias aumentam a credibilidade. Para outros, ter alguém que deixe os erros transparentes é uma pedra no sapato.

Com isso, a coluna pública de ombudsman pode ser um espaço de autocrítica do próprio jornal que o abarca, pode ser um ator a mais no papel da imprensa de criticar os poderes e governantes ou pode se tornar o locus de embate de ethos. O ethos jornalístico versus o ethos empresarial. Se nessa colisão sai fogo em vez de debates racionais produtivos, quem perde é o leitor e cidadão. A falta de ombudsman pode ser um sintoma da crise no jornalismo como modelo de negócios, como ator político e representante da esfera pública. Tendo reinado por várias décadas, o jornalismo hoje não só disputa como muitas vezes perde espaço para mídias sócias, robôs (bots), notícias falsas, etc.

Façamos uma comparação meio forçada. Serviços de busca, como o Google, são uma mão na roda. Internet: melhor pessoa, nossa melhor amiga. Procurar saber de uma doença por meio de algum sinal pode te ajudar em pequenos casos ou até certo ponto. Porém, uma ressaca e um coágulo na cabeça podem gerar o mesmo sintoma. O jornalismo responsável não inventa nem espalha uma informação tão absurda como a de uma mamadeira pornográfica – dado insensato que conseguiu influenciar nossa última eleição presidencial. Portanto, quando a coisa apertar, procure um médico responsável. Na dúvida, não acredite na informação fantasiosa de grupo do WhatsApp. Leia publicações críveis. O ombudsman faz parte do jornalismo de verdade. Em vez de “omb o quê?!”, quem sabe venhamos a ouvir: “tenho dúvida se é fake news, vou procurar o ombudsman”. Sonhar com dias melhores para o jornalismo não custa nada.

Em tempo: na última semana, a Folha divulgou algumas matérias e um podcast sobre os trinta anos do ombudsman no jornal e discussões sobre a atividade no jornalismo. Vale a pena checar.

Em tempo 2: ano passado, os professores Elaine Javorski e Sergio Gadini organizaram um livro sobre o ombudsman no Brasil. O professor Gadini, em congresso do Sbpjor 2018, prometeu uma nova edição em 2019, com novas descobertas para as comemorações dos trinta anos. Vamos cobrar. Bem como o objETHOS, nos bastidores, prometeu novas publicações. Entre elas, um apanhado inédito sobre quem já foi ombudsman no país. Vamos (nos) cobrar também!

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Juliana Rosas é doutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS.

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REFERÊNCIA

COSTA, Caio Túlio. O relógio de Pascal. 2.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2006.