Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Gazeta nas eleições de 2002

Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar a existência. E as palavras podem causar estragos. (Pierre Bourdieu)

Misturando gêneros

O jornal A Gazeta de domingo, dia 1º de setembro de 2002, destacou a seguinte manchete principal de capa: ‘Hartung lidera com 52%.’ Como sobre-título o jornal publicou: ‘Senador venceria no 1º turno, se as eleições fossem hoje.’ O olho de abertura, que também é chamado pelos jornalistas de linha fina, aquela informação que fica logo abaixo do título, destacou ainda: ‘Candidato cresceu três pontos, enquanto Max, no segundo lugar, subiu dois e apareceu com 29%.’ Porém, o que havia logo abaixo da manchete principal dessa edição era uma grande fotografia (a mais importante da capa) onde se podia ver uma linha de chegada sendo trespassada por um corredor solitário, no caso o atleta campeão do Triatlo do Exército, evento realizado na véspera. Na foto, o cenário era a praia de Camburi, em Vitória, e no canto superior – quase concorrendo com a manchete – via-se estampada a palavra ‘CHEGADA’. As pessoas aplaudiam o triatleta.

Este é um exemplo bastante significativo de como a mídia, no seu ato de informar, costuma promover uma mistura de gêneros discursivos. O modo de apresentação da página causou uma aproximação simbólica de elementos antes bem distintos. É claro que ainda é cedo, neste artigo, chegarmos à conclusão de que a mídia, só por isso, se torna um instrumento de manipulação simbólica. Também não queremos, com o exemplo, estabelecer uma associação automática e imediata entre dois itens desta capa. Poderia parecer que a escolha dos elementos mostrados nasceu de uma visão conspiratória do fazer jornalístico em sua relação com a política. Provavelmente não é o caso de tanto maquiavelismo, o que não altera substancialmente o problema: foi feito, a sugestão existe, foi feita uma representação de fatos reais. Disso, o que importa reter é a consciência dos modos como a mídia representa a realidade e que a tornam determinante nos processos de construção dos valores simbólicos em circulação na sociedade. A imprensa não se constitui simplesmente enquanto instrumento de representação, mas também e ao mesmo tempo, verdadeiro dispositivo onde a realidade vai buscar referência. Dada a sua onipresença, seu discurso se torna permanentemente disponível a todos. É impensável uma disputa eleitoral contemporânea sem a presença da mídia, pois cada vez mais ‘as coisas’ existem porque se tornam objeto de atenção dela e, inseparavelmente disso, acontecem do modo como ela os publiciza.

A capa de A Gazeta do dia 1º de setembro é uma boa amostra de como, no processo discursivo do jornal, os sentidos não se doam, mas são construídos. E isso interfere no tecido social, construindo realidade. Porém, diferentemente do que se possa num primeiro momento concluir, quanto mais se avança na análise de um meio, mais se é levado a isentar os indivíduos de sua responsabilidade, e ‘quanto mais se entende o seu funcionamento, mais se compreende também, que aqueles que dele fazem parte são tão sujeitos quanto assujeitados.’ (BOURDIEU, 1997)

Legitimidade específica e pragmática

Para analisar as edições dos cinco primeiros dias de outubro de 2002, não bastará constatar o que A Gazeta disse nestes dias. Nem tampouco se pode, para a análise proposta, utilizar modelos que definem a linguagem como suporte do pensamento ou como mero instrumento de comunicação, já que, ao pensarmos, pensamos em linguagem e toda e qualquer referencialidade da palavra é necessariamente ‘contaminada’. A ferramenta de análise que utilizaremos será a análise de discurso que vê a linguagem como ‘interação […] a relação necessária entre homem e realidade natural e social’. (ORLANDI, 1988, p.17) Assim a linguagem assume um papel de trabalho, ação social, não havendo de um lado a coisa-em-si, e, de outro lado a coisa-para-nós mas uma relação dialética entre a materialidade do mundo e o sistema de significação usado para organizá-lo.

Ao fazermos uso da linguagem, o fazemos em um dado contexto histórico e a partir de um lugar. Por isso afirmamos acima, que quanto mais se entende o funcionamento de um meio, mais se compreende também, que aqueles que dele fazem parte são não só constituidores como também constituídos no próprio processo, pois não temos o total controle que acreditamos ter sobre aquilo que expressamos. Neste processo, operamos, enquanto sujeitos discursivos, pelo inconsciente e pela ideologia. As palavras que conhecemos e usamos para organizar o mundo chegam para nós já carregadas de sentido que conhecemos e achamos que dominamos. Aquilo que entendemos como evidente e óbvio (o sentido das palavras) na verdade é parte de um processo do qual não dominamos todos os mecanismos que operaram na constituição destes sentidos. Esse desconhecimento relativo é o que possibilita a naturalização da relação do simbólico com o histórico. É como se o sentido estivesse sempre lá, nas palavras desde sempre. O discurso se apresenta – e isso inclui obviamente os jornalistas – como sendo um reflexo daquilo que conhecemos da realidade objetiva.

Entendemos como sendo esfera pública o lugar onde o jogo das interações sociais, e os movimentos dos atores ganham visibilidade social, é onde o jogo e as suas regras aparecem. A comunicação é o processo que ‘cria/institui’ o espaço público e ao mesmo tempo constituinte dele, ela também é estruturada pelas regras da conformidade social.

Por isso a comunicação não é apenas instrumento à disposição dos indivíduos, dos grupos informais ou dos grupos organizados para darem a conhecer factos, acontecimentos, pensamentos, vontades ou afectos. É, sobretudo, o processo instituinte do espaço público em que se desenrolam suas acções e os seus discursos e coincide com o próprio jogo dos papéis que as instituições lhes destinam. (RODRIGUES, 1997, p.141)

‘O mundo social apresenta-se, objetivamente como um espaço simbólico que é organizado segundo a lógica da diferença do desvio diferencial’. (BOURDIEU, 1990) O campo é este espaço onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O campo se define como o locus onde se trava a luta concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão. O campo das mídias, como todo campo social, constitui uma instituição social, um lugar. Esses ‘lugares’ definem esferas de legitimidade que impõem, que colocam, com autoridade indiscutível, atos de linguagem, discursos e práticas específicas, dentro de um domínio específico de competência.

Particularmente no campo das mídias, a legitimidade expressiva, (poder dizer), e pragmática, (poder fazer), é por natureza delegada dos outros campos sociais. Ele então, funciona e é estruturado, de acordo com os objetivos e interesses dos diferentes campos. Numa sociedade fragmentada que foi se configurando a partir da modernidade, há uma gama de campos sociais. A mídia ganha assim, a função de assegurar, apesar da fragmentação, divisão e confronto, uma homogeneidade da estrutura e entendimentos acerca dos princípios, objetivos, prioridades e modalidades de ação.

Relações imaginárias e contextualização

A legitimidade específica do campo das mídias reside no fato de no mundo moderno o processo de disseminação das esferas da experiência terem se tornado autônomas. Isso quer dizer que papel de mediação entre mundo – sociedade (mundo da experiência) tornou-se uma esfera com valores próprios e, assim, legítima. Um campo autônomo. Aí é que se situa a questão da dependência, num processo eleitoral, da incursão da mídia. Todo campo social precisa dentro de sua ordem axiológica de uma função de mediação. Precisa inscrever seu discurso, gestos e comportamentos para ganhar visibilidade para os embates e disputas.

Existe então um processo de articulação do funcionamento das instituições sociais com os meios de comunicação. Na sociedade mediatizada o campo das mídias é uma instância importante de produção de bens simbólicos ou culturais e também impregna a ordem social pelos dispositivos maquínicos de estetização ou culturalização da realidade.

A natureza vicária do campo dos media tem a ver com a delegação por parte dos outros campos de uma parte das suas funções expressivas, daquelas que dizem respeito à inscrição da sua ordem no espaço publico, da componente exotérica das respectivas funções expressivas. (RODRIGUES, 1997, p. 156)

No campo político o regime de verdade (grandes causas, utopias, revoluções) foi substituído pelo da credibilidade, garantida pelas estatísticas. Neste contexto social em que a democracia é mais senso comum e ambiência cotidiana do que paixão ideológica, os meios de comunicação adquirem um novo estatuto cultural e uma posição de poder sem precedentes na História.

Então, já não se trata mais da velha imprensa como tribuna de uma consciência liberal, mas de um complexo integrado de formas de expressão escrita, falada e imagística, susceptível de construir uma verdadeira estrutura de poder. ‘(…) altera-se a relação dos meios de comunicação com o estado e a sociedade. A imprensa, enquanto dispositivo de livre circulação de idéias e opiniões dá lugar a outros imperativos de poder’. (SODRÉ, 1996, p.71)

Nos preocupamos, neste trabalho, com a chamada superficialidade lingüística do jornal: o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias. Buscamos compreender a relação entre o lingüístico e o ideológico, basicamente entre as marcas formais textuais e as formações discursivas presentes no contexto histórico e social. Além disso, representarão os recursos de análise que nos estarão disponíveis as relações imaginárias e a contextualização.

O que deve ou não ser dito

Dentro da discursividade construída no jornal A Gazeta é possível identificar algumas modalidades de discursos concorrentes. Procuraremos investigar e entender este universo de disputa. Um dos modos de discurso presentes é o procedimento jornalístico.

Ele é a materialização, no plano do discurso, da ideologia da neutralidade e objetividade da imprensa. Na fase do capitalismo monopolista, a mídia, embora submetida à lógica do mercado e voltada para o incentivo ao consumo, integra o espaço de argumentação pública e racional da democracia representativa. (Habermas, 1961 apud SÁ, 1994, p.313)

Ideologia da neutralidade e objetividade mas compreendendo a ideologia não como repertório de conteúdos, visão de mundo nem como ocultação da realidade: algo que se oporia à ciência. É na obviedade do sentido das palavras, na crença em que ao dizermos só poderíamos dizer de uma única maneira, é ao acreditarmos sermos fonte exclusiva de nosso próprio discurso, ou ainda na crença na transparência da linguagem que se situa a questão da ideologia. A ideologia é um sistema de investimento de sentidos em matérias significantes: um sistema de relações entre um conjunto significante dado e suas condições sociais de produção. Ela é ‘condição para a constituição do sujeito e dos sentidos.’ (ORLANDI, 2002, p.46) Isso significa entendermos ser a ideologia algo estruturante do processo de significação.

Então são negadas as evidências do sentido e do sujeito, já que as palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em suas relações e o sujeito é sujeito pela ideologia. ‘O sujeito que produz linguagem também está reproduzido nela.’ (ORLANDI, 1988, p.19) Não se pode com isso esquecer que a linguagem é também ação, visto que o pensamento humano gera produtos concretos capazes de afetar e transformar materialmente o universo, ao mesmo tempo em que são por ele afetados.

Voltando ao saber jornalístico, ele é, no contexto do jornal, uma espécie de fonte que instaura a partir da ideologia da neutralidade o que deve ou não ser dito.

Formação discursiva consensual

A formação discursiva consensual (F.D.C.) possui como regularidade um corpus de enunciados que argumentam a favor da negociação e do consenso como elementos marcantes das relações políticas. Ela procura apagar as tensões e contradições presentes não só nas diversas leituras da realidade política como também no interior de cada uma delas. Há uma valoração positiva para o saber argumentar, encontrar o consenso e evitar a expressão de conflitos que são próprios ao debate. Na F.D.C. os sujeitos da enunciação se colocam e trabalham – procuram uma imagem enunciativa – de maneira a defender um compromisso com a democracia e a responsabilidade no trato com a coisa pública, mas evitam, de forma contraditória, que sejam debatidos os grandes problemas do momento.

‘O apoio da sociedade’

No dia 01/10/02, na página 6 da editoria de política, a matéria principal, localizada no topo, à esquerda, tem como manchete: ‘Hartung pede esforço para vencer no 1º turno’; como olho: ‘Candidato pede que a militância vá às ruas para evitar segundo turno’. Os dois primeiros parágrafos seguem assim:

O senador Paulo Hartung (PSB) pediu ontem que sua militância tome as ruas da Grande Vitória na última semana de campanha e solicitou aos que lhe apóiam que ‘multipliquem’ o trabalho nos próximos dias, para evitar o segundo turno nas eleições. Ele avaliou que um novo turno seria um ‘corredor polonês’.

‘O segundo turno será um verdadeiro corredor polonês para enfraquecer o governador eleito, para tirar sua legitimidade’ assinalou o candidato, na noite de ontem, no clube Álvares Cabral, em Vitória. (AMORIM, Radanezi. Hartung pede esforço para vencer no primeiro turno. A Gazeta, Vitória, p.6, 1 de out. 2002)

O locutor impessoal (trechos do repórter) se fundamenta na objetividade para dar voz total ao candidato visível no texto apenas pelas aspas. Estes enunciados funcionam, praticamente, como um serviço de porta-voz do candidato. Isso nos permite até classificar ‘na teoria do ato de fala, seguindo a classificação de Searle, as características deste tipo de relação com a enunciação presente na matéria de fala assertiva.’ (TRABANT, 1980) Um bom exemplo disso é a frase em que o candidato Paulo Hartung diz que um segundo turno serviria para tirar legitimidade do governador eleito, quando não há ninguém mais legítimo do que aquele que é eleito. O não contradizer e o não problematizar indicam uma conivência do jornal com a banalização por parte do candidato dos temas da esfera política.

Na matéria acima, o sujeito da enunciação, traz à tona e marca de maneira positiva, no candidato Paulo Hartung e em seu grupo, valores como o de sacrifício e empenho para chegar a vitória. Aponta-se para um clima de terror prenunciando-se um ‘corredor polonês’ no segundo turno. O sujeito da enunciação é ‘o conjunto dos enunciadores com os quais o emissor – o significante ‘eu’ de um texto verbal – se identifica.’ (PINTO, 1999, p.31) Ele define a imagem ou lugar enunciativo, que é o sentido que o próprio emissor reivindica para si mesmo com o texto. Todo texto distribui, associadas ao universo discursivo em jogo, marcas positivas ou negativas, reações favoráveis ou desfavoráveis e relações dentro de uma malha de significados. Isso que dizer que é impossível, mesmo para um discurso que tenha a pretensão da objetividade, falar de nenhum lugar.

Na mesma página e edição, em matéria abaixo da já citada, a manchete foi: ‘Max pretende intensificar as caminhadas na reta final.’ E os dois primeiros parágrafos foram:

O candidato ao Governo do Estado pela Frente Trabalhista Movimento Muda Espírito Santo, Max Mauro (PTB), garantiu na manhã de ontem, durante um corpo-a-corpo, no Centro de Vitória, que vai intensificar as caminhadas nesses últimos dias que antecedem as eleições. ‘Vou continuar mantendo a mesma estratégia, me reunindo com setores da sociedade para apresentar minhas propostas e intensificar as caminhadas, o corpo-a-corpo e os comícios’, afirmou. O candidato quer contar com o apoio da sociedade ‘para libertar o Espírito Santo da bandidagem e do crime organizado’ afirmou.

Max esteve acompanhado, em sua caminhada, pelos candidatos petistas ao Senado, João Coser, e à Câmara, Perly Cipriano, entre outros. (MAX pretende intensificar as caminhadas na reta final. A Gazeta, Vitória, p.6, 1 de out. 2002)

Nesta matéria a discursividade funciona de maneira que o saber jornalístico não dá destaque a possibilidade de vozes destoantes. O espaço para o dissenso é controlado, já que a matéria se limita praticamente à cobertura da agenda do candidato. Essa limitação busca legitimidade nos procedimentos jornalísticos. O efeito de sentido provocado nesta página é o de um clima de definição, pois nela as vozes da F.D.C. são privilegiadas nas matérias. O processo político é levado de maneira morna e as questões importantes para serem levantadas dentro deste espaço público ficam à revelia.

A frase ‘O candidato quer contar com o apoio da sociedade ‘para libertar o Espírito Santo da bandidagem e do crime organizado’’, pressupõe que o candidato não conta ainda com ela. Isso quer dizer que o emissor pôs em cena dois enunciados: E 1- o candidato não conta com o apoio da sociedade e E 2- o candidato gostaria de contar com o apoio da sociedade.

Reverter o quadro

No jornal do dia 04/10/02, a segunda e a terceira página trazem o mesmo funcionamento da edição do dia 01/10/02, o que evidencia uma regularidade no jogo de ‘vozes’ presentes em A Gazeta. Na página 2, a matéria principal teve a manchete: ‘Max faz maratona eleitoral atrás de votos’; o olho: ‘Candidato foi a seis cidades do interior e fez dois comícios na Grande Vitória’; e o lide:

O candidato ao Governo do Estado Max Mauro (PTB) encerrou o seu último dia de comícios realizando uma ‘maratona eleitoral’. Ontem, acompanhado do candidato ao Senado Magno Malta (PL), ele fez corpo-a-corpo em seis municípios do interior do Estado e participou de dois comícios na Grande Vitória. (GARCIA, Lúcia. Max faz maratona eleitoral atrás de votos. A Gazeta, Vitória, p.2, 4 de out. de 2002)

Na matéria principal da terceira página publicou-se a seguinte manchete: ‘Hartung debate proposta para a área do turismo’; o olho: ‘Candidato diz que setor turístico poderá ajudar a desenvolver a economia’; os dois primeiros parágrafos:

O candidato do PSB ao Palácio Anchieta, senador Paulo Hartung, enfatizou ontem junto a empresários ligados à área de turismo, em Guarapari, a importância da atividade para o desenvolvimento econômico do Espírito Santo. O senador recebeu um manifesto de apoio à sua candidatura assinado por doze entidades do setor.

O Espírito Santo tem um grande potencial para crescer com o turismo. A natureza foi muito generosa pois nos deu praias lindíssimas e uma região de montanha belíssima. O que falta é infra-estrutura, treinamento e educação. Precisamos limpar nossas praias, que não podem servir mais de esgoto e apresentar ao Brasil um Estado com 400 quilômetros de praias limpas, destacou o candidato. (LIMA, Luciana. Hartung debate proposta para a área do turismo. A Gazeta, Vitória, p.3, 4 de out. de 2002)

Na primeira matéria o posicionamento do jornal na sua pretensão à objetividade situa o candidato Max Mauro em um lugar enunciativo que podemos chamar de periférico. Isso é apresentado desde a escolha da manchete até o lide. A expressão ‘maratona eleitoral’ traz dentro de um contexto sócio-cultural uma busca daquele que está por trás, que corre atrás, de reverter o quadro.

Filmes de faroeste

Já na matéria da página 3 o sujeito da enunciação trabalha para colocar o candidato Paulo Hartung no lugar daquele que decide e que tem parceria e apoio de empresários para fazer, colocar em prática seus projetos. Como se já fosse fato consumado Hartung ser eleito governador. A matéria tem como procedimento discursivo apresentar um sujeito da enunciação que aponta para o fato de que o Espírito Santo tem um grande potencial; que o Estado é belíssimo, tanto praias quanto montanhas; que precisamos de infra-estrutura; para enfim apresentar ao Brasil 400 quilômetros de praias limpas. Assim, o sujeito da enunciação faz apelo ao orgulho e a inferioridade que se poderia atribuir ao Estado. Ele mexe com a simbologia da exaltação do regional e do reconhecimento por parte de todos das virtudes da própria terra.

Enquanto na página 2 Max Mauro é candidato ao Governo do Estado, na 3 Paulo Hartung é candidato ao Palácio Anchieta. O fato de o jornal ter de colocar sempre e sem exceção o cargo ao qual o candidato está concorrendo aponta para um tipo de funcionamento discursivo característico do que se pode chamar de gênero discursivo. ‘Gênero discursivo é o conjunto de normas, convenções, códigos e práticas subjacentes ao texto.’ (PINTO, 1999) O grau de ritualização do processo de produção, a sua organização no interior das empresas e os procedimentos técnicos adotados garantem o rigor conteudístico deste gênero discursivo. Assim, a escolha acima -Hartung no palácio e Max no Governo- tem respaldo e legitimidade do contexto de produção do jornal em sua prática discursiva.

Nos dias 02, 03 e 05 o jornal tentou mudar o clima morno, mas ficou na tentativa, visto que a discursividade foi a mesma.

Em A Gazeta do dia 02/10/2002, na página 3, foi publicada a seguinte manchete principal: ‘Candidatos se enfrentam em debate na ‘TV Gazeta’’; seguida do olho: ‘Hartung e Max esperam conquistar os votos dos eleitores indecisos’. O lide discorreu:

O debate da TV Gazeta, com início às 22h25 de hoje, será o momento decisivo da campanha eleitoral para os dois candidatos que lideram a disputa ao Governo estadual: o senador Paulo Hartung (PSB) e o deputado Max Mauro (PTB). A quatro dias das eleições, os dois candidatos terão a oportunidade de discutir frente a frente suas principais propostas e vão tentar captar os votos dos eleitores indecisos. De acordo com a última pesquisa eleitoral do Instituto Futura, Hartung tinha 47% das intenções e Max 34%, uma diferença de 13 pontos. (AMORIM, Radanezi e MONTEIRO, Marcus.Candidatos se enfrentam em debate na ‘TV Gazeta’. A Gazeta, Vitória, p.3, 2 de out. de 2002)

Há na matéria acima uma auto-valoração por parte da empresa, já que ela se coloca no lugar de centro da cena. O sujeito da enunciação do texto reivindica para si o posto de espaço privilegiado e decisivo de disputa. O instituto de pesquisa aparece como um dos sujeitos do enunciado para dar legitimidade científica à enunciação. Mais uma vez a rotina e o procedimento de produção do jornal estão marcadas no texto. Foi utilizado um chavão jornalístico: ‘discutir frente a frente’, que remete aos filmes de faroeste.

‘Menos irritante e encrenqueiro’

Logo abaixo, à esquerda, encontra-se uma matéria com a seguinte manchete: ‘Hartung aponta [grifo nosso] uso político de assassinato’; e com o lide:

O senador Paulo Hartung (PSB) negou ontem ter rejeitado ajuda à família do advogado Marcelo Denadai, assassinado em abril, conforme foi veiculado no programa do deputado Max Mauro (PTB), seu principal adversário na disputa ao Governo. Hartung atribui a informação ao vereador de Vitória Antônio Denadai (PTB), irmão do advogado e candidato a deputado estadual pela coligação de Max. (HARTUNG aponta uso político de assassinato. A Gazeta, Vitória, p.3, 2 de out. de 2002)

O veículo realizou uma inversão, pois publicou primeiro a resposta do senador e depois a denúncia de Max. A defesa de Hartung mereceu virar notícia enquanto a denúncia de Max ficou confinada ao seu programa eleitoral. O apontamento de Hartung mereceu vir antes mesmo da denúncia feita pelo outro candidato. Isso, é claro, acaba determinando como vai se receber a denúncia. Além disso, Hartung aparece como sujeito que tem o poder de atribuir as informações, que segundo ele são falsas, ao vereador Denadai. Hartung é colocado, ele mesmo, como sujeito do enunciado enquanto na enunciação de Max o sujeito do enunciado é seu programa. Isso confere mais autoridade ao candidato Paulo Hartung, pois enquanto Hartung fala, Max é mediado pelo marketing – por ele fala o programa eleitoral. Dessa forma o sujeito da enunciação descaracteriza por completo a denúncia, tornando-a um simples jogo de interesses.

Temos à direita desta última matéria uma reprodução de uma foto de Max e à direita da foto publicou-se a manchete: ‘Max rebate crítica [grifo nosso] de adversário’; os dois primeiros parágrafos foram os seguintes:

O candidato ao Governo pelo PTB, deputado federal Max Mauro, rebateu ontem as críticas de seu adversário, o senador Paulo Hartung (PPS), [incrivelmente erraram o partido do candidato] e afirmou que, quando esteve à frente do Palácio Anchieta, de 1987 a 1990, combateu o crime organizado. Max disse que o Estado vem sendo vítima da mentira nos últimos anos e o eleitor não aceita mais mentiras

Hartung deu entrevista coletiva ontem para rebater a acusação [grifo nosso] feita no programa de Max. O deputado chegou a declarar que seu ‘adversário é mesmo o candidato do crime organizado’. Na reação, Hartung listou crimes que não teriam sido solucionados quando Max foi governador. (MAX rebate critica de adversário. A Gazeta, Vitória, p.3, 2 de out. de 2002)

São extremamente significativas as duas matérias acima para se clarificar como o funcionamento discursivo aponta para sentidos no universo simbólico, o que se dá sempre em um universo em disputa. O modo de dizer – ‘forma empírica do uso da linguagem no interior de uma prática social contextualizada histórica e socialmente’ (PINTO, 1999, p.23) – exibido pelas matérias pode ser destrinchado em modos de mostrar, de interagir e de seduzir. No primeiro estabelecem-se as relações entre aquilo do que se fala e localiza-se no tempo e no espaço: a troca de acusações entre os candidatos traduzida nas manchetes: ‘Hartung aponta uso político de assassinato’ e ‘Max rebate critica de adversário’. No segundo modo, são construídas as identidades e relações sociais assumidas pelos participantes no processo comunicacional: enquanto Max acusa, Paulo Hartung critica representado principalmente pelos trechos ‘Max rebate critica de adversário’ e ‘Hartung deu entrevista coletiva ontem para rebater a acusação [grifo nosso] feita no programa de Max.’ No terceiro modo, o modo de seduzir, distribui-se os afetos positivos e negativos, demonstra-se uma reação afetiva favorável ou desfavorável: aquele que crítica e faz apontamentos em nosso contexto sócio-cultural é muito mais maduro, centrado e preparado para governar, além disso, menos irritante e encrenqueiro que aquele que acusa.

Disputa acirrada

No dia 03/10/02 a matéria principal da página 6 teve a manchete: ‘Troca de ataques no fim do horário eleitoral’; o olho: ‘Os candidatos Max Mauro e Paulo Hartung se acusaram mutuamente ontem’; os cinco primeiros parágrafos:

Os dois principais candidatos ao Governo estadual, Paulo Hartung (PSB) e Max Mauro (PTB), trocaram ataques em seu último programa no horário eleitoral, contrariando o tom morno da maior parte do período de propaganda.

Hoje os candidatos a presidente e a deputado estadual encerram o período previsto pelo calendário eleitoral para a propaganda gratuita. O calendário prevê ainda que no sábado seja encerrado qualquer tipo de campanha. No programa de Max, o deputado disse ser o ‘único candidato com independência e história de luta contra a bandidagem’.

Existem dois caminhos: um com uma aliança política duvidosa, sem condições para o enfrentamento necessário. O outro traz a experiência e a coragem para acabar com a corrupção e a bandidagem, disse Max.

Paulo Hartung, que veio em seguida, disse que Max ‘passou toda campanha falando de violência e crime organizado, sem apresentar propostas concretas para resolver os problemas’.

Quem faz uma campanha suja, fará um governo sujo. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) é testemunha de meu combate ao crime organizado. Quem vota em mim não vota em Gratz, acrescentou o senador.(AMORIM, Radanezi. Troca de ataques no fim do horário eleitoral. A Gazeta, Vitória, p.6, 3 de out. 2002)

O primeiro parágrafo da matéria tenta, como já dito, aquecer o clima da campanha. O segundo funciona de maneira a tentar garantir uma exclusividade por parte do candidato Max de luta e história contra o crime organizado. No terceiro a enunciação determina haver somente dois caminhos e utiliza a mesma estratégia de terror utilizada no dia 01/10 no que chamou de aliança duvidosa e prometeu restabelecer a ordem e o controle. Isso, assim como o resto da matéria, aponta mais uma vez para o que chamamos de regularidade do jogo de ‘vozes’ presentes em A Gazeta. No quarto e quinto parágrafo evoca-se o poder de uma instituição (OAB) para num contexto sócio cultural agregar legitimidade descaracterizando o discurso do adversário e tentar também garantir exclusividade no combate ao crime.

No dia 05/10/2002, a página 6 destacou em manchete principal: ‘Disputa fica acirrada na reta final’; e teve como olho: ‘Pesquisa Ibope mostra Hartung com 51% dos votos válidos, contra 45% de Max. A margem de erro, segundo o instituto, é de 3,5 pontos percentuais para mais ou para menos’; e os dois primeiros parágrafos:

Pesquisa do instituto Ibope realizada para a Rede Gazeta indica que, na reta final das eleições, que serão realizadas amanhã, a disputa pelo Governo do Estado ficou mais acirrada. O candidato do PSB, senador Paulo Hartung, aparece liderando com 51% dos votos válidos e o candidato do PTB, deputado federal Max Mauro, apresenta 45%. Há indefinição, segundo o Ibope, quanto à vitória de Hartung no primeiro turno ou se haverá disputa no segundo turno com Max.

A indefinição foi identificada pelo Ibope porque a margem de erro da pesquisa é de 3,5 pontos percentuais para mais ou para menos. Haveria, portanto, empate técnico entre os dois candidatos. A soma de votos de Max e os demais candidatos chega a 49%. (LOPES, Andréia. Disputa fica acirrada na reta final. A Gazeta, Vitória, p.6, 5 de out. 2002)

Outra vez um instituto de pesquisa, desta vez o Ibope, aparece como um dos sujeitos do enunciado para dar legitimidade científica à enunciação. A rotina e o procedimento de produção do jornal aparecem de novo marcados no texto. Foi utilizado um chavão jornalístico: ‘na reta final’.

Coisas como publicizadas

O discurso ‘não é geral como a língua nem individual como a fala. Ele tem a regularidade de uma prática, como as práticas sociais em geral.’ (PINTO, 1999) Eni Orlandi o define, de maneira semelhante, como palavra em movimento, prática de linguagem. Estudar as linguagens enquanto discurso significa compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua própria história. A análise de discurso inaugura este novo objeto-linguagem, que, diferentemente daquele instaurado pela lingüística tradicional, procura entender os processos e não meramente o produto da linguagem. O trabalho simbólico operado no discurso encontra-se na base de toda produção da existência humana. E é este o objeto dos estudos discursivos: ‘eles visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem.’ (ORLANDI, 2002).

Este instrumento de análise produz um conhecimento a partir do próprio texto, já que o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa, como tendo uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade. Por isso, procuramos entender as matérias produzidas por A Gazeta como usos da linguagem e/ou de outros sistemas semióticos no interior de uma prática social contextualizada histórica e socialmente. Este uso é produzido pelos sujeitos – no nosso caso, os jornalistas- , mas em condições determinadas.

Sendo assim, nossa tarefa foi destrinchar estes mecanismos em seu produto: o jornal. Para então percorrer o caminho contrário. Do jornal, enquanto superfície textual (simples conjunto de textos) para o jornal enquanto discurso e prática social contextualizada histórica e socialmente. Conseguimos assim, descobrir os modos de alinhamento presentes de maneira muito sutil na discursividade de A Gazeta, evidenciar as estratégias discursivas utilizadas nas matérias analisadas e o respectivo trabalho simbólico operado.

Procuramos entender os modos através dos quais esses processos dizem ou nos mandam ‘ler’ alguma coisa e conseguimos distinguir, na análise do noticiário político do jornal, a regularidade do jogo de ‘vozes’ presentes. O modo de funcionamento deste processo comunicacional – o de produção de um jornal – corresponde a este local específico, com uma estruturação discursiva específica que, querendo ou não, serve como verdadeiros dispositivos onde a realidade se funda como referência. Foi assim que partimos da seguinte premissa: numa disputa eleitoral contemporânea cada vez mais ‘as coisas’ existem porque se tornam objeto de atenção da mídia e, inseparavelmente disso, acontecem do modo como ela os publiciza. Logo, ela constitui-se enquanto lugar vital no processo de construção dos valores simbólicos.

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Jornalista, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ/RJ e professor do Departamento de Comunicação Social da UFES