Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A regulamentação orwelliana

Ganhou destaque na imprensa a recente liminar concedida pelo STF, a pedido da Procuradoria Geral da República e pouco depois confirmada por uma das turmas da própria corte suprema, dando um indicativo de que poderá finalmente ser sanada juridicamente a questão da exigência do diploma em Jornalismo para o exercício dessa profissão.

Alguns dos ângulos envolvidos na questão: a base da discussão seria que tal exigência derivou de decreto-lei do antigo regime militar, que visava controlar ainda mais a questão da comunicação, desnecessário dizer que sob pesada censura. Com as escolas superiores sob o condão férreo do MEC, em tese formar-se-iam apenas jornalistas em instituições sob o controle do governo de então, seus alunos sob o jugo do antigo Decreto 477, que permitia a expulsão de estudantes apenas por posições políticas.

Segundo várias interpretações, além dessa legislação pertencer ao chamado entulho autoritário, já estaria superada pelas garantias dadas pela Constituição de 1988, portanto, sem sentido no momento atual.

Na defesa da questão da qualificação universitária para o exercício profissional, de modo curioso, estão associações e sindicatos de jornalistas que, no passado, combatiam o mesmo regime de exceção. Não há muito tempo, vale recordar que o governo tentou até ir além nessa questão, propondo a criação do Conselho Federal de Jornalismo, regulamentando a profissão e criando mecanismos de punição ético-disciplinar – muitos se insurgiram contra isso (e me coloco entre eles), por permitir não apenas a autocensura, como a arcaica forma de censura punitiva, já que ordens e conselhos, criados por legislação federal específica, detém poder-dever de polícia e de julgamento de pares.

A volta desse assunto também levantou outro questionamento: grandes corporações de imprensa são favoráveis à não-exigência do diploma de Jornalismo, contrariamente à posição sindical. Vou procurar analisar a questão sob outro ângulo, baseado em recente entrevista de Luiz Erlanger publicada no Observatório da Imprensa, em que conceituou o jornalista como ‘especialista em generalidades’.

Sem brilho

Fiquemos no caso do Brasil: durante quantos anos os principais jornalistas, incluindo abolicionistas e republicanos, escrevendo nos principais órgãos de imprensa de sua época, tinham formação alguma, embora muitos fossem egressos da área do direito ou escritores? Isso desqualificou a qualidade do jornalismo praticado, evidentemente sob o prisma daqueles tempos? Acho muito difícil.

Acontece que, com o passar do tempo, até o presente momento, efetivamente não há condições de um jornalista abarcar todas as áreas do conhecimento. O mesmo se dá em várias outras profissões, em que há especialidades e subespecialidades, e há profissionais da imprensa que poderão se especializar e se dedicar mais a editorias específicas como saúde, economia, esportes ou ciências, e mesmo assim precisarão do respaldo de quem atua profissionalmente em tais áreas para compor matérias de qualidade.

Ao se exigir a formação em curso específico de jornalismo para o exercício profissional, acaba-se por cair em contradições profundas: em primeiro lugar, não há dúvida de que ser jornalista é profissão, mas limitá-la aos portadores de um diploma não apenas restringe o mercado de trabalho, como tira das redações pessoas que certamente são muito categorizadas intelectualmente em diversas áreas do conhecimento, que escrevem bem e conhecem as normas da profissão, para dar lugar a uma pessoa que não necessariamente ocupará com o mesmo brilho seu lugar. Quantos colunistas e editorialistas, por exemplo, produzem material de excepcional qualidade sem diploma de Jornalismo e, com toda a certeza, são praticamente insubstituíveis?

Liberdade garantida

O outro ponto é o do ranço do sindicalismo de origem fascista do começo do século 20, que acabou por ser abarcado pela esquerda também: com uma profissão regulamentada, cria-se o órgão sindical, e esse tipo de instituição, até hoje, pode sem dúvida ser de grande auxílio à categoria profissional e mesmo à sociedade – para isso seus diretores eleitos têm que mostrar serviço e conseguir a sindicalização de seus pares. Em inúmeras situações são criados os sindicatos mais estranhos para categorias de profissões das quais até não se sabia a existência, e mesmo nos ofícios mais tradicionais os sindicatos acabam por perder sua força e, por conseguinte, o número de sindicalizados. O resultado é o caixa baixo, e não fosse pela ainda existente contribuição sindical, acabariam por inanição. Caso uma determinada categoria profissional possua uma base realmente muito grande, mesmo que com poucos indivíduos sindicalizados de verdade, a contribuição sindical obrigatória torna viável a existência da entidade. Pergunto: isso é representação democrática da categoria?

Dessa maneira, muitos sindicatos, para não perderem seu status e, logicamente, o que podem auferir com a contribuição sindical, acabam por ser braços auxiliares do governo. Isso é típico não apenas do Brasil: temos o grande exemplo do sindicalismo peronista na nossa vizinha Argentina – e aí a ideologia, mesmo o exagero da dicotomização direita/esquerda, se esvai.

Não é então de se estranhar que órgãos sindicais de jornalistas defendam a posição do diploma, por assim poderem manter sua base de contribuições obrigatórias após o registro profissional no Ministério do Trabalho. E de quebra ainda acabam por apoiar projetos como o finado (será que não retornará?) CFJ, de interesse a quem queira controlar o fluxo de informação, liberdade garantida há séculos em vários países e aqui reforçada por nosso último texto constitucional.

Sem jugo

Há uma diferença entre profissões extremamente técnicas e cujo exercício inadequado pode levar a danos individuais e coletivos, como engenheiros, médicos, advogados, dentistas etc. O jornalismo, amplo e subjetivo, que necessariamente implica posições muitas vezes discordantes e contraditórias, jamais poderá seguir um código de conduta ou ética como o das demais profissões regulamentadas, pois se estancaria a própria liberdade de escrever.

E, naturalmente, esperamos que assim o STJ entenda, afinal, que os tempos mudaram: dos tradicionais jornais, rádios e TVs, cada vez mais a internet assume seu papel na disseminação de informações, com censura dificílima mesmo nos países mais autoritários, com presença global e instantânea, seja em sites, blogs, comunidades e e-mails. Vários blogs, por exemplo, são instrumentos de comunicação, de jornalismo, de elevada qualidade e capacidade de produzir informações, e seus responsáveis podem nem ter curso algum. Vamos ignorar esse avanço por questões burocráticas baseadas em lei retrógrada e autoritária?

Finalmente, que acabe a exigência, a obrigação do diploma de jornalista. Naturalmente, aquele que escreve ou pratica alguma atividade no âmbito da imprensa poderá cursar Jornalismo, Comunicação ou cursos de pós-graduação para aperfeiçoar-se, e isso será valorizado certamente pelo mercado. Mas sob jugo da obrigatoriedade, jamais.

******

Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM-SP