Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Atenas, a ANJ e a liberdade

Na comemoração dos seus 30 anos, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) divulgou 31 casos que considera de ‘violação à liberdade de imprensa’, ocorridos no país ao longo dos últimos três meses: dezesseis se referem a decisões judiciais de primeira instância e outros, por exemplo, dizem respeito à ‘proposta’ feita pelo ministro da Defesa de mudança no princípio constitucional do sigilo da fonte e ao ‘projeto de lei’ enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional ‘para punir jornalistas’. Da lista consta ainda a criação do blog da Petrobras.


Nada de novo. Apesar de dizer que defende o Estado de Direito, a ANJ não aceita que cidadãos ou entidades que se considerem prejudicados pela ação de jornais recorram à Justiça; também não aceita que sejam feitas ‘propostas’ ou que ‘projetos de lei’ que considera contra seus interesses tramitem no Congresso Nacional. Além disso, a ANJ, apesar de dizer defender a liberdade de expressão, considera a criação de blogs de fontes públicas uma ‘violação à liberdade de imprensa’.


No dia dos seus 30 anos a ANJ publicou também, sob o título ‘Pela Liberdade’, artigo assinado por sua presidente em diversos jornais brasileiros. O texto omite as verdadeiras razões que levaram à criação da ANJ (ver texto de Alberto Dines, ‘ANJ, 30 anos: Para celebrar é preciso contar a verdade’) e reafirma a velha posição de que ‘o governo’ é a ameaça número um à sociedade democrática e que cabe aos jornais a defesa da democracia e do interesse público.


A presidente da associação dos donos dos jornais afirma no ‘Pela Liberdade’ que ‘a tensão entre jornais e governos é inevitável e existe mesmo nas democracias mais consolidadas. Não é fácil erigir a maturidade para administrar esta convivência tensa por natureza – especialmente quando, como é o caso brasileiro, também está em curso o amadurecimento das próprias instituições, em parte forçado pelos jornais, que são vitais na exposição pública das vísceras do organismo político’. Até aí, nada de novo.


Atenas, a deusa grega


A novidade no ‘Pela Liberdade’ foi a dupla citação da deusa da mitologia grega Atenas (Minerva, para os romanos) no contexto de uma guerra – a guerra de Tróia.


Primeiro, evoca-se Atenas pelo grau de ‘sofisticação’ da atual luta pela liberdade de expressão. Está lá: ‘A luta pela liberdade de expressão agora é muito mais sofisticada e por isso mesmo exige muito mais prontidão e obsessão analítica, num esforço cotidiano e discreto, mas poderoso, como o papel desempenhado por Atena, de apoio e proteção aos guerreiros gregos na luta contra Tróia’.


E segundo, compara-se o papel da ANJ ao longo dos últimos 30 anos com aquele de ‘coadjuvante’ desempenhado por Atenas e, por conseqüência, os jornais com guerreiros em luta: ‘Nestes 30 anos, a ANJ tem desempenhado seu papel de coadjuvante imprescindível, como o de Atena na defesa dos guerreiros em Tróia’.


Quem era Atenas?


Atenas (ou Minerva) é mais conhecida pelo seu famoso voto de desempate no julgamento de Orestes. Como se sabe, Orestes havia matado sua própria mãe para vingar a morte de seu pai. Apolo fez a defesa de Orestes, reafirmando a posição patriarcal. O voto dos jurados deu empate e coube a Atenas o desempate que foi favorável a Orestes (daí a expressão ‘voto de Minerva’). Orestes e os princípios patriarcais foram os vencedores.


Já o comportamento de Atenas como estrategista durante a guerra de Tróia foi eticamente condenável. Numa das situações mais conhecidas, no auge da guerra, para proteger seu favorito Aquiles que duelava contra Heitor, Atenas fez com que o herói troiano acreditasse que seu irmão estava ao seu lado com o porta-lança. Depois de ter atirado a última lança, no entanto, Heitor se deu conta que estava sozinho. Ele havia sido enganado por Atenas.


Para Atenas não interessava a questão ética ou moral. Quando se tratava de ‘manobras enganadoras’, este era o terreno onde ela se saia bem. O que importava era se sua ação estratégica era efetiva.


Qual liberdade?


Diante da inédita evocação da deusa Atenas, do cenário de guerra e dos jornais como guerreiros, antecipa-se que a ‘luta’ da ANJ ‘Pela Liberdade’ será cada vez mais ativa e mais ‘efetiva’.


Como nunca tivemos qualquer regulação sobre a propriedade cruzada dos meios de comunicação, alguns dos maiores e mais poderosos grupos de mídia do país são, ao mesmo tempo, controladores da mídia impressa e da mídia eletrônica. Isso torna a ANJ capaz de articular a atuação das diferentes associações representativas dos (mesmos) empresários de mídia, seja de jornais, de revistas ou de radiodifusão.


Diante de tudo isso, talvez, na comemoração dos 30 anos da ANJ, o cidadão comum devesse questionar: quando a ANJ defende ‘a liberdade’, de quem é a liberdade que está sendo defendida? Contra que tipo de restrições? E a favor de quem?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009; no prelo)