Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Marcelo Beraba

‘Os moradores da Rocinha, maior favela do Rio, vivem desde a madrugada do dia 9 uma terrível situação de guerra. O enfrentamento entre dois comandos do narcotráfico pelo domínio territorial do morro resultou na sua ocupação pela Polícia Militar e em 12 mortes de moradores, policiais e traficantes.

A imprensa se mudou para a Rocinha e tanto os jornais do Rio como os de São Paulo fizeram uma cobertura extensa. Junto com o noticiário factual, ofereceram artigos analíticos e reportagens de apoio com enfoques variados, mas que tentavam buscar entre especialistas explicações e apontar soluções.

Foi uma boa cobertura? Acho que, no geral, sim, porque conseguiu acompanhar de perto o drama de uma comunidade invadida e porque mais uma vez suscitou o debate sobre as raízes das mazelas de nossas cidades.

Mas foi uma cobertura que expôs deficiências.

A primeira delas é a constatação de que também para a imprensa há duas sortes de cidadãos. Por mais que se esforcem, a ótica dos jornais está voltada para os transtornos que se abatem sobre os vizinhos de classes média e alta, mais do que para os dramas dos moradores da favela. Os episódios de invasões de morros e mortes são uma constante no Rio, mas só merecem atenção maior quando ocorrem na zona sul.

Outra constatação é a falta de continuidade no acompanhamento sério do assunto. A violência se instalou nas nossas cidades na forma de bandos fortemente armados há duas décadas e a cobertura das causas, do entorno social e das políticas de segurança são irregulares. Isso dá a sensação de inconseqüência, de superficialidade e de sensacionalismo.

A cobertura da violência, de suas causas e soluções, exige profissionais tão preparados como os de outras áreas já especializadas do jornalismo.

O caso da Rocinha apontou ainda para dois problemas sérios para os jornalistas: os riscos que correm e a falta de fontes nas comunidades dominadas ou invadidas. Os dois problemas estão relacionados.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes, em junho de 2002 na Vila Cruzeiro, quando fazia uma reportagem sobre o uso dos bailes funks pelo tráfico, os jornalistas do Rio não entram mais com tranqüilidade nas favelas. O acirramento dos conflitos e a hostilidade em relação à imprensa, identificada pelos traficantes como alcagüete, fizeram com que várias empresas, inclusive a Folha, adotassem procedimentos para garantir a segurança de seus profissionais. Estas empresas têm hoje carros blindados, várias colocam à disposição de seus profissionais coletes à prova de bala e todas adotaram como norma não permitir que seus jornalistas corram qualquer tipo de risco por entenderem que nenhuma reportagem justifica uma vida.

Mesmo com todos estes cuidados, repórteres e fotógrafos continuam vulneráveis quando explodem episódios como este da Rocinha. Na segunda-feira, as ameaças dos traficantes foram diretas, e na quinta, durante o enterro do chefe dos traficantes, os jornalistas foram agredidos por moradores.

Como decorrência deste problema temos que desde a morte de Tim Lopes ficou mais difícil ouvir os moradores das favelas e, portanto, a imprensa ficou dependente de fontes oficiais, como a polícia e as associações de moradores, muitas delas ligadas ao tráfico.

Este é um problema seríssimo, talvez o mais sério neste momento porque priva os moradores de um canal de expressão e os leitores de informações mais precisas.

Reproduzo, nesta página, três entrevistas sobre essas últimas questões, a dos riscos dos jornalistas e a dificuldade de acesso a informações locais.’

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‘A imprensa aliada’, copyright Folha de S. Paulo, 18/4/04

‘Carlos Costa mora na Rocinha, é psicólogo, estuda jornalismo e coordena o programa de Segurança Pública e Direitos Humanos do Viva Rio, organização não-governamental.

Ombudsman – A imprensa cobriu corretamente os episódios da Rocinha?

Carlos Costa – Desde janeiro, quando começou a tensão, a mídia tem sido o principal aliado da Rocinha. Foi quem impediu que o caso tomasse proporções ainda maiores. A imprensa ajudou a proteger, a denunciar, a pressionar as autoridades. Em alguns momentos faltou detalhamento, publicou informações truncadas, mas em 90% das vezes ajudou.

Ombudsman – A imprensa reforça ou questiona os preconceitos que existem em relação aos moradores das favelas?

Costa – Ela alterna. Às vezes, reproduz os preconceitos. Um exemplo: os jornais nomeiam todas as escolas de classe média e classe alta próximas da Rocinha que suspenderam as aulas, mas não fazem qualquer referência às várias escolas que estão sem aulas dentro da favela e nem falam no número de alunos.

Ombudsman – Desde o Tim Lopes os jornalistas temem entrar nas favelas para fazer seu trabalho. Procede este medo?

Costa – Tem muito lugar que realmente não pode entrar. Na Rocinha, nós e a associação costumamos acompanhar e ajudar e nunca fomos cobrados pelo tráfico. O que temos é cuidado. Eu tenho cuidado no que eu vou falar, não falo sobre o que não me diz respeito.’

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‘Cobertura espetaculosa’, copyright Folha de S. Paulo, 18/4/04

‘Jaílson de Souza e Silva é professor universitário. Morou na favela de Nova Holanda entre 89 e 95 e é um dos fundadores do Ceasm (Centro de Estudos de Ações Solidárias da Maré).

Ombudsman – A imprensa cobriu corretamente o episódio da Rocinha?

Jaílson de Souza e Silva – Não cobriu porque parte de um conjunto de pressupostos. Diz que a guerra é da Rocinha, quando está acontecendo em várias favelas e há anos. Quando acontece na Rocinha, que atrapalha a vida da zona sul e da Barra, aí vira uma comoção. Só se discute e aprofunda o problema no conflito. Às vezes foca um problema importante, como bala perdida, e depois larga. A forma de cobertura é espetaculosa, não vai fundo no essencial. Exemplo: o corpo de uma pessoa, mesmo um traficante, pode ser carregado num carrinho de mão? Como é na Rocinha, se acha natural. Tem uma lógica de que a vida de um vale mais do que a de outro.

Ombudsman – Desde o Tim Lopes os jornalistas temem entrar nas favelas. Procede este medo?

Silva – Depende do local. É óbvio que tem problemas, mas sempre teve. Se você vai fazer reportagem sobre corrupção, também recebe ameaças. Você não pode entrar numa favela, e não podia há 40 anos, sem conhecimento algum. Não entra lá como em Ipanema. Não se pode querer que a fala da favela seja a de Ipanema. O morador não vai falar contra o tráfico. E não precisa. Todo mundo sabe que é guerra. Quando têm oportunidade, as pessoas se manifestam. Falam mais do que anos atrás. O que não tem é o destaque devido nos jornais.’

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‘A busca de fontes’, copyright Folha de S. Paulo, 18/4/04

‘Paula Cesarino Costa é a diretora da Sucursal da Folha no Rio.

Ombudsman – Os repórteres da Folha correram risco nesta cobertura?

Paula Cesarino Costa – Sempre existe algum risco. Tanto pode haver um tiroteio como os traficantes podem atirar do alto. Mas os repórteres sempre levam coletes à prova de bala e são orientados a evitar riscos. Os repórteres relatam que há um clima de hostilidade e desconfiança em relação a jornalistas por parte de moradores e policiais, o que dificulta muito a obtenção de informações fora dos canais oficiais (polícia e associação de moradores). Os jornalistas, em geral, têm andado em grupos e fazem comboios para subir a estrada da Gávea. Isso dificulta a obtenção de informações exclusivas e uniformiza as coberturas. Às vezes a informação vem da fontemais óbvia, como quando o comandante do 23ª Batalhão, Jorge Braga, admitiu que o tráfico continuava a existir na Rocinha, embora de forma menos ostensiva.

Ombudsman – O que a Folha tem feito para obter informações mais confiáveis entre os moradores?

Cesarino – Essa dificuldade em obter informações vem muito da desconfiança dos moradores, que ou acham que o jornalista vai passar as informações para a polícia ou teme que o traficante não goste que ele fale com a imprensa. Em momentos como oatual, a maioria não quer falar. Um dos caminhos para tentar conseguir informações mais confiáveis é procurar integrantes das várias ONGs que atuam nas favelas. Religiosos também são boas fontes. Geralmente têm uma certa independência e o tráfico não costuma incomodá-los. Hoje é muito difícil falar com os traficantes, diferentemente de anos atrás. Desde a morte de Tim Lopes eles evitam falar com os jornalistas, porque os consideram informantes.’