Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A eleição estadunidense além das simplificações midiáticas

Nos últimos dias, a eleição presidencial dos Estados Unidos tem sido a principal temática dos noticiários internacionais da grande mídia brasileira. Consequentemente, também se transformou em um dos assuntos mais presentes na agenda pública nacional, fazendo com que, mesmo o cidadão mais alienado politicamente, de certa forma, tenha uma posição sobre o pleito que ocorreu em terras ianques.

Embora houvesse onze candidatos na disputa pela Casa Branca, na mídia brasileira, assim como em seus congêneres estrangeiros, somente dois nomes foram mencionados: o republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden.

No entanto, a ocultação dos outros candidatos está muito longe de ser a única manipulação presente nos noticiários. Diga-se de passagem, lembrando um conhecido dito popular, podemos dizer que esse é dos males o (muito) menor.

Para tornar inteligível ao grande público o complexo, confuso e distante cenário eleitoral estadunidense, os noticiários internacionais utilizam o que chamamos de “atalhos cognitivos” (personalizações, maniqueísmos e lugares-comuns) que nada mais são do que simplificações para gerar uma espécie de segurança hermenêutica para o receptor de uma determinada mensagem.

Conforme nos lembra o grande Patrick Charadeau, a mídia televisiva, para prender a audiência, deve despertar no público vários tipos de sentimentos (os “efeitos patêmicos”) — como raiva, alegria, medo e ansiedade.

Sendo assim, é preciso espetacularizar o processo eleitoral dos EUA, que passa a ser concebido como se fosse uma espécie de telenovela global ou um filme hollywoodiano.

Aproveitando-se da morosidade na apuração dos votos, a mídia transformou cada divulgação de percentuais em um show à parte. “O coração chega até a bater mais forte quando chegam novos números”, afirmou o apresentador Marcelo Cosme, durante um telejornal da GloboNews.

Esse tipo de abordagem sobre a realidade, baseada mais em aspectos emotivos do que racionais, pode induzir o público a adotar uma postura passional diante da política estadunidense, impedindo, assim, análises mais reflexivas e aprofundadas.

Tal como nas produções de entretenimento, com seus mocinhos e vilões, o telespectador é convocado a “torcer” por Joe Biden ou por Donald Trump. A arena política se transforma em um anódino Fla-Flu.

Na cobertura midiática, nitidamente favorável a Biden, as personalidades dos candidatos são mais enfatizadas do que propriamente suas propostas políticas ou os grupos de interesses a quem representam.

O candidato democrata é apresentado como um senhor equilibrado, bem-sucedido, que superou traumas de infância e tragédias pessoais. Em suma, o típico cidadão acima de qualquer suspeita.

A imagem sorridente de sua vice Kamala Harris — uma mulher negra, bem ao gosto dos identitários — além de compensar a falta de carisma de Biden (afinal de contas, ele não é Obama), reforça ainda a ideia de uma chapa comprometida com as minorias sociais, que os mais incautos até consideram ser de esquerda.

Evidentemente, em relação ao excêntrico Donald Trump, qualquer indivíduo aparenta ser mentalmente saudável. Parafraseando Caetano Veloso, perto de Trump, todo mundo é normal.

Nessa lógica superficial, apoiar Biden seria a alternativa mais sensata. Mas o jogo político é norteado por interesses (sobretudo econômicos) e não por determinados traços individuais.

Outra questão a ser lembrada nos discursos midiáticos é a análise maniqueísta da realidade; que, nesse caso, significa dividir a esfera política entre “bem” e “mal”.

Nessa lógica dicotômica, se Trump, representante da extrema direita, é o “mal”; logo, seu adversário, Joe Biden, supostamente “progressista”, seria o “bem”. Trump é barbárie; Biden é civilização. Trump nega o aquecimento global; Biden vai proteger o meio ambiente.

Esse tipo de narrativa, rasa e simplista, confunde o telespectador/leitor, que, automaticamente, pode passar a acreditar que Joe Biden – ferrenho apoiador de invasões, guerras e golpes imperialistas mundo afora – represente algo positivo em um provável mandato presidencial.

Não por acaso, boa parte da esquerda mundial (inclusive a brasileira, especialista em comprar Cavalos de Troia) considera Biden como uma espécie de salvação da democracia global frente a ofensiva fascista.
Nada mais distante dos fatos.

Como bem explicou o professor e escritor José Eduardo Morelli, em texto recente: “O fascismo não é um ‘ente’ que caiu do céu. O fascismo é o próprio instrumental que a Burguesia [a quem Biden representa] mobiliza para salvar sua pele nos momentos mais críticos e a Burguesia se desvincula do fascismo sempre quando lhe é conveniente”.

Já outras linhas argumentativas alegam que um governo Biden enfraqueceria Bolsonaro, pois além de perder o aliado Trump, o ex-capitão também teria problemas por causa das críticas do democrata à maneira como o Brasil tem conduzido suas políticas ambientais em relação à Amazônia.

Nesse caso, novamente à personalização da política mais confunde do que propriamente explica as relações internacionais. Mais do que a bajulação à figura de Donald Trump, a agenda neoliberal de Bolsonaro/Paulo Guedes visa, sobretudo, à incondicional submissão aos ditames do imperialismo estadunidense, independentemente de quem ocupe a Casa Branca.

Além do mais, todo cidadão minimamente crítico deveria se questionar sobre o porquê de os grandes grupos de comunicação de todo o mundo apoiarem Joe Biden. Quais interesses estão por trás desse apoio? Nada é de graça.

O fato é que Biden é o nome preferido do grande capital, tipo um “candidato oficial” do mainstream. Evidentemente, Trump também está ligado aos interesses mercadológicos. Porém, ele representa uma ala secundária do imperialismo, voltada, principalmente, ao mercado interno. Suas ideias relacionadas ao protecionismo econômico não são bem-vistas pelos principais empresários e banqueiros do planeta.

Em entrevista para o Brasil 247, o renomado jornalista Glenn Greenwald afirmou categoricamente que Biden é o candidato da CIA, de Wall Street, do complexo-industrial militar e dos monopólios de comunicação estadunidenses.

Não por acaso, recentemente, um artigo de Glenn que apresentava denúncias sobre os negócios da família Biden foi vetado pelo site The Intercept. Decisivamente, é proibido criticar o candidato democrata na imprensa.

No tocante à política externa, Biden já declarou que, caso eleito, adotará uma agenda mais agressiva do que a de Trump; reforçando, assim, a premissa de que os EUA seriam uma espécie de polícia do mundo. Países considerados “hostis”, como Coreia do Norte e Venezuela, provavelmente serão seus alvos preferenciais.

A título de exemplo, a família Bush, conhecida pelo seu apoio às investidas bélicas imperialistas, mesmo sendo republicana, está ao lado de Biden. Remetendo mais uma vez a um dito popular: para quem sabe ler, um pingo é letra.

Também é importante mencionar que, na grande mídia, a disputa eleitoral Trump versus Biden é erroneamente apresentada como simbolizando a polarização ideológica registrada atualmente nos EUA.

Os protestos das massas contra a repressão policial e a saída do armário de grupos fascistas são indícios claros de polarização no país. Não restam dúvidas.

No entanto, como a própria nomenclatura pressupõe, “polarização” indica direcionamento aos chamados “extremos”.

Nesse sentido, Donald Trump representa o deslocamento de parte do Partido Republicano para a extrema direita. Já o polo oposto, à esquerda, no Partido Democrata, não é Joe Biden, mas Bernie Sanders.

Isso explica a grande campanha contrária à pré-candidatura à presidência da República de Sanders, feita dentro do próprio partido, contando com total apoio dos veículos de imprensa.

Para o imperialismo estadunidense, Trump, mesmo com todas suas idiossincrasias, ainda é palatável. Mas um “socialista”, por mais moderado que seja, chegar à Casa Branca, é inconcebível.

Aliás, essa manobra para que um nome da esquerda não chegue sequer a disputar uma eleição nos remete ao recente caso de uma nação sul-americana onde uma candidatura foi impedida pela Justiça de concorrer à presidência. Em política, nada acontece por acaso.

No frigir dos ovos, um ponto positivo que esse controverso e tumultuado processo eleitoral estadunidense nos tem mostrado é que a alcunha “maior democracia do planeta” não passa de um mito (bastante difundido, inclusive, pela mídia brasileira). Há duas décadas, a eleição de George W. Bush, com suspeitas de fraude, já nos sinaliza isso. Novamente a máscara do Tio Sam caiu. Se vivo estivesse, o famoso escritor dinamarquês Hans Christian Andersen diria: “O Império está nu”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Acadêmica. Professor de Ciências Humanas do “Centro Educacional Edgar Sodré Azevedo da Apae” (Santa Rita do Sapucaí – MG). Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).