Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Deonísio da Silva

‘‘Fala, Moisés!’ Diz– se que, admirado da expressão que fizera nascer do mármore, Michelangelo ordenou à escultura do grande legislador que falasse. E a seguir deu a derradeira martelada na estátua, que apresenta desde então pequena racha no joelho. Deve ter doído, pois àquela altura a pedra já tinha sentimentos, ainda que desarrumados.

Não foi a primeira vez que se bateu em quem legisla, ainda que se tratasse de quem baixava mandamentos e normas para consolidar a libertação do povo que ele tirara da escravidão. Comportamento raro, senão inexistente, nos legisladores que se seguiram, obcecados com vigilâncias e punições que sustentam todos os governos, e mais interessados em garantir cárceres do que liberdades.

O artista genial, mesmo satisfeito com a obra, reconheceu, entretanto, uma insuficiência paradoxal: Moisés, em silêncio desde a primeira martelada, continuava calado na última. Falava, por assim dizer, mas o que dizia e continua dizendo por tantos séculos não o diz com palavras. Sabemos que o silêncio fala, de que são exemplos rostos, fotos, quadros, paisagens.

À semelhança de Moisés, também nós, quando exaltamos as qualidades de animal de estimação, que, no entanto, não criamos, embora designemos com este verbo o ato de cuidar dele desde pequenino, dizemos que só falta falar.

O verbo criar é, aliás, um caso à parte, mas que seja registrado já, sem delongas, que uma de suas mais ricas acepções é a que dá conta de que nós mesmos nos criamos, presente em declarações como esta: ‘Eu nasci em Santa Catarina, mas me criei no Rio Grande do Sul’.

Assim, postos no mundo, tendo recebido, junto com o leite materno, a língua materna, desmamados e falantes algum tempo depois, nem assim podemos dizer que estamos criados, cabendo– nos a missão de prosseguir a educação iniciada por nossos pais. Em tal seqüência a fala vai cumprir função decisiva, assim como a escrita, naturalmente.

Permanecerá, entretanto, a metáfora de que a fala nos dá o passaporte da existência. O cogito, ergo sum, de Descartes (penso, logo existo), é outro para analistas e psicanalistas: dico, ergo sum (falo, logo existo).

Mas por que falamos de um modo, na fala propriamente dita, e falamos, na escrita, de outro, tão diferente do registro anterior, que afinal lhe deu origem? Com efeito, aprendemos primeiro a falar e depois a escrever. É consenso que as dificuldades principais são oferecidas pela gramática, cujo conceito dominante é de que seja um rol de regras, transformadas ao longo dos séculos em decálogos e prescrições para a modalidade da língua escrita, hegemônica em nossa civilização.

Vejamos, porém, dois exemplos emblemáticos, começando por Portugal, nossa nação– mãe, governada por reis analfabetos, que, contudo, fundaram universidades! E concluamos com o presidente Lula, notório transgressor da norma culta do português, vale dizer, de sua gramática, embora línguas sem escrita tenham gramáticas ainda mais complexas do que a nossa. As gramáticas escritas das línguas neolatinas são um fenômeno tardio. A da língua portuguesa é do século 16.

São poucos os governantes que semelham Moisés, o líder do ‘povo do livro’. Nós somos o povo sem livro. E não existe um movimento dos sem– livro, semelhante ao MST para a questão da terra. Se não abrimos os livros, eles não falam. Ainda assim, estão batendo muito na muda mais célebre do Brasil, a gramática.

Por isso, ainda melhor do que o agronegócio é o negócio de transgredir as normas da gramática, mesmo as consensuais. Ora, a gramática é a Constituição de nossa língua. Gostemos ou não, continua em vigor.

No princípio era o verbo. Por falta de verbas, ele foi para a cucuia, acompanhado de todas as outras classes gramaticais.’



JORNAL DA IMPRENÇA
Moacir Japiassu

‘É proibido vencer’, copyright Comunique– se (www.comuniquese.com.br), 30/9/04

‘À falta do que fazer, alguns jornalistas esportivos de São Paulo inventaram ociosa ‘polêmica’ inspirada em frase do jovem e competente técnico do São Caetano, Péricles Chamusca. O rapaz declarou, depois de uma partida na qual seu time vencera sem jogar bem: ‘Quem quiser ver espetáculo que vá ao show da Ivete Sangalo’.

Pra quê! O Globo Esporte, programa diário no qual estua a inteligência do jornalismo esportivo, reprovou a frase de Chamusca como se ele tivesse dito algo como ‘índio bom é índio morto’; e nesta quarta– feira os luminares Galvão Bueno e Walter Casagrande Júnior, que narravam o zero a zero de Flamengo X Corinthians, condenaram o técnico às labaredas eternas.

Conclui– se que é politicamente incorreto querer ganhar um jogo de futebol.

Janistraquis, cuja vida tem sido uma, com perdão da palavra, cruzada contra as esquisitices deste mundo, escutou o papo de Galvão mais Casão e desabafou: ‘Considerado, adoraria ver todos os adversários jogando bonito e o Vasco ganhando de 1 a 0; gol contra, de preferência…’

(Convém lembrar que o Vasco, jogando horrorosamente mal, perdeu de novo [agora, para o alquebrado Paraná] e caminha firme rumo à Segundona.)

Metralhadora

Ouvido no Hoje, da Globo, telejornal exibido durante a sossegada hora do almoço:

Na BR– 116, no sudoeste da Bahia, a Polícia Federal apreendeu um caminhão carregado de armas pesadas, entre elas uma metralhadora antiaérea fabricada nos Estados Unidos. A arma tem capacidade para disparar até 450 tiros por minuto. Dois homens foram presos.

Janistraquis, que mastigava um pedaço de rapadura, reprovou a ação policial: ‘Considerado, com certeza houve açodamento; os dois homens que foram presos poderiam estar se dirigindo a algum posto de recolhimento para fazer uma espetacular doação à campanha do desarmamento, né não?’

É verdade e deve ter havido, outrossim (outrossim é ótimo!), viciosa interpretação de um dos mais sagazes slogans da nova campanha publicitária do Viva Rio:

‘Tirar armas de circulação ajuda a desarmar o bandido’.

Romário

Noticinha que chegou pelo correio eletrônico:

Romário assume presidência do Sindicato dos Jornalistas do DF. Mais de duzentas pessoas estiveram presentes à posse da nova Diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, que aconteceu no dia 23 de setembro.

Sempre atento ao vaivém das celebridades, meu secretário leu e comentou:

‘Aaaaaah, considerado! Somente agora percebo por que o Romário não aparece mais no Fluminense; assumiu a presidência desse sindicato aqui! Só acho estranho comemorarem a presença de ‘mais de duzentas pessoas’ à posse de um craque que sempre atraiu multidões. Triste final de carreira…’

Primeiro turno

Nosso considerado José Truda Júnior despacha do Largo das Neves, em Santa Teresa, aprazível sítio de onde se descortina, lá embaixo, o casario do mais carioca dos cenários:

O Globo Online, depois de analisar uma pesquisa eleitoral, descobriu o que pode acontecer ao prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, candidato à reeleição:

Vox Populi: César pode levar no 1º turno

Truda condena esse tipo de jornalismo:

Parece que, ao chamarem a perereca de CDP, em São José do Rio Preto, inaugurou– se a tendência, como dizem os publicitários, de dar os apelidos mais bizarros a determinados órgãos do corpo humano… Pobre Cesar! Por essas e outras, nunca pensei em disputar eleições.

Mais bizarrice

Deu no portal UOL, que botou a culpa na Folha Online:

Vasp cancela mais de 49 vôos em todo o país.

O considerado leitor Daniel Katschita, que enviou a bizarrice, aproveitou para anexar singelo comentário:

Por que ‘mais de 49’? Não seria melhor ‘quase 50’? Será que não dava mesmo pra fazer uma continha de somar?!?!?!

Viva o Brasil!

A indispensável Veja publicou, sob o título Os aplausos lá fora:

Lula faz sucesso no exterior e, até melhor que FHC, tem sido capaz de atrair simpatia e dar projeção ao Brasil

Janistraquis leu, releu, refletiu e comentou: ‘Ora, considerado, isso é bobagem; nem Fernando Henrique nem Lula atraíram tanta simpatia e deram tanta projeção ao Brasil quanto o cacique Raoni, que ficou pra lá e pra cá com aquele roqueiro que tem nome de gato angorá… o Sting!’

Meu secretário está coberto de razão; o brasileiro que faz sucesso lá fora não é o sociólogo culto ou o operário que virou presidente da República; basta ser, digamos, uma criatura exótica.

Suruba

Diretor de nossa sucursal no Planalto, de cujo banheiro dá pra ver José Dirceu conferindo o rol dos jornalistas que têm conta no exterior, Roldão Simas Filho lia o caderno Cidades do Correio Braziliense quando topou com esta frase tão lapidar quanto um epitáfio:

Os negros celebravam o orixá Ibeji, mas foram repremidos pelos sacerdotes

Roldão concluiu que houve excêntrico conúbio entre as palavras ‘repressão’ e ‘reprimir’, as quais, embora tenham a mesma raiz, exigem do cultor algum cuidado para que não se promova condenável suruba entre as vogais.

Alma assassina

O diretor de nossa sucursal nordestina, Celsinho Neto, anda um pouco ausente deste espaço porque ocupa– se com seu curso de PhD em jornalismo aplicado, na Universidade de Harvard, porém de vez em quando encontra um tempinho e volta à antiga lide. Há alguns dias ele passeava os olhos pelos textos de O Povo, de Fortaleza, jornal que considera ‘mimoso’, quando foi literalmente envesgado por esta manchete:

MORTES DE MILITARES – Base Aérea: exame descarta suicídio seguido de homicídio.

Estupefacto (estupefacto, assim com c, é perfeito, né não?) Pois bem, estupefacto, Celsinho meteu os pés da rede armada na Praça do Ferreira:

‘Arriégua!!! Pode alguém que morreu cometer um crime? Certamente os mais afoitos dirão que isso somente seria possível se o extinto voltasse do além para puxar o pé de algum medroso cardíaco, o qual, vitimado por fulminante ataque, se juntaria ao, digamos, algoz. Perdoe– me o trocadilho infame, mas essa foi de matar…’.

Foi mesmo.

Traduções

O considerado Rafael Silvestre, amante da paz e da última flor do lácio, lia o Último Segundo quando foi atingido por verdadeiro míssil, digamos, redatorial, que se não destrói a primeira certamente deixará seriamente avariada a segunda. Sob o hediondo título Coréia do Norte ameaça transformar Japão em ‘mar de fogo nuclear’, dizia o texto atribuído a James Brooke, o que nos leva a desacreditar das traduções:

TÓQUIO – O Japão enviou dois destróieres e um avião de vigilância para o Mar do Japão, afirmaram autoridades do governo japonês e americano, depois que os Estados Unidos e o Japão detectaram sinais de que a Coréia do Norte estava se preparando para testar um míssil balístico capaz de atingir as principais ilhas do Japão.

Janistraquis, que aderiu de corpo e alma à campanha do desarmamento, também ficou perplexo com essa guerra contra o bom gosto, ó Rafael: ‘Considerado, tá certo que não se deve chamar os japoneses de nipônicos nem o Japão de Terra do Sol Nascente, mas vai redigir mal assim na China!’

Viajando…

Janistraquis acordou esta que dormitava em nossos arquivos e foi enviada (há menos tempo que um animado périplo) por nosso considerado Fernando Perez, diretor de marketing da Silicon Networks:

Erramos: Lula faz crítica à política econômica de FHC

da Folha Online

Diferentemente do que informou a reportagem ‘Lula faz crítica à política econômica de FHC ‘, Lula mencionou as viagens realizadas nos 19 meses de governo e não em 19 anos.

Perez não perdoou:

‘Depois, chamavam o outro de Viajando Henrique Cardoso…’

Nota dez

O mais instigante texto da semana foi publicado no Jornal do Brasil e nasceu do corajoso talento de Gilson Caroni Filho, professor– titular de Sociologia da Facha (RJ):

(…)A forma como o governo tem interpretado a greve dos bancários é inédita na história do país. Um movimento reivindicatório do mundo do trabalho não é percebido como ameça à institucionalidade. Não é subjugado em nome do conceito etéreo de governabilidade. Não é sufocado por razões de Estado ou ditames mercantis. O que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou foge ao figurino traçado, até então, pelas elites encasteladas no aparelho de Estado. Ao invés de enxergar na paralisação da categoria uma disfuncionalidade a ser corrigida, nela viu a afirmação da democracia entendida como espaço político de solução de conflitos. ‘Os trabalhadores fizeram sacrifício quando tinham que fazer. E na medida que o banco anuncia ganhos muito bons é natural que queiram recuperar suas perdas’.

A íntegra deste controverso artigo está aqui.

Errei, sim!

‘MÁRCIO SABE – Estão lembrados daquele hilariante título de O Globo, Militar não é civil? Pois o Estadão transformou o descuido em tendência estilística, ao entrar na onda com seu centenário prestígio: Jamanta não é Fusca, dizia o título de um artigo de Márcio Moreira Alves, o qual, mais que ninguém neste país, sabe que militar não é civil… (dezembro de 1993)’