Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Globonews mostra, após críticas, que é possível se reinventar para enfrentar o racismo

(Foto: Reprodução GloboNews)

Na noite do dia 3 de junho o canal de notícias Globonews ofereceu ao telespectador uma edição apresentada por Heraldo Pereira, Flavia Oliveira, Maria Júlia Coutinho, Aline Midlej, Lilian Ribeiro e Zileide Silva. A decisão veio em um momento em que se discute os efeitos das manifestações nos Estados Unidos depois da morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco enquanto dizia “Não consigo respirar”. A ação produziu um enorme impacto nas redes sociais, sobretudo no Twitter, de onde veio a provocação, depois de um tuíte de Irlan Simões que destacava o fato de que a pauta era debatida por sete jornalistas brancos da emissora.

Para quem não está acostumado a assistir ao Em Pauta, o programa é apresentado pelo jornalista branco Marcelo Cosme, que conta com a participação de jornalistas nas praças do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Brasília e correspondentes em Nova York. O time é inteiramente branco, como o que se reflete ao longo de toda a programação, fato recorrente em todas as emissoras brasileiras.

Enquanto as estatísticas populacionais dão conta de que a população negra corresponde a cerca de 54% do contingente brasileiro, espera-se que, minimamente, este número esteja representado em todos os espaços. O que não ocorre diante do brutal efeito do racismo brasileiro, que institucionalizado, geriu por décadas uma política nacional de branqueamento e distribui ao mundo uma suposta democracia racial e uma convivência cordial entre as “raças”.

A discussão racial brasileira evolui cada dia mais, fruto da presença de mais estudantes negros e negras nas universidades brasileiras e também nas pós-graduações. Uma conquista recente, duramente atacada na imprensa e na academia. Quando olhamos para a Lei de Cotas para o acesso ao Ensino Superior e verificamos que ela existe apenas há oito anos – a lei foi sancionada em 2012, pela presidente Dilma Rousseff – percebemos que o horizonte da luta pela igualdade racial ainda está longe. É possível dizer que está mais perto do que ontem.

O que diríamos da formação jornalística e da cultura organizacional das empresas de comunicação do país, que apesar de dispor de quadros qualificados, não dão a eles destaque? O Grupo Globo de Comunicação vem tentando dar respostas à questão racial há alguns anos. O caso do jornalista William Waack foi uma das primeiras vezes em que o grupo teve de oferecer uma resposta clara diante da mobilização nas redes sociais. E foi com a demissão do jornalista que cogitaram escalar um jornalista negro, com vasta experiência, repórter em Brasília e acostumado a fazer os plantões do Jornal Nacional, para ancorar o “Jornal das 10”, na Globonews. Na Rede Globo, Maria Júlia Coutinho foi escalada para o Jornal Hoje e nas manhãs da GloboNews, Aline Midlej, apresenta o Jornal das 10h manhã.

As manifestações que se espalham pelos Estados Unidos têm sido pauta desde o fim de semana e continuaram nesta semana. No Em Pauta, jornalistas brancos falavam sobre a situação da população negra estadunidense com pérolas racistas, como quando uma das correspondentes sugeriu que um tumulto em uma das manifestações ocorrera por conta de um possível “batedor de carteira”. Ou quando um dos comentaristas disse que a família Bush não era racista por que tinha até secretários negros.

No dia 2 de junho, o tuíte de Irlan Simões (@irlansimoes) dizia “Rapaziada… O assunto é racismo” com a foto da bancada formada por seis jornalistas brancos e brancas. E seguia dizendo que não era apenas sobre convidar alguém negro, mas de lançar mão de profissionais que já estavam no quadro da emissora. Mais de vinte mil pessoas interagiram com a publicação. Em outra postagem no Twitter, dessa vez do advogado Joel Luiz (@joeluizadv) a chamada era “A pauta é racismo no Brasil. A pauta é racismo no Brasil”, com a mesma foto. A publicação teve mais de 140 mil interações.

A mobilização dos internautas e telespectadores mobilizou a empresa que respondeu com o programa, que caracteriza um marco histórico no jornalismo brasileiro. Estavam ali seis mulheres negras, com trajetórias diversas, experiências diversas no jornalismo, tempo de carreira diversos e um âncora negro, experiente. O tom sereno e emocionado e a repetição constante da frase “Com esse painel espetacular” mostrou que o jornalista estava vivendo uma experiência única.

Durante o programa, que durou pouco mais de duas horas, as jornalistas e o jornalista debateram sobre os protestos nos Estados Unidos e a situação racial no Brasil, com dados, informação de qualidade, análises precisas e relatos de experiências de serem jornalistas negros neste espaço privilegiado de reportar a informação e de produção da notícia. Deixaram as mensagens para a empresa em que trabalham, sobre a necessidade de maior presença negra em todos os cargos, falaram sobre a necessidade de que pessoas negras fossem convidadas para abordar todos os assuntos e não apenas racismo.

Deram uma aula de jornalismo e de cidadania, produziram um material que deve ser replicado nos espaços de formação e deve ser visto por todos aqueles e todas aquelas que almejam uma sociedade mais justa e igualitária, onde a cor da pele não defina o trajeto pelo qual se pode trilhar rumo a uma vida digna.

No Brasil que desmorona sobre um desgoverno autoritário, racista, misógino, que tem pleno compromisso com a morte de seus cidadãos, o Em Pauta deste 3 de junho é um marco. Que nos transformemos como sociedade e que possamos ver cada vez mais a cor desse país refletida nas telas e nas redações.

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Diego Francisco é jornalista, mestre em Relações Étnico-Raciais e doutorando em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.