Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Pedro Cardoso, Huck e o jogo de cartas marcadas

Texto publicado originalmente pelo objETHOS.

Pedro Cardoso grava depoimento aos grevistas após deixar o estúdio da TV Brasil. (Crédito: Poder360/Standard YouTube License)

Dois episódios que foram destaque na imprensa e nas redes na semana passada me fizeram lembrar de um comentário que o jornalista português Carlos Fino (*) fez durante uma entrevista que me concedeu para o projeto Guerra.doc: entrevista sobre cobertura de guerra (**). Ele dizia a respeito dos jornalistas que cobrem guerras acompanhando exércitos ou escoltados por governos: “valem todos os jogos, até o de cartas marcadas, desde que se saiba que é um jogo”.

Um dos episódios da semana foi a declaração do ator Pedro Cardoso ao vivo e a desistência dele de permanecer como entrevistado no programa Sem Censura, da TV Brasil, após ser informado de que funcionários de toda a rede EBC estavam em greve. O outro foi a pesquisa que ocupou manchetes de jornais impressos e online destacando o apresentador de TV Luciano Huck sendo Luciano Huck e recebendo aprovação popular de 60% como apresentador de programa de TV, que ele é, mas dando a impressão de que seria a aceitação de seu nome como candidato excepcionalmente bem colocado em pesquisa a presidente da República. Ambos os episódios não apenas repercutiram e foram noticiados pela imprensa como foram provocados por ela ou contra ela.

Reprodução da edição de 23 de novembro de O Estado de S. Paulo. (Crédito: Estadão/Reprodução)

No caso da declaração do ator Pedro Cardoso, vários pontos chamam atenção para o lugar da imprensa tradicional, do jornalismo e da utilização de ferramentas democráticas como uma empresa pública de comunicação no meio da disputa atual no cenário político e social brasileiro. Tudo parecia funcionar tão bem quanto as instituições atuais (sim, é ironia) até que o ator, ao tomar a atitude de não conceder entrevista em respeito aos trabalhadores em greve da emissora de TV e se posicionando como crítico ao atual governo federal, revela que nada está no lugar. O jogo marcado, de uma emissora que transmitia um programa ao vivo, chamado Sem Censura, não contava aos seus espectadores que estava sendo produzido enquanto os funcionários, inclusive jornalistas e radialistas, estavam se recusando a trabalhar para resistir à decisão de congelar salários e retirar direitos do acordo coletivo. O caráter público da emissora também é um dos pontos defendidos pelos grevistas e o silêncio imperava até então na programação da emissora enquanto o programa chamava normalmente seus convidados.

A mise-en-scéne, só revelada, vejam só, por um ator, indica que os jogos, as cartas marcadas, o fazer jornalístico, as disputas não fazem parte do cotidiano da imprensa. A postura corajosa de Pedro Cardoso de dar visibilidade e existência a um elemento que faltava na transmissão tem êxito pela escolha de protestar ao vivo. É esse elemento, juntamente com a decisão dele, o que dão a possibilidade de que esse assunto vire pauta, seja cobertura e repercuta, remetendo a outro fenômeno que são as transmissões em direto, as lives, nas redes sociais, que atualmente estão entre as ferramentas mais utilizadas e com efetividade em canais como Facebook e YouTube.

Nas transmissões ao vivo dos canais tradicionais também tem ocorrido os mais inusitados protestos com espectadores se posicionando com cartazes e dizeres contra as próprias emissoras, contra o governo, a favor ou em oposição a temas. Uma evidência do senso de oportunidade e das possibilidades do ao vivo é a decisão imediata do programa de passar a ser gravado (***). O Sem Censura foi censurado. O jogo perde uma grande possibilidade de ser revelado como jogo. As cartas podem continuar marcadas mas ninguém precisa saber disso.

E a narrativa?

Além da disputa política e do cabo de força entre patrões e empregados, a afirmação de Fino e o episódio de Pedro Cardoso mostram que o jornalismo não se assume como narrativa. Nem mesmo como verdade ou realidade, de fato. Senão noticiaria o que estava ocorrendo dentro da própria emissora. Mas, numa estratégia da novilíngua orwerliana, apaga os traços daquilo que incomoda a narrativa clássica sobre a realidade e aquilo que acontece consigo mesma e nas suas disputas.

Enquanto a historiografia olhou para suas estruturas clássicas e reviu o modo como contava a História, inclusive pensando sobre si mesma como uma construção que é resultado dos sujeitos que a escrevem, das fontes eleitas para serem fontes e de que ponto de vista contar e privilegiar, o jornalismo tradicional se agarra à sua ilusão de realidade, à sua inalcançável imparcialidade, que não serve nem como utopia, e a uma pretensa objetividade que mais torna-se vício pelas declarações oficiais do que uma forma de linguagem.

Revelar o processo do fazer jornalístico é um dos elementos de se considerar o jornalismo como narrativa, como construção cultural e social, que depende de quem faz, a quem responde, o que decide e como decide tratar e o que permanece sem ser pauta. Tratar do modo de produção jornalístico é uma forma de lidar com as crises e as transformações que varrem o jornalismo contemporâneo, tanto para pesquisadores quanto dentro da própria produção jornalística. Ainda lembrando do 1984 de Orwell, ao fazer uma buscar rápida na internet, as primeiras menções à greve na EBC no site de busca e no site da própria emissora levam a matérias sobre paralisações de 2013 e 2015. Nada no site da emissora se refere ao episódio da semana com Pedro Cardoso. Apenas sobre as paralisações anteriores, aliás cuja cobertura data do momento em que a greve estava acontecendo naquelas anos. A disputa se dá também nessa arena do falar sobre si mesmo e dos critérios de noticiabilidade de uma forma bastante ampla, política inclusive.

Junto com a transmissão ao vivo, a repercussão nas redes sociais e o rápido compartilhamento do vídeo em que o ator se recusava a participar do programa, detonava o governo atual e prestava solidariedade aos grevistas furaram o bloqueio imposto pela linguagem tradicional do jornalismo e pela postura das empresas de não falar sobre o que lhes acontece. Não houve como a emissora não tratar do movimento que ocorria dentro da sua estrutura, mesmo com a decisão de não produzir cobertura sua sobre a greve, de forma oposta ao que outra EBC sob outra direção fez em outro momento de greve de seus funcionários. Pedro Cardoso usou a própria estrutura da emissora, com um linguagem que pode apenas ser prevista mas nem sempre controlada, como a transmissão ao vivo, e as redes sociais fizeram seu papel de multiplicar e reverberar a atitude.

O vídeo de Pedro Cardoso passa a ser viralizado, aplaudido, comentado, repassado. O ator ganha corações nos compartilhamentos, menção de “Pedro Cardoso me representa” e torna-se pauta de veículos independentes ou críticos ao governo e da imprensa tradicional. Na mesma proporção que as redes furaram o silêncio tanto a respeito da greve quanto dos meandros do fazer jornalístico, a imprensa grande mostra porque perde leitores, anunciantes e credibilidade. O ator é bastante claro e enfático ao dizer que não cumprirá a agenda com o programa Sem Censura e que se retiraria do programa por respeito à greve dos trabalhadores da EBC, que ele não sabia que atingia o programa.

Trecho da chamada no UOL (Crédito: UOL/Reprodução)

Mas a manchete do UOL é a solidariedade de Cardoso à também atriz Thaís Araújo por ter sido vítima de piadas racistas quando disse em uma palestra que seus filhos sofriam preconceito por serem negros. O presidente da EBC compartilhou nas redes piadas feitas sobre este episódio e também foi criticado por Pedro Cardoso no final de sua fala no Sem Censura. De forma não menos importante, mas secundária em relação ao motivo que o fez deixar o programa sem dar a entrevista agendada. A manchete da UOL alça a crítica de Pedro Cardoso ao racismo a motivo principal da sua recusa a se manter como entrevistado e a transforma de “crítica” ao presidente da EBC por sua atitude em “solidariedade” à atriz, expressão que modifica completamente a força da fala contra o ato racista.

A greve, se não tivesse sido revelada ao vivo e compartilhada nas redes, mesmo sendo afirmada pelo autor da crítica como o principal motivo do seu protesto, teria sido relegada pela imprensa tradicional a tema secundário. Quase um pé de página. Não porque o racismo tenha sido alçado à condição de prioritários entre as pautas escolhidas mas para trocar a crítica pela solidariedade e um “global” e deixar sem holofotes a greve. O ao vivo, as redes, o poder do audiovisual e dos leitores, no segundo país do mundo que mais assiste vídeos na internet, fizeram mais do que matérias como a do UOL.

Imagem ou intenção de voto?

O segundo episódio da semana que envolveu diretamente a imprensa e suas escolhas foi a pesquisa de aprovação popular que ganhou destaque nos “jornalões” e sites de notícias. Papel e tela exibiam manchetes que davam conta da aprovação de Luciano Huck chegando a 60% poucas semanas depois de cogitar e ser apontado como possível candidato a presidente da República. Lula, na pesquisa e na capa de O Estado de S. Paulo, viria logo atrás com aprovação de 43%. Acontece que a pergunta não media intenção de votos para a disputa eleitoral de 2018 a presidente, enquanto a matéria, a manchete e os percentuais pareciam comparar a aprovação do apresentador com a de vários políticos que podem disputar a presidência. A questão dizia respeito ao desempenho dessas figuras públicas, chamado todas elas de políticos, dentro das suas próprias áreas de atuação. A pergunta era “Agora vou ler o nome de alguns políticos e gostaria de saber se o(a) senhor(a) aprova ou desaprova a maneira como eles vêm atuando no País”.

A revista não perdeu tempo e estampou a “novidade”. (Crédito: IstoÉ/Reprodução)

Claro que Luciano Huck é bem visto dentro da área que exerce sua carreira, ao passo que os políticos chamado de tradicionais, em crise de imagem por excelência, têm seus percentuais medindo sua atuação política. No fim das contas, quando João fala de Maria, isso diz mais sobre João do que sobre Maria. A pesquisa, da forma como foi apresentada, destacada e comparada, diz mais sobre as intenções da imprensa e dos veículos do que a respeito dos nomes pesquisados. Mas Huck levou a manchete, a foto de destaque e o selo de aprovado por ter boa atuação no país a partir de sua área de atuação, mesmo que esse conjunto de escolhas e suas disposições tenham dado a crer que se tratava de aprovação de candidatos. Os veículos que repercutiram a pesquisa também comeram bola.

Episódios como esses me fazem pensar que o jornalismo vive hoje tanto uma transformação quanto uma crise. A tecnologia é responsável pelas transformações enfrentadas pelas redações e pelos jornalistas na busca por linguagens novas, enfrentando o desafio da presença do leitor até como produtor de notícias e outros conteúdos e as possibilidades de produção e leitura transmídia e crossmedia. A velocidade e a capacidade de compartilhamento dos conteúdos também provocam transformações na própria linguagem e no fazer jornalísticos. Agora a crise no jornalismo…

Ah, a crise, dá-se em grande medida pelo excesso de depoimentos de fontes oficiais e já privilegiadas por suas posições políticas, econômicas, sociais; falta de histórias; falta de pessoas comuns, seguindo o caminho contrário, e já mencionado, ao da historiografia; os conceitos de objetividade, imparcialidade e neutralidade usados para tornar simplória a linguagem jornalística e desencorajar o jornalista a se aproximar das suas histórias. E nessa disputa, os eventos da semana mostram que o jornalismo, ou os veículos tradicionais, ainda não se refez das questões de suas transformações e crises. Em muitos momentos continua aprofundando especialmente a segunda.

**

Vanessa Pedro é professora da Unisul e pesquisadora associada do objETHOS.

___
Notas

(*) Carlos Fino foi primeiro jornalista a noticiar o início da Guerra no Iraque de 2003. Ele era repórter do canal público português RTP e registrou o começo dos bombardeios antes de redes tradicional privadas como CNN e BBC. Por consequência, a primeira rede de TV no Brasil a noticiar o início da guerra foi a TV Cultura, que havia feito acordo de retransmitir a cobertura da RTP no Iraque.
(**) Projeto audiovisual no formato de série de entrevistas que realizei com projeto de Pós-doutorado na Universidade de São Paulo (2011-2015) e na Universidade de Columbia, em Nova York (2013-2014). Link para o projeto: https://youtu.be/wOkwzLdhtqY
(***) A decisão de retirar a transmissão ao vivo do programa repercutiu negativamente, o que fez a direção da empresa rever a posição e mudar de ideia uma hora antes do programa ir ao ar no dia seguinte, mantendo então o vivo.