Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Drummond não era imortal. Sua obra, sim

O mineiro Carlos Drummond de Andrade deixou-nos no dia 17 de agosto de 1987. Nascera no dia 31 de outubro de 1902. Seus livros permanecem. Eis o poema “Memória”, com que abro essas maltraçadas linhas:

“Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração./ Nada pode o olvido/contra o sem sentido/apelo do Não./ As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/à palma da mão/ Mas as coisas findas/muito mais que lindas,/ essas ficarão.”

Mas seus 109 anos cederam espaço a outros assuntos. A primeira página dos jornais reduz o Brasil a esportes – mas com a hegemonia do futebol; a crimes, mas sem a antiga predominância dos conflitos de periferia, resolvidos a pauladas, facadas e tiros, pois agora destacam-se entre os infratores os crimes cometidos sem faca, sem tiro, sem paulada, apenas com assinaturas em cheques, mas não em recibos (ninguém passa recibo de dinheiro vivo recebido em porta-malas de automóveis chiques, privados ou públicos, estacionados em garagens suspeitas), e senhas bancárias, todos reunidos sob a rubrica dos corruptos, entretanto sem que os corruptores sejam citados.

Delatores se imolam nas primeiras páginas, não para salvar a pátria, mas para salvar a pele, vingando-se de antigos comparsas que todavia negam tudo, mesmo perdendo recentes postos obtidos justamente porque foram nomeados para fazer o que fizeram. Ainda assim, os delatores são tratados como heróis.

O Brasil parece de ponta-cabeça. Contudo, para inserir alguma outra estação na dolorosa via-crúcis, fala-se também de um celular popular, com o qual se fala, naturalmente, e também se passa mensagem, pois 80% dos usuários mandam torpedos em profusão.

Vida eterna

Mas a semana trouxe outras novidades: o futebol cedeu um pouco de seu latifúndio a outros esportes, afinal estávamos em plenos Jogos Pan-Americanos. Um lixeiro, Solonei Silva, ganhou medalha de ouro em disputada maratona em Guadalajara, no México, e o Brasil ficou em terceiro lugar com 48 medalhas de ouro, atrás de Cuba, em segundo, com 48, e dos EUA, em primeiro, com 92.

Ah, sim, mas o ex-presidente Lula tem câncer na laringe e vai ficar um bom tempo sem falar, sem beber e sem fumar. Conhecendo-o como a mídia o conhece, difícil mesmo será ficar sem falar. E mais difícil ainda será a mídia deixá-lo recuperar-se em paz. Será difícil também para ele deixar a mídia em paz enquanto se ele recupera ou enquanto ela se recupera de sua onipresença.

Drummond morreu em idade avançada (85 anos) para os padrões do século passado, mas média para o que a Medicina e disciplinas de domínio conexo anunciam para o homem, que vai obter a eternidade ainda neste século. É o que afirma o livro hoje mais vendido no mundo, escrito pela chinesa Wang Xiaoping, de apenas 25 anos, autora do bestseller mundial A Segunda Declaração, no Brasil publicado em silêncio pela Cultrix, ano passado. A tradução é de Lúcia Helena Seixas, tem 400 páginas e custa R$ 62. Em resumo, traz inventivas leituras de pesquisas e experimentos sobre células-troncos e terapia genética, atestando que a vida eterna é questão de algumas décadas.

Por enquanto, nenhum homem é imortal, mas muitos livros podem ser.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro; autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]