Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Uma turma de olho nos novos tempos

Bonito e bem-vestido, usando botas e agora até cachecol, o caipira Chico Bento, personagem criado nos anos 1960 por Mauricio de Sousa, cresceu. Não usa mais calça “pula brejo” e nem anda com os pés descalços. Agora ele é um jovem recém-aprovado no vestibular de agronomia que vai à cidade grande morar numa república – ele está correndo atrás de seus sonhos, não só para melhorar a própria vida, mas a de todos à sua volta.

Lançada em agosto, a revista em quadrinhos “Chico Bento Moço” relata a nova vida do rapaz do campo e faz parte da “Turma da Mônica Jovem”, série que reinventa os personagens clássicos com traços que remetem aos mangás (quadrinhos japoneses). A iniciativa surgiu em 2008 e representou a primeira guinada da Mauricio de Sousa Produções rumo à diversificação iniciada para a retomada do crescimento da empresa, após uma reestruturação em 2002.

A estratégia levou à criação da “Tuma da Mônica Vintage”, que são produtos em comemoração dos 50 anos da sua principal personagem, e de “graphic novels”, como “Astronauta Magnetar”. Sousa afirma que há uma negociação em andamento com um canal da TV aberta para “um projeto no gênero do antigo programa ‘Vila Sésamo’ [anos 1970], adequado à nossa realidade e necessidades atuais”. “Em educação precisamos de tudo”, diz o quadrinista de 78 anos. Filmes, espetáculos musicais e a nova personagem Monica Toy (nos moldes do americano “South Park”), que se comporta como uma criança de 3 anos, completam o portfólio.

No entanto, de tudo que a empresa produz, a receita maior não vem das HQs, mas sim do universo construído em torno dos personagens – os licenciamentos. Esses contratos hoje representam 70% da receita. Cerca de 3 mil produtos trazem os personagens criados por Mauricio de Sousa. A lista, com 150 empresas parceiras, vai de cadeira de praia, maçã, alface e fralda a capa para celular. O faturamento total não é revelado.

“Meu pai sentia que meu irmão mais novo [Marcelo, de 15 anos] estava dividido entre a ‘Turma da Mônica’ e os mangás [mais especificamente a série Naruto, criada por Masashi Kishimoto]”, diz Mônica Sousa, filha do quadrinista que inspirou a famosa personagem que leva seu nome. Hoje diretora comercial da empresa, Mônica diz que o irmão “estava dividido até porque o pai dele é o Mauricio de Sousa. Ele queria agradar o pai, mas também queria ler o mangá”.

Sousa percebia ali, dentro da própria casa, que o público nascido entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 era diferente. A aposta na “Turma da Mônica Jovem” era a concretização de um projeto para atrair “esse adolescente que está saindo cada vez mais cedo do mundo infantil”, segundo Mônica.

Mudança importante

Na “versão moço”, Chico Bento teve não só um upgrade no visual, mas também ficou politicamente correto. Mesmo saindo da casa dos pais rumo a uma cidade maior, Chico demonstra que ainda valoriza a vida no campo: retorna para visitar a família nas férias e recebe com satisfação conselhos para “não deixar a roça sair dele”.

“É que eu, na verdade, acho isso. Eu sou o Chico Bento. Vim da roça também, só calçava sapatos para ir à escola”, diz o autor. Mas admite que hoje existe uma patrulha grande sobre o que deve e o que não deve ser publicado.

Um personagem vindo do campo permitiria grandes debates sobre o país hoje, mas o autor tem evitado os espinhos. “Não posso falar ‘Vamos plantar soja para todo lado’ ou ‘Vamos comprar cana para ter etanol’. Também não posso colocar críticas a isso porque são coisas que ainda estão acontecendo, estão em debate”, diz. Para Sousa, a revista é, antes de tudo, um entretenimento. “A pessoa não compra para ler tragédia. É para um momento tranquilo, de lazer. Desvio de coisas que tragam muita polêmica porque, afinal, isso é um produto comercial. Se eu colocar, corro o risco de não vender bastante e a editora [ele hoje publica pela Panini ] vai brigar comigo.”

“Podem estar caindo as vendas dos gibis de outras pessoas, mas os meus não. Estão se mantendo”, diz Mauricio de Sousa

Quando chega ao estúdio, onde estão os 23 roteiristas que trabalham para ele, Sousa costuma reforçar que agora, nas histórias, não se pode soltar balão e não é permitido xingar. “Não é possível tocar em alguma coisa que pareça ‘bullying’. E tudo é ‘bullying’”, diz. Mas ainda sente certa dificuldade nessa “censura” ou “autocensura”. Nem tudo é tão policiado assim. O Monica Toy é um produto para adulto, “no qual pode haver uma história sobre alguma contrariedade, sobre algo que se quer extravasar”. “Tem que existir uma válvula de escape”, diz.

Sousa fala com a experiência de quem tem dez filhos, 11 netos, dois bisnetos e está no quarto casamento. Na empresa, trabalham seis filhos e dez outros parentes. “Vejo vantagem em trabalhar com a família. Você já conversou tanto com eles que já economiza uma porção de orientações. O pessoal me conhece, sabe o que eu gosto ou não. Se eu fabricasse locomotiva ou tijolo, talvez não fosse assim. Mas eu produzo algo orgânico, que faz parte do meu eu.”

Com a estratégia de diversificação, a empresa passou a ter um alcance maior do que o público infantil, que hoje representa apenas metade dos seus consumidores. Durante a entrevista, em seu escritório na Lapa, em São Paulo, Sousa começa a desenhar no papel para explicar: “O nosso guarda-chuva de produtos era assim [pequeno], e tinha um monte de crianças embaixo. Agora, começou a chegar gente deste tamanho aqui [adultos] e nossa produção teve que abrir e virou um guarda-chuva enorme. Não planejei esse novo público. Estava satisfeito com o guarda-chuvinha. Quando comecei a pensar em fazer a ‘Turma da Mônica Jovem’, demorei cinco anos porque o estúdio e a editora estavam satisfeitos com os resultados. Por que mexer em time que está ganhando? Era arriscado, mas peitei tudo”, afirma.

O quadrinista diz que segue instintos para direcionar os novos projetos da empresa. “Aprendi a ler com história em quadrinhos e vi tudo que aconteceu em histórias em quadrinhos nos últimos 50 anos”, diz. Nem sempre aquilo que ele acredita bate com o que pensam os diretores da casa. “Principalmente com o que pensa meu diretor financeiro, porque todo diretor financeiro quer um bom custo-benefício e nem sempre o que eu acredito é passível de convencimento. Mas contratei ele para isso mesmo, para fazer a média”, diz, rindo.

Ao contrário dos mais pessimistas, o cartunista não acha que o mercado de revistas impressas esteja tão cambaleante assim devido ao avanço das publicações pela internet. “Podem estar caindo as vendas dos gibis de outras pessoas, mas os meus não. Estão se mantendo”, diz. “O quadrinho permite diversas plataformas e você pode colocá-lo em tudo que é lugar. Mas, por outro lado, o papel, como algo que você pega, olha, bota ali e olha de novo, e não precisa de energia elétrica, é algo mágico e pessoal. Vira um objeto de alegria íntima.”

Hoje, as vendas de quadrinhos de Mauricio de Sousa estão entre 2 e 3 milhões/mês. Tirando alguns picos de venda, a média da empresa tem se mantido nos últimos 30 anos. Mas houve momentos bem fortes, como a venda de 4,5 milhões de revistas mensais nos anos 1980.

A diversificação da Mauricio de Sousa Produções veio depois de uma reorganização dos negócios, em 2002. A empresa passou por dificuldades financeiras porque começou a fazer muitos desenhos animados, teve que investir, mas se deparou com a interrupção de contratos por conta da crise econômica. Em 2010, veio outra mudança importante, quando a empresa fechou o Parque da Mônica no shopping Eldorado, em SP. Em 2012, inaugurou A Ilha Misteriosa do Cascão no Wet’n Wild. Mas agora Sousa mantém certa distância dessa área de atuação. “Enquanto a legislação de importação de brinquedos não mudar, não vamos ter parques temáticos dignos no Brasil. A gente vai continuar perdendo todo mundo para Orlando e outros parques temáticos”, afirma.

O que deu certo

No mercado internacional, Sousa já tem dado passos com diferentes produtos, como os gibis e as “graphic novels”, além de desenhos para televisão. Há produtos seus em cerca de 50 países. Em alguns, o mercado tem ido tão bem que as revistas são publicadas há 20 anos, como ocorre na Indonésia. Como se trata de um país de maioria muçulmana, há algumas adaptações. “Se o Chico Bento vai nadar num ribeirão e estiver peladinho, ele não é colocado mostrando as partes. Ou se a Mônica está na piscina, a gente não a põe de biquíni, mas de maiô.” O Japão foi o país onde a personagem Mônica encontrou mais dificuldades, mas não por causa da disputa com os tradicionais mangás. “Ela não saía no Japão porque ela batia em homem. Fiquei 30 anos esperando que aceitassem a Mônica. Agora aceitaram. Os hábitos do Japão estão mudando”, diz.

O quadrinista tem uma vida bastante ativa no escritório da Mauricio de Sousa Produções e é um assíduo frequentador das redes sociais. “Não posto mais no Twitter porque não dá tempo. Ontem mesmo estava tendo umas aulas de como usar o Instagram”, diz. “Não estou muito no ‘Face’ porque ali o pessoal fala muito e eu não tenho tempo de falar ou dar a atenção devida. Se a pessoa chega com um belo discurso de três páginas, eu tenho que ler para responder? Migrei para o Twitter por causa disso. É um chat-relâmpago.” Ele também é consumidor de novela “bem escrita”, “que procura assuntos candentes”. Sousa considera as novelas geralmente “bons trabalhos literários”.

Para ele, as constantes alterações, como tem feito à frente da companhia, são necessárias no segmento de criação. “Se não, a gente estava fazendo capa e espada, qualquer coisa assim, ou folhetim do tempo de Machado de Assis [1839-1908]. E hoje a evolução da cabeça da garotada é galopante. É um desafio acompanhar ou eventualmente tentarmos nos antecipar ao que o pessoal vai gostar e vai consumir”, afirma Sousa. “As agências de publicidade estão apanhando pacas. Os produtores de filmes, mais ainda. Gastam milhões de dólares e às vezes os filmes são um fracasso. E são coisas que no passado deram certo. Mas fórmulas definitivas não existem mais.”

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Vanessa Jurgenfeld, do Valor Econômico