Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A arte de traçar belas letras

Numa manhã de março, o professor Antônio de Franco Neto, de 62 anos,
trabalhava em sua escola de caligrafia. Diversas pastas empilhadas – lições de
alunos – formavam algo parecido com um castelo sobre a mesa perto da entrada.
Atrás da mesa estava seu filho único, Antônio Ramondetti de Franco, de 27 anos,
porte de guarda-costas e quarta geração de professores da família.


O fundador da escola, o já morto Antônio de Franco, ‘observava’ tudo
emoldurado num quadro na parede ao fundo. Faz 96 anos que a família se dedica
com afinco ao ensino da arte da bela escrita. Ninguém fugiu à sina. Os homens da
família têm vários outros traços em comum. Quase todos se chamam Antônio,
cursaram faculdade de direito e jogam futebol de botão.


A Escola de Caligrafia De Franco continua atraindo alunos, mesmo no mundo de
hoje, onde escrever no teclado é mais comum do que escrever à mão. Para quem
anuncia o sepultamento da caligrafia, Antônio-pai rebate: ‘Decretaram o fim da
pintura quando inventaram a máquina fotográfica. Mas, veja só, uma foto de
paisagem sai perfeita, mas a pintura a óleo continua valendo mais. O trabalho
manual é incomparavelmente mais bonito do que o impresso, que é frio.’


As lições são entregues aos alunos dentro de canudos de papelão dourado com o
emblema da escola. Luciane Ribeiro estava lá por recomendação do patrão do
escritório onde é secretária. Mordendo o canto da boca, como se isso fosse
ajudar no desenho das letras, começou a preencher uma folha com a frase: ‘Os que
não tiverem força de vontade fracassarão sempre’.


Ela seguia as instruções básicas do método De Franco, de segurar a caneta com
o polegar e o dedo médio sem se tocarem e o dedo indicador comandando o
movimento. Além disso, evitar torção no pulso, o que traz cansaço ao escrever, e
colocar o peso do corpo sobre o braço que não escreve sobre a mesa. Há ainda
vários detalhes a observar, como a importância de deixar as pernas do ‘M’
paralelas ou se lembrar de puxar um bocadinho o traço nas pontas superiores do
‘V’ e nas pernas do ‘M’.


Frases edificantes


Num quadro na parede é possível ler o depoimento de agradecimento do
ex-senador do Paraná Leite Chaves, que foi aluno dos De Franco. Ele conta o
motivo que o levou às aulas de caligrafia: ‘Certa feita estava eu na tribuna do
Senado, proferindo um discurso, quando recorri a anotações manuscritas que não
fui capaz de decifrar’.


A porta, que ostenta um brasão da família feito pelo fundador, abriu-se e
entrou mais um aluno daquela manhã, Dario Azevedo, um advogado de 57 anos.
‘Tenho aulas de caligrafia por puro diletantismo. Estou aprendendo russo e quero
também conseguir escrever na nova língua.’ Azevedo tem em casa 15
canetas-tinteiro. ‘A letra costuma sair melhor com o aparato antigo.’


Antônio de Franco salienta que Azevedo é um perfeccionista, aliás, uma
característica comum entre os calígrafos. ‘São pessoas que gostam de tudo
bem-feito, não só na escrita, mas no vestir, no falar. Porque, antes de tudo,
uma letra bonita é sinal de educação, é um cartão de visita.’ Espia o bloco no
qual a repórter rabisca suas anotações e prossegue. ‘Não que quem não tenha
letra bonita não tenha educação, mas escrever com letra feia é quase como falar
errado.’


Logo apareceu Regina de Sá, de 52 anos, querendo detalhes sobre o curso. Seu
objetivo era escrever de próprio punho os convites de casamento da filha. Para
quem quer apenas melhorar a letra, dois meses bastam. Mas para escrever convites
são necessários quatro meses e para diplomas, dez. A mensalidade é de R$ 220,00.
‘Talvez saísse mais em conta contratar os serviços de um profissional.’ Regina
pensou alto e logo arrematou antes de ir embora. ‘Mas não teria o mesmo valor
afetivo.’


Há basicamente dois tipos de aluno. Aqueles que querem melhorar a letra –
principalmente jovens às voltas com o vestibular e candidatos a concursos
públicos – e aqueles que visam ganhar dinheiro, seja confeccionando convites e
diplomas, gravando nomes em ouro, escrevendo nomes em bolos ou bordando-os em
bonés. Antônio-pai se diz surpreso ao descobrir com seus alunos nichos tão
criativos para o uso da caligrafia. A escola atende uma média de mil alunos por
ano, entre presenciais e a distância – nesse caso, as lições e correções são
feitas via correio.


Segundo Antônio-pai, a escola nasceu de uma história de amor. Tudo começou
com dona Ida Nóbile de Franco, que vivia em Veneza e recebeu uma educação
‘castelar’. A moça, que era fluente em latim, grego e francês, caiu de amores
por um plebeu. ‘Foi aquele drama.’ Ida enfrentou a oposição familiar, casou-se
com o plebeu e embarcou para o Brasil. ‘Nessa época, por volta de 1880, o Brasil
era uma terra com tudo por fazer, pouca cultura, parca educação. Quando dom
Pedro II veio ao Brasil, foi minha bisavó a encarregada de fazer o discurso, em
francês, de recepção. Ela era uma pessoa muito culta em meio a essa massa
ignara.’


Dona Ida teve três filhos e a cada um ensinou uma arte. A Antônio de Franco,
avô de Antônio, coube a arte da caligrafia. Em 1915 ele abriu a Escola de
Calligraphia De Franco, como se grafava na época, utilizando o método criado por
ele, o mesmo em vigor até hoje – incluindo as frases edificantes que os alunos
têm que copiar exaustivamente. ‘Querer sem que custe é próprio dos fracos.’ O
aprendiz de caligrafia ganha de bônus ensinamentos para a vida.


A falsificação


No tempo de dona Ida, escrever cartas era algo corriqueiro. Hoje elas são
quase relíquias, num mundo onde as pessoas trocam mensagens eletrônicas e
conversam em redes sociais como o Facebook. ‘Uma carta, ainda mais uma carta de
amor, não se compara com o texto impresso’, suspira Antônio. ‘A imperfeição
impregna o seu calor, sua emoção, é isso que faz o trabalho diferenciado.’


Antônio lembra-se de um caso curioso. ‘Um dia, um rapaz, humilde, vestindo
uma camiseta do Santos, lembro bem, falou: Professor, minha letra é horrível e
preciso saber se realmente vou melhorar com suas aulas. Eu sou camelô e meu
dinheiro é suado.’ Antônio deu sua palavra e quis saber o que motivara o rapaz.
‘Estou com um problema’, teria dito. ‘Estou com muita saudades da Maria, minha
namorada, que ficou lá na Bahia.’ Ele queria enviar uma carta para a amada, mas
tinha vergonha de suas garatujas.


O português do rapaz continuou péssimo, mas a apresentação da letra, um
primor. O moço sumiu e reapareceu depois de meses para contar o desfecho da
história. Maria não acreditou que o namorado tivesse escrito uma carta tão
primorosa de próprio punho. Ela dizia que ele tinha ditado e exposto as
intimidades do casal para um terceiro e agora vinha com aquela ladainha de aula
de caligrafia. Só havia uma maneira de ele provar que dizia a verdade: escrever
na frente dela. O rapaz aceitou o desafio e desembestou até a Bahia para a tal
prova dos noves.


O curso dos De Franco é essencialmente prático. Por meio de exercícios e
correções, o aluno avança. ‘Não vou pegar sua letra, que você escreve há anos,
cheia de vícios e modificar’, explica Antônio-filho. ‘Ensinamos uma letra nova,
a comercial inglês, que é um padrão de beleza mundial. E desde o início o aluno
aprende o jeito correto de escrever.’


E onde fica a individualidade da letra manual? Não era justamente a
imperfeição dos traços que impregnava o texto de emoção, diferenciando-o do
impresso, sempre frio e igual?


Antônio vem em socorro do filho. E com uma resposta na ponta da língua diz na
sua voz pausada: ‘Se você colocar dez pianistas tocando a mesma partitura, que
seria no caso o padrão, cada um vai dar uma interpretação própria. A ideia é que
o aluno possa colocar dentro daquele estilo de letra sua individualidade. E
nunca, mesmo dentro do mesmo padrão, uma letra é igual a outra. Isso já seria
falsificação. Por exemplo, se você sobrepuser duas assinaturas e elas baterem
exatamente iguais, é característica de falsificação. Mas essa já é uma outra
área, a grafoscopia’.


Linhagem e arte


A palavra caligrafia vem do grego ‘kallos’ (beleza) e ‘graphos’ (escrita).
Dizer caligrafia feia ou bonita é um erro: ‘Há letra feia ou bonita, mas
caligrafia é sempre letra harmoniosa’, explica Antônio.


Na Grécia e na Roma antigas os calígrafos gozavam de elevada consideração
social. Em países orientais, como Japão e a China, essa arte é praticada e
venerada até hoje. Na China, foi inaugurado em 2009 um museu para celebrar a
caligrafia e os ideogramas do país, o primeiro desse tipo no mundo.


Até 1950 o ensino de caligrafia fazia parte do currículo escolar brasileiro.
‘Sabe qual foi o resultado do fim da obrigatoriedade?’, pergunta Antônio e logo
emenda a resposta: ‘Os professores não estão aptos a escrever e muito menos a
ensinar’. Ele desabafa: ‘Falta orientação caligráfica’.


Seu filho complementa: ‘A invenção da esferográfica, muito antes do
computador, prejudicou a letra das pessoas. A caneta esferográfica não te obriga
a empregar a mesma atenção que a caneta-tinteiro exigia’.


Antônio-pai lembra-se de quando inventaram a tinta azul-real lavável, o que,
para ele, na época um menino de dez anos, parecia a descoberta mais importante
de todos os tempos. ‘Até então, era azul-real. Caía na roupa, tinha que jogar
fora.’


Seu filho, o único descendente da quarta geração, diz depois de toda essa
conversa: ‘Todo o peso está nas minhas costas. Se eu não tiver filhos, morrem
comigo os De Franco’. O jovem está noivo e planeja contribuir para a
continuidade da linhagem e da arte da bela escrita. E se a prole escolher outro
rumo em vez da caligrafia? ‘Não poderei obrigá-los. Mas costumo brincar que
tomei muita sopa de letrinhas e peguei gosto. Acho que com meus filhos será o
mesmo.’