Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A história deixada por Versus

Publicado entre 1975 e 1979, Versus fazia parte daqueles que passaram à História com o rótulo genérico de ‘imprensa alternativa’ ou ‘nanica’, caracterizada, em sua absoluta diversidade, como os veículos de oposição frontal ao regime militar instaurado em 1964. Foram cerca de 150 títulos (isso mesmo: 150 jornais) entre 1964 e 1985, segundo o jornalista e pesquisador da USP Bernardo Kucinski, autor de Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa (São Paulo, Página Aberta, 1991), obra de referência sobre o tema.

Os nanicos eram, para os setores mais conscientes e inconformados da sociedade amordaçada, a única alternativa de informação independente e debate político, cultural, comportamental. Eram de uma heterogeneidade só: havia desde o impagável e duradouro Pasquim, até títulos que tiveram uma ou duas edições; havia os ‘nacionais’ (ou do eixo Rio-São Paulo), como Opinião, Movimento, EX, Versus, até os regionais como o gaúcho Coojornal, o mineiro De Fato, o baiano Boca do Inferno, o paraense Resistência; havia os de temática mais geral, e os então chocantes Lampião da Esquina, Brasil Mulher, Mulherio e Nós Mulheres, que impuseram à esquerda e aos setores democráticos o debate sobre a sexualidade e as opressões.

Mas eram todos mesmo nanicos – termo que surgiu como xingamento dos detratores mas que foi assumido com carinho pelos fazedores de jornais –, porque eram todos pequenos, de circulação restrita, finanças à míngua e avessos ao lucro. De alguma forma militantes. Versus foi tudo isso: nanico, alternativo, independente, militante. Mas diferente da grande maioria. ‘Era desordenado, indisciplinado, inventivo’, relembra o jornalista e cineasta Omar de Barros Filho, o editor que mais tempo esteve à frente de Versus. Nascido da criatividade e disposição incansáveis do repórter e editor gaúcho Marcos Faerman (1944-1999), o Marcão (que havia passado pela Zero Hora, pelo Jornal da Tarde, de São Paulo, e saía do EX, outro nanico histórico), Versus não tinha nada de nacionalista nem convencional na forma, como a maioria dos jornais exclusivamente político-ideológicos do período.

New journalism latino-americano

O projeto de Versus teve a ousadia de beber de duas fontes díspares e conciliá-las. De um lado, o new journalism norte-americano, aquele da New Yorker, com que Capote, Hershman e Gould transformaram a narrativa factual em literatura. De outro, mais próximo, a experiência da revista cultural argentina Crisis, que, de 1973 a 1976, reunia em sua redação intelectuais do porte do romancista Ernesto Sábato, do poeta Juan Gelman e do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Faerman entrevistou Galeano para o EX e encantou-se pela experiência de Crisis. ‘A influência de Galeano e equipe em nosso fazer jornalístico e político’, conta Barros Filho, ‘foi além do programa inicial, que enunciávamos como `cultura como forma de ação´, e que mais tarde desbordou na luta aberta pela formação de um novo partido dos trabalhadores, de caráter socialista’. (Depois de fechada a Crisis, com o golpe de 1976, Galeano, exilado, passou a colaborar com Versus.)

O resultado foi não apenas uma revista político-literária-cultural à la Crisis, com a introdução inédita, numa esquerda brasileira então majoritariamente moldada pelo nacionalismo stalinista, desinformada sobre a América hispânica, avessa às demandas étnicas, raciais e de gênero, das temáticas sobre os negros, índios, regionais, latino-americanas, que até então não existiam nas preocupações e muito menos no programa das organizações clandestinas. ‘Conhecer a realidade repressiva latino-americana foi um choque em nosso espírito provinciano, em geral muito mais acostumado e sensível aos assuntos e debates da moda em Paris ou Nova York’, lembra Barros Filho. ‘Versus trabalhava sobre os mitos, a história, as culturas do continente com emoção.’

O impacto das novidades estéticas e temáticas de Versus foi enorme. Lançado poucos dias depois de anunciada a morte de Vladimir Herzog nas mãos da repressão (um marco na história das lutas por liberdades democráticas e, por consequência, da história da imprensa alternativa), o jornal começou a ser distribuído de mão em mão pelos colaboradores, com 12 mil exemplares de tiragem, para chegar em pouco tempo a cerca de 30 mil jornais vendidos.

Para o êxito, além dos atrativos do jornal, contribuiu decisivamente outra ‘sacação’ de Faerman: buscar vincular-se à intelectualidade e aos estudantes de uma universidade então altamente cerceada. ‘O diálogo com setores engajados da Academia trouxe à redação Fernando Henrique Cardoso, o grande tradutor de russo Boris Schneiderman, Modesto Carone, Octavio Ianni, Francisco Weffort, Gabriel Cohn e tantos outros’, relata Barros Filho. ‘Também os estudantes ficaram mais próximos de nós, à medida que Versus politizou ainda mais seu discurso e passou a debater os rumos da universidade e do Brasil, na batalha da democracia.’

Reler as páginas de Versus, ao contrário do que possa parecer às novas e não tão novas gerações, não é um exercício de saudosismo. O que se encontra no primeiro volume da antologia organizada por Barros Filho (que prepara mais dois), bem como no sítio do jornal, é muito mais que material para historiadores e comunicólogos. Entrevistas com Michel Foucault, Jack London, Glauber Rocha, João Saldanha, Paulo Freire (então na Guiné-Bissau), Chico Buarque, Gianfrancesco Guarnieri, Mário Schenberg são ricas viagens pelo pensamento e personalidade de criadores, pensadores, cientistas cujas obras mantêm a ressonância.

Ousadia editorial

Artigos assinados guardam seu sabor de inusitado depois de três décadas: o crítico de arte Mário Pedrosa, o internacionalista refinado, declarava em 1976, em Paris, suas saudades de casa (‘Discurso aos tupiniquins ou nambás…’). O teatrólogo Augusto Boal descrevia peripécias pela Itália (‘Na terra de Pirandello’), enquanto Galeano relatava aos leitores de Versus uma viagem ao ‘princípio de Cuba’ (‘Gran tierra’). Plínio Marcos, o dramaturgo maldito, e Lívio Xavier, o trotskista, registraram seus próprios perfis.

As reportagens não eram menos inéditas e impactantes: Faerman foi autor da capa ‘Segredos atômicos do Brasil’ (sobre o acordo Brasil-Alemanha). Caco Barcellos já revelava a vocação para viver perigosamente, na reportagem sobre a violência cotidiana no sertão nordestino. Carlos Rangel relatou os bastidores da invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos. Luiz Egypto, outra alma de Versus, foi à Amazônia ao encontro dos sobreviventes do ciclo da borracha.

A ousadia na luta contra as ditaduras no continente foi marca de Versus, que publicou a carta-denúncia sobre prisões, sequestros e desaparecimentos em seu país do escritor e repórter argentino Rodolfo Walsh – que viria a ser o último escrito de Walsh antes de seu próprio sequestro e morte. Em julho de 78, a edição 23 de Versus publicava uma carta de um preso político brasileiro, o socialista Amadeu de Almeida Rocha, ao general Ernesto Geisel (‘Carta aberta de um torturado ao general’) – artigo que valeu ao jornal o Prêmio Vladimir Herzog. Em dezembro do mesmo ano, o repórter Renan Antunes de Oliveira (Prêmio Esso de jornalismo em 2005) relatava aos leitores brasileiros o caso da brasileira Flávia Schilling, presa política no Uruguai. Em abril de 1979, foi a vez de Hélio Goldsztejn: o repórter ouviu o ditador nicaraguense Anastasio Somoza, acuado em seu bunker pouco antes do fim. A entrevista acabou reproduzida no New York Times.

No terreno da luta política, da reorganização dos movimentos e dos partidos então clandestinos, Versus não fez por menos: abriu páginas para intelectuais, estudantes, para o debate sobre a democratização das instituições de ensino, para o nascente e já poderoso movimento operário do ABC paulista, chamou a construção de um partido socialista e pouco tempo depois, sob forte impacto das greves operárias, foi porta-voz de um chamado então ainda frágil pela construção de ‘um partido dos trabalhadores’. Em junho de 1979, bem a seu estilo, Versus publica uma entrevista-ficção com Friedrich Engels, de autoria de Enio Bucchioni, sobre a necessidade de os trabalhadores se organizarem politicamente de forma independente (‘Aliás, Engels’).

Muito se debateu, brigou e rompeu por conta do final de Versus, em fins de 1979. Há até hoje quem diga, como o pesquisador Kucinski, que a então Convergência Socialista (organização trotskista da qual derivaram o PSTU e parte do PSOL) ‘tomou’ Versus para acabar com ele. ‘Essa tese não tem nada a ver com nada’, rebate o professor Enio Bucchioni, colaborador e editor do jornal em seu último ano e meio e então dirigente da Convergência. ‘Podemos ter cometido erros, mas teria sido estúpido querer acabar com o patrimônio que era Versus.’

Segundo Bucchioni, com a abertura política, todos os jornais alternativos passaram a fazer mais ênfase na política e acabaram se ‘partidarizando’. ‘Foi assim com o Movimento e o PCdoB, com o Em Tempo e a Democracia Socialista. Além disso, a grande imprensa, sob vigilância menor, passou a pautar temas e publicar assuntos antes só tratados pelos nanicos. ‘Foi o destino de todos nós’.

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Jornalista e servidora federal; foi, depois de revisora de Versus quando estudante, repórter e editora-assistente em O Dia, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico