Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Macunaímas para todos os gostos

O porto, A Tribuna, o Santos FC, Pelé… Em que pese a fachada aparentemente respeitável, o fato é que a Baixada Santista não poderia estar melhor representada na tal realpolitik tão em voga ultimamente, nas águas no lulopetismo, segundo as más línguas. Ou mesmo numa plausível zynikpolitik – a supremacia da razão cínica –, a julgar pela mendacidade que exalam esses grandes ícones santistas, que viceja com as bênçãos dos poderes públicos e de uma mídia nativa pra lá de inexpressiva. De qualquer forma, nada de novo ou surpreendente em meio à esbórnia institucional que campeia no país, mas que não deixa de chamar a atenção, ouso crer, pela desfaçatez com que estas e outras entidades manipulam, escamoteiam, burlam, enfim, deitam e rolam numa conjuntura que é uma festa para a transgressão e a bandidagem.

E pensar que Santos já foi uma espécie de centro nevrálgico do país, em função, à época, do maior contingente de trabalhadores da pátria mãe gentil, antes de ser pulverizado pelas privatizações do cais e do pólo industrial de Cubatão, como também pela fervilhante vida cultural e militância política. Porta de entrada de idéias e tendências oriundas de todas as partes do mundo, graças ao porto, por isso mesmo acabou ficando sob o coturno dos militares por quase duas décadas, nos chamados anos de chumbo, deixando seqüelas que de certa forma permanecem até hoje. Não só pela perda de força política e de representatividade na área governamental, por absoluta carência de lideranças idôneas, mas principalmente pelo embotamento da imprensa local, mais especificamente do venerando e até então valoroso jornal A Tribuna, que nunca mais voltou a ser o mesmo ao aderir de corpo e alma a um tipo de jornalismo superficial e clientelista que enxovalha sua centenária história.

Drama social latente

Fachada aparentemente respeitável, dizia eu, mas que já não engana o leitor careca de saber do viés predominantemente mercantilista adotado pela casa e cuja cobertura parcimoniosa, reticente e por vezes tendenciosa é cada vez mais rejeitada pela população, como comprova o crescente encalhe do jornal nas bancas. Segundo o depoimento insuspeito de meu jornaleiro, A Tribuna já foi batida até mesmo pelo caçula da casa, o tablóide popularesco Expresso Popular, e não é raro que venda menos que o nanico Diário do Litoral, o mesmo acontecendo aos domingos em relação aos jornalões da capital.

E nem poderia ser diferente, diante da postura conservadora e do visceral comprometimento do grupo com as elites e classes dominantes, ensejando a disseminação de uma imagem desvirtuada dos fatos e, de quebra, contribuir para a protelação e agravamento dos problemas crônicos da região. Sem falar da costumeira aversão por questões polêmicas, a proverbial omissão em relação a delitos e transgressões envolvendo a alta roda, a clara e notória subserviência aos poderes públicos, o oba-oba em torno das instituições e amigos da casa, dentro da velha e proveitosa prática do escambo – e por aí afora. Excrescências que acabam por chamar a atenção mesmo dos mais desavisados.

Como no caso da double face da atividade portuária, sempre destacada pela importância no contexto econômico nacional e mundial, mas de cujos porões sombrios e insalubres pouco ou quase nada se fala nos assépticos veículos da família Santini. Absurdos como as precárias condições de trabalho que ainda vigoram no cais, no drama diário enfrentado pela velha e desprotegida categoria dos estivadores, bem como o tenebroso quadro de exclusão social dos bairros adjacentes, em que o consumo de drogas e a prostituição proliferam a céu aberto, exibidos pela TV Record em longa reportagem do repórter Roberto Cabrini em julho, no programa Domingo Espetacular, e que, apesar da gravidade, por enquanto não encontraram eco na cidade.

Mesmo no simpósio sobre o futuro do porto, promovido pelo grupo A Tribuna ao longo da última semana de agosto, e que mobilizou a nata do setor, o submundo do porto passou ao largo das discussões que, como sempre, priorizaram estudos e metas de faturamento, em detrimento do latente drama social que tende a permanecer como uma chaga aberta em pleno coração da cidade.

Uma história cabeluda

Nessa toada, também não surpreende que as graves irregularidades no controle de importação e exportação no porto santista, denunciadas por sete fiscais agropecuários em relatório entregue ao Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo e divulgado pela Folha de S.Paulo na edição de sexta-feira (21/8), tenham sido solenemente ignoradas por A Tribuna e Cia. Segundo o médico veterinário Alexandre dos Reis Inácio de Souza, há cinco anos fiscal federal agropecuário, ‘há anos a fiscalização em Santos é apenas documental. É como se fossemos um cartório, só estamos lá para carimbar’, relatou, afirmando que o serviço de vigilância não exerce nenhum controle em relação aos resíduos de embarcações que aportam em Santos, tanto para os navios de carga como para os de passageiros.

De acordo com os fiscais, o Serviço de Vigilância Agropecuária (SVA) tem ignorado normas de fiscalização de produtos importados e aplicado procedimentos irregulares para a liberação de exportação, como as carnes. O MPF ainda avalia o conteúdo do relatório para decidir se abrirá inquérito, mas de qualquer forma são denúncias de tal gravidade que não poderiam ser ignoradas pelo restante da imprensa, principalmente por parte de quem dedica boa parte de seu espaço para a atividade portuária, como o grupo A Tribuna.

A matéria da Folha, assinada por Agnaldo Brito, aproveita para lembrar que o porto de Santos coleciona um sem-número de denúncias de irregularidades ao longo de sua história. Como a falta de licitação na concessão de áreas para a exploração por parte de empresas do ramo; a ingerência de políticos, como o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, junto à Codesp; e o mais comum deles, as fraudes e desvios de mercadoria que oneram e causam milhões de reais de prejuízo ao país.

O mais recente com tais implicações que A Tribuna, como é de praxe, preferiu não investigar como foi possível que contêineres repletos de produtos eletrônicos, estacionados dentro da área de fiscalização do fisco, puderam ser substituídos por outros idênticos, carregados de material sem valor, como areia, por exemplo, sem que ninguém visse. Um crime tão pouco factível que somente a participação de gente enfronhada no porto poderia executar. Mas como investigar dá muito trabalho, ou incômodo, os incautos leitores de A Tribuna mais uma vez ficaram sem conhecer os detalhes dessa cabeluda história.

Reivindicação atendida

Também, pudera, se nem as banalidades futebolísticas o jornal destrincha satisfatoriamente, e isso dando um baita desconto pelo tom provinciano da cobertura, ostensivamente favorável ao lídimo representante da cidade.

Puxar a brasa para a sardinha da casa até se perdoa, mas daí a compactuar com o verdadeiro feudo em que se transformou o famoso alvinegro da Vila Belmiro, há dez anos sob o jugo da família Teixeira, era de se imaginar que mais cedo ou mais tarde a outrora valorosa seção de esportes da casa acabaria passando pela humilhação de ser pautada por terceiros. No caso, pelo técnico Vanderlei Luxemburgo em pessoa, que em visita supostamente de cortesia à sede do jornal, aproveitou para xavecar sua bisonha direção no sentido de ampliar o apoio ao clube, como forma de valorizar as coisas da cidade. Não satisfeito e com a habitual desenvoltura, repetiu a exortação num discurso em plena redação, o qual – para consternação geral e por mais bizarras que soem as loas ao time e ao treinador mesmo em caso de derrotas e atuações claudicantes – vem sendo prontamente atendido.

Enfim, se há algo com que A Tribuna parece não se importar é de pagar micos como o de encher a bola de um treinador cuja fama não é segredo para ninguém, como se o leitor minimamente informado não rejeitasse os rótulos falsos impostos pela mídia de consumo.

Reverência e adulação

Mesmo em se tratando de ídolos de grande apelo popular, como Pelé e o próprio presidente Lula, não cabe à imprensa a aceitação tácita do que cada um representa ou tem a dizer, ainda mais nesses tempos de fama instantânea e efêmera.

Se não há como evitar que personagens de caráter duvidoso monopolizem o picadeiro, há que pelo menos questioná-los, exercitar o contraditório, lembrando, por exemplo, que o mesmo Pelé que hoje em dia vive deitando falação sobre isto e aquilo, não parou de fazer e falar besteira depois que deixou de jogar. Como ministro dos Esportes, apadrinhou a lei que legitimou a picaretagem explícita que nada de braçada em nosso futebol, e da qual bem que tentou se beneficiar, antes de ser passado para trás pelo sócio Helio Viana na empresa que, entre outras coisas, garfou 700 mil dólares do Unicef argentino. Sem falar na funesta administração da qual participou no final da década de 1990 no Santos, cuja direção acabou indiciada pela CPI do futebol por fraude e irregularidades contábeis que até hoje inibem os movimentos de oposição no clube.

Mas Pelé é Pelé em qualquer parte do mundo e se reverenciá-lo e adulá-lo fosse o único pecado de A Tribuna, ninguém iria atirar a primeira pedra. Ainda mais num país que não vê problemas na realpolitik, zynikpolik ou coisa que o valha, desde que não falte o pão e o circo nosso de cada dia. De mais a mais, há macunaímas para todos os gostos.

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Jornalista, Santos, SP