Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Novo round de uma rixa de quase 20 anos

A briga a que temos assistido nas últimas semanas entre Globo e Record não é nova. É mais um round de uma luta que teve início nos anos 90 no ringue da televisão e do poder que ela representa.

No último domingo (16/8), parte da programação da noite da TV Record foi dedicada à sua defesa e contra-ataque à sua rival. Foram apresentadas suspeitas contra o promotor do processo, denúncias sobre irregularidades nas transações financeiras da família Marinho e uma entrevista com o bispo Macedo. Contra a Globo, a reportagem da Record apresentou documentos que fazem parte de um processo sobre a compra da TV Paulista, nos anos 60, a primeira emissora de Roberto Marinho em São Paulo. Os documentos teriam sido fraudados pela Globo para esconder o fato de nunca ter havido uma compra real da TV paulista, mas sim, uma espécie de ‘aquisição amigável’ sem o controle dos órgãos públicos.

Outra denúncia contra a Globo se refere ao terreno (uma praça) ao lado de sua sede em São Paulo. A área pertence ao governo de São Paulo e a Globo administra o espaço; contudo, a área não está aberta ao público, logo, se é um espaço da cidade, não poderia estar tendo um uso privado. As demais denúncias apresentadas se referem aos mistérios que envolvem os empréstimos conseguidos pela Globo no BNDES e Caixa Econômica Federal.

Tentativa de desestabilização

O tom da matéria apresentada pela Record foi de ironia, procurando desqualificar as notícias veiculadas pela Globo a respeito da Igreja Universal do Reino de Deus. Desqualificar a idoneidade e credibilidade da Globo poderia, talvez ingenuamente, colocar em xeque uma das versões dos fatos que envolvem as denúncias que, na verdade, são do Ministério Público de São Paulo, e não da Rede Globo.

O Ministério Público apresentou denúncia contra os líderes da Igreja Universal do Reino de Deus pelo uso indevido dos recursos advindos dos fiéis. Por sua finalidade religiosa, a Universal possui isenção tributária, o que exige aplicação regrada do dinheiro, ou seja, o lucro não pode ser aplicado fora do âmbito da própria igreja.

Como explicar, então, a fortuna atribuída a Edir Macedo? Os altos investimentos realizados pela Rede Record?As contas que parecem existir no exterior? A explicação dada pelo líder da Universal, na entrevista concedida domingo passado, é de que seu dinheiro pessoal tem origem no salário que recebe da igreja e nos direitos autorais de suas obras. Sobre as denúncias referentes a valores investidos anualmente na Record e outras transações financeiras, a resposta do bispo Macedo é a mesma dos advogados da Universal: não há novidade alguma; as denúncias já foram julgadas pelo Supremo e arquivadas, logo, é um caso encerrado.

Para Edir Macedo, e para o editorial dos veículos pertencentes à Record, a insistência e o tempo dedicado pela Globo, alguns jornais e revistas a falar ‘contra’ a Igreja Universal tem o objetivo de atacar indiretamente a Rede Record. Não se trata de preconceito religioso contra os evangélicos ou a própria prática religiosa da Universal, mas uma tentativa de desestabilizar a Record num momento em que a TV tem alcançado elevados índices de audiência, conquistando até julho de 2009 um share de 17,5. Não parece muito, mas se levarmos em conta que em 2004 o share da Record era 9,6, o crescimento é nítido, enquanto que a Globo decresceu de 50,1 em 2004 para 40,8 em 2009.

Estagnada por quinze anos

Até onde vai o fôlego de Globo e Record nessa briga não é possível prever. Talvez, o limite desse ringue seja o quanto de informações do passado cada uma consiga trazer à tona e ao mesmo tempo esconder. Não é uma disputa de inocentes. Ambas têm a ganhar e a perder. Aquela que tiver mais a perder, será a primeira a jogar a toalha, ao menos por um tempo.

Parece, contudo, que naquilo que depender do bispo Macedo, segundo sua última frase na entrevista concedida ao Repórter Record, ainda teremos novos e emocionantes rounds. Além de dizer que deseja levar sua igreja para o Oriente e que a religião é o maior inimigo de Deus, o bispo disparou sua profecia: ‘Nós vamos arrebentar!’

Em artigo já publicado neste Observatório, apresentamos alguns elementos que compõem a história da Record. Convém relembrarmos alguns aspectos que nos ajudam a compreender melhor o momento atual.

A Record foi fundada em 1953 por Paulo Machado de Carvalho e João Batista do Amaral. Nos anos 60, os musicais da Record a colocaram em lugar de destaque na história. Nos anos 70, já em crise, João Batista do Amaral vendeu sua parte para o grupo Gerdau. Na família Machado de Carvalho, os herdeiros não se acertavam. Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o Tuta, grande mentor dos programas de sucesso da Record, saiu da emissora e comprou dos irmãos a Rádio Panamericana SA, em 1973. Os 50% da Gerdau foram vendidos a Laudelino Seixas, um fazendeiro paulista que repassou a empresa para o grupo Sílvio Santos em 1976. Por quase 15 anos a emissora ficou estagnada (por que Sílvio Santos investiria numa nova concorrente ao SBT, criado em 1981?).

‘Mude, assista e comprove’

Foi no início dos anos 90 que Sílvio Santos e a família Machado de Carvalho venderam a emissora para Edir Macedo. O impulso de renovação na emissora teve início em 1995 e, coincidentemente ou não, foi nessa época que a Globo começou a ‘atacar’ a Igreja Universal em seus telejornais e, como acreditam alguns, também pela minissérie Decadência, de Dias Gomes, que tinha como trama central a história um pastor que criou uma seita para tirar dinheiro de pessoas humildes e ingênuas. Edir Macedo acreditava ser um ataque pessoal. Através da igreja e da Record, desencadeou uma campanha contra Roberto Marinho que, em conversa com amigos, teria dito que nos próximos dez anos a Record seria a rede com maior potencial para ameaçar a Globo.

Em resposta à Decadência, a Record pensava em realizar uma minissérie intitulada Chantagem, contando a história de um ‘jornalista medíocre que herda um jornal falido e enriquece com corrupção ao se aliar com militares’. Tratava-se de uma afronta à história de Roberto Marinho.

Dez anos depois, talvez fazendo jus à profecia de Roberto Marinho, a Record estampou em jornais e revistas o anúncio de que estava a caminho da liderança:

‘A Record foi a emissora com maior crescimento de audiência em 2005, na faixa horária das 18h às 24h, com 44%, enquanto a emissora líder caiu 5% (…). O faturamento da Record cresceu 39,3%, três vezes mais que o da emissora líder. Em 2005, a Record foi a grande vencedora dos prêmios Esso e Embratel de jornalismo (…). A Record investiu em grandes lançamentos e contratou profissionais de destaque, como atores, diretores, escritores e jornalistas (…). A Record está presente em mais de 130 países. Em Portugal, a novela Escrava Isaura é líder de audiência (…). Em 2005, a Record fundou o Instituto Ressoar – Responsabilidade Social no Ar – mostrando que a emissora está preocupada com o bem-estar do povo brasileiro (…). O crescimento da Record está no ar. Mude, assista e comprove.’

Programação consistente

Com a expansão da Record, começaram vir à tona denúncias de irregularidades na compra da emissora pela Igreja Universal. Em 1989, a empresa não tinha dinheiro para pagar o 13º salário dos funcionários e possuía apenas três emissoras. Com a venda efetuada por Sílvio Santos e Paulo Machado de Carvalho, a sorte da emissora iria mudar, porém a Universal não tinha todo o dinheiro necessário para o pagamento. Foi então que, segundo reportagem da revista IstoÉ daquele ano, a igreja procurou Fernando Collor, a quem tinha apoiado nas eleições. Collor pediu que Paulo César Farias tratasse do assunto. Com a ajuda de PC, surgiu um financiamento que passou a ser investigado pela Receita Federal e Banco Central.

Desde 2007, a Record vem se tornando cada vez mais semelhante à Globo, não só esteticamente, mas também em termos de sua produção de conteúdo. São dezenas de jornalistas, atores, atrizes e técnicos oriundos da Globo que agora estão na emissora paulista. A audiência tem sido crescente e o futuro parece promissor. Embora não possamos afirmar que os processos que envolvem o financiamento dessa evolução sejam lícitos, ainda assim uma vantagem é expressiva, do ponto de vista da audiência: ganha o público com a consolidação de uma segunda emissora capaz de brigar pela audiência tendo uma programação mais consistente que o SBT e a Bandeirantes.

******

Jornalista, doutor em Comunicação, Porto Alegre, RS