Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ativismo de Padre Júlio Lancellotti

Foto: Mídia promocional do programa Entre o Céu e a Terra (TV Brasil)

A primeira vez que ouvi falar de Júlio Lancellotti (coordenador da Pastoral do povo de rua da Arquidiocese de São Paulo) foi assistindo à transmissão simultânea que um coletivo midiativista fazia de um ato, em 2014. Em verdade, tratava-se de um debate público — na acepção mais ampla da palavra, dado que o evento ocorria em uma via da cidade de São Paulo — no qual o padre fora convidado a falar acerca de questões sociais, em meio à efervescência dos protestos do #NãovaiterCopa.

Era impossível não ser impactado pelas palavras de Padre Júlio; pessoa de uma eloquência cativante. Os enunciados dele, por vezes, tocam nossos sentimentos e, em muitos casos, as mais legítimas emoções advêm na curva do que o linguista Patrick Charaudeau chamaria de efeito patêmico. A enunciação de Lancellotti, por sua vez, variando em razão dos contextos em que ele está inserido, públicos aos quais se dirige e suportes dos quais se vale ou é convidado, demonstra o domínio que ele tem da arte retórica/oratória; ele sabe bem para quem e onde fala e, logo, como deve se expressar.

Todavia, o mais importante: o discurso e a prática, no exercício do bem, são coesos e coerentes na vida desse emérito cidadão. São décadas de trabalho voltado para pessoas em situação de rua. Não sem motivos, passei a acompanhá-lo em redes sociais on-line, como muitos que não são de São Paulo o fazem. Vez ou outra, temos a oportunidade de assistir entrevistas dele para os mais variados programas televisivos e, novamente, sermos afetados por verdades que nos calam fundo.

Dias atrás — 02 de fevereiro —, voltei a vê-lo; dessa feita, não por suas palavras, mas por uma atitude muito repercutida. Padre Júlio denunciou a Prefeitura de São Paulo por ter instalado pedras debaixo de um viaduto. A ação que visava, aparentemente, impedir que pessoas em situação de rua se instalassem no local, recebeu diversas críticas e o poder público, assim, voltou atrás e mandou que a obra fosse desfeita. No dia em que profissionais designados para a retirada das pedras estiveram no local, Lancellotti foi conferir. Aliás, não se conteve e, de modo a ajudar na empreitada, pediu para que lhe emprestassem uma marreta.

Ver Júlio Lancelotti em tal ato, que ele mesmo classificou como simbólico, não causa estranhamento a quem conhece a luta dele; aliás, só confirma o que se espera. No entanto, a imagem de um padre — um senhor de 72 anos, diga-se de passagem —, com uma pesada marreta nas mãos, chamou a atenção. Dessa forma, os posts e vídeos relacionados foram, ao longo da semana, compartilhados, comentados, (re)tuitados, muito falados, repercutidos em diversas mídias e, enfim, fechando o domingo, chegaram até à revista semanal da Rede Globo de Televisão: o Fantástico.

O que se destaca diante da reportagem desse veículo — e por isso aqui ela é evidenciada — é o espaço que uma das principais emissoras brasileiras dá a um problema público que deveria fazer parte da pauta de todas as redações do país. Sabe-se que a causa das pessoas em situação de rua é complexa e exige comprometimento não apenas dos governos, mas, principalmente, da sociedade. No entanto, o que se vê, há muito, são estratégias de higienização social sendo adotadas por prefeituras Brasil afora. O tema, todavia, não ganha tanto espaço na agenda semanal dos telejornais. O Fantástico de 07 de fevereiro, contudo, em matéria conduzida por Giuliana Girardi, não apenas registra o fato (um padre marretando pedras), mas destaca os contornos do que o levou a emergir. Para tanto, focaliza uma das táticas de limpeza social: a noção de arquitetura hostil — instalações de diversos tipos que visam, precisamente, afastar as pessoas em situação de rua de locais em que são indesejadas.

São pouco mais de 7 minutos de uma reportagem que ajuda a humanizar, a refletir, a tomar consciência. É pouco, mas é um espaço de visibilidade conquistado a duras penas por Padre Júlio e que deve ser valorizado. A trajetória dele fala por si nesse sentido. Tim Jordan, autor que trata do conceito de ativismo, diria, talvez, que Lancellotti é um ativista na acepção mais ampla da palavra: sujeito altruísta que, consciente de seu papel na sociedade, empreende ações diretas pelo bem desta.

No entanto, evidentemente, a força da imagem, ao retratar o empunhar do grande malho e as pancadas dadas aos pedregulhos, sobressaiu. Naquele momento, Padre Júlio tinha razão ao dizer que aquele era um ato simbólico. Sua ação, ali, mobilizava significados e gerava efeitos e afetos em um público amplo e muito variado. Nas fotos e vídeos, via-se um representante do povo agindo pelo que é certo. No entanto, não era uma pessoa comum: era um padre. Para um grupo de intérpretes quaisquer — aqueles que leem e significam o ato —, valendo-se do senso comum, o signo linguístico “padre” poderia fazer remissões, por exemplo, a um papel (estereótipos a parte) muito localizado, de um sujeito com ocupações muito pontuais/definidas na igreja. Ver, então, esse mesmo sujeito no front é um choque, é uma quebra de expectativas, é, enfim, um acontecimento.

E, segundo o sociólogo francês Louis Quéré, nada melhor do que a emergência dos acontecimentos para se compreender campos problemáticos atrelados — e vice-versa. Todo um conjunto de questões sociais intrincadas dorme sob uma fina camada de apagamento e silenciamento, visando o esquecimento; entre elas, aquelas ligadas à causa das pessoas em situação de rua. Um acontecimento, todavia, é capaz de mudar o cenário, agitar a poeira e elevar os emaranhados sociais que não conseguimos resolver. Isso se dá, pois, na aparente ausência de sentidos que levariam um padre a uma atitude tão dissonante do que se espera dele, as dúvidas estimulam a reflexão, levam a identificar causas e consequências do ato, lançam olhares para o passado para compreender o presente e fazem uma busca que acaba por tocar nos campos problemáticos. Nesse ponto, o programa da Rede Globo traz uma boa contribuição — ainda que localizada, restrita e pontual.

O problema, no entanto, é o retorno à normalidade, à naturalização dos problemas públicos, em mais uma segunda-feira que nasce. Lancellotti, no entanto e por sua vez, fez e continuará a fazer o que cada um de nós deveria empreender diariamente. Recorrendo de forma ensaística à Semiótica, endossamos as palavras dele na representação às pedras, parte das tais questões citadas no parágrafo anterior. Os calhaus são muitos: “são da insensibilidade; da omissão; da violência; da deliberada maldade; da crueldade”. Cada marretada então ali era, por conseguinte, um golpe figurado, diria também emblemático, em todos esses problemas que se relacionam à vida daqueles que estão em situação de rua.

As pancadas dadas por Padre Júlio não deveriam, porém, chamar tanta a atenção e afetar sobremaneira os critérios de noticiabilidade. Tal atitude deveria, mais uma vez, ser comum para cada um dos sócios que somos todos na coletividade — e falo de forma indireta das várias e variadas pedras, como Lancellotti lembra na bela construção metafórica que fez. A proposta de intervenção, porém, ele indica ao fim da matéria: “como é que a gente pode quebrá-las? Fisicamente; dando uma marretada. Mas lutando, resistindo, insistindo, propondo, exigindo, fazendo pressão contra o poder público”. Que assim seja.

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Antônio Augusto Braighi é professor do Departamento de Linguagem e Tecnologia (Deltec) do Cefet-MG; Doutor em Estudos Linguísticos (UFMG).