Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O sensacionalismo no jornalismo esportivo

No dia 15/10, quarta-feira passada, podia-se ler numa chamada no Terra Esportes:

Vasco: Renato Gaúcho critica chileno

Abrindo a matéria, publicada às 7h55min, lia-se a manchete:

‘Renato Gaúcho reclama de chileno no Vasco’.

Logo na seqüência, o corpo do texto explicava: ‘O atacante Pinilla deixou o técnico Renato Gaúcho irritado após os trabalhos da última terça-feira, no Vasco-Barra […]. O jogador vinha sendo preparado para estrear no clássico deste domingo’. O final do texto esclarecia: ‘O chileno deixou o campo sentindo dor de cabeça e vomitando bastante. ‘Como posso contar com um jogador que depois de 20, 25 minutos de jogo, deixa o campo vomitando? É complicado’, reclamou Renato, sem disfarçar o mau humor.’

É tão óbvio que é quase desnecessário comentar: há uma defasagem imensa – para dizer o mínimo – entre, de um lado, o título na chamada e a manchete e, de outro, o teor no desdobramento do texto. Lendo todo o texto, finalmente ficamos sabendo que o treinador do time teria ficado mau-humorado porque o jogador que estava sendo preparado para estrear no time numa partida importante passou mal num treinamento, tendo dor de cabeça e vomitando muito. Portanto, o técnico se irritou com o que aconteceu, ou melhor ainda, com o possível obstáculo, imprevisto até então, referente à estréia do jogador na partida.

Preconceito ou xenofobia

‘Critica chileno’? ‘Reclama de chileno’? Não mesmo. O título na chamada e a manchete da reportagem preparam o leitor para entender errado a frase que inicia o texto: ‘O atacante […] deixou o técnico […] irritado’ significa efetivamente – como só na continuação da leitura o leitor pode compreender – que o treinador teria se irritado com o que ocorreu e com o aspecto ‘complicado’ decorrente, não com o jogador. Ainda: a matéria não faz referência alguma à possibilidade de a suposta manifestação de mau-humor do técnico ser, de fato, mais em função da má situação do time no campeonato do que propriamente em decorrência de qualquer aspecto diretamente relacionado ao que ocorreu com aquele jogador. O ‘é complicado’ dito pelo treinador parece mais se referir a conseguir tirar o time da má situação no campeonato, tanto contando quanto não contando com o jogador.

Duas possibilidades mutuamente excludentes: ou a chamada e a manchete foram ingenuamente mal redigidas ou as redações de ambas foram feitas dolosamente. No caso da segunda hipótese, três possibilidades que não se excluem: o procedimento sensacionalista pretende provocar a leitura da matéria, atiçando a curiosidade do leitor, ou expressa má-vontade com o treinador ou, ainda, expressa preconceito xenófobo (que a matéria poderia estupidamente pretender atribuir, num primeiro momento, ao técnico, o que incorreria também na hipótese anterior; mas fica claro que, se há xenofobia, não é do treinador).

Desserviço e desrespeito

Se a intenção é fazer o leitor ler a matéria toda a partir de chamada e manchete superficialmente espetaculares, então, se obtido, o efeito pretendido (a leitura) desmoraliza o procedimento. Fica patente, ao final da leitura, a desonestidade embutida no procedimento sensacionalista. O mais impressionante não é o caráter espetacular da manchete, mas é considerar que, na redação da empresa jornalística, os responsáveis [!] provavelmente devam se achar espertos. Devem achar também que o fato de, no final, o texto esclarecer o logro cometido sucessivas vezes no início faz com que nenhuma das vítimas do embuste (o técnico, o jogador estrangeiro e o leitor de maneira geral) possa reclamar ou criticar: equívoco deles. Enfim, explicações podem ser aventadas, mas não há justificativa para a flagrante e grosseira deturpação que existe entre o que disse o treinador e o que deixa sugerir o procedimento.

Em qualquer hipótese, o jornalismo nada ganha com algo tão mal feito. Engano ou enganação? Se tiver sido mero engano, mostra um imenso despreparo em exercer o trabalho; caso contrário, o procedimento foi preparado demais. De qualquer forma, o caso em questão pode ser expressivo de uma tendência de parcela considerável da imprensa em ser leviana. Desserviço ao jornalismo e desrespeito com o público – ou vice-versa.

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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP