Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As chagas sociais do Brasil

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Ninguém fez melhor pelo Orgulho LGBTQIAP+ do que Paulo Gustavo encarnando sua mãe que era uma peça. Estimulou até o âncora do GloboNews em Pauta, Marcelo Cosme, a se declarar no ar, no dia seguinte à morte do ator: “Paulo Gustavo abriu caminho para muitos gays (…) Ontem pensei nisso o dia todo, como me ajudou a falar com minha mãe”. Paulo Gustavo fazendo rir tocava fundo nas chagas sociais dos brasileiros.

Violentos assassinatos de gays e transexuais crescem no país onde Jair Bolsonaro disse à revista Playboy em junho de 2011 “prefiro um filho morto a um herdeiro gay” e levou a galhofa da foto da capa da Folha de S. Paulo. Era o então novo secretário Malhação de Cultura, Mário Frias, nu, com a manchete O Novo Homem do Presidente.

Socos, pedradas, pauladas, facadas, olhos perfurados, roupa introduzida no ânus, estes são os relatos de pessoas transgênero; só no ano passado foram registrados 175 assassinatos de mulheres transexuais. Em 2019 foram 124, segundo a ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil, e o IBTE, Instituto Brasileiro Trans de Educação. Eles são perseguidos nas ruas, nas escolas, apunhalados simplesmente por caminhar de mãos dadas.

Por isso a importância de cada vez mais pessoas saírem daquele armário que está ficando apertado demais, como aconteceu na quinta-feira, dia 24/6, com o escritor Bernardo Carvalho na entrevista ao Globo pelo lançamento de O Último Gozo do Mundo. Ao relatar seu desconforto com os alunos em aula sobre O Erotismo, de George Bataille, quando foi chamado de conservador, canalha, machista, tomou um calmante e a decisão de confessar: “Ser gay me ajudou, ou não ia abrir a boca”.

O Brasil não é um país seguro para LGBTQIAP +, já admitiu o diretor canadense Kimahli Powell, da ONG Rainbow Railroad para refugiados. E para não refugiados também: Bárbara Pastana, ativista do Pará, perdeu a guarda do filho ao postar na Internet a foto do filho com a peruca que colocou de brincadeira na Parada de Orgulho Gay de Belém este ano.

Por isso, a importância para esta comunidade de uma linguagem, ainda mal aceita pelo resto da sociedade, que troca as terminações identificadoras de gênero. O “a” ou “o” vira “e”, o que transforma um menino ou menina em “menine”. Redações de jornais já recebem releases com a saudação “bom dia para todxs”, como faz a jornalista Eliane Brum. E quem for ao restaurante Futuro Refeitório em Pinheiros, São Paulo, será recebido com saudações e cardápios nesta língua. Para o grupo é importante, mas na penúltima série de Método Kominski da Netflix, quando Morgan Freeman insistiu em usar num programa a terminação — que em inglês requer “they”, em vez de “he” ou “she” —, foi interpelado por Michael Douglas e explicou que foi forçado a dizer “essa bobagem” pelo diretor do programa.

Uma série da Netflix, As Telefonistas (Las Chicas del Cable), exibe o preconceito pelo amor de Carlota e Sara já na Espanha dos anos 1920, 30. Até hoje, relações entre homossexuais seguem como crime em 69 países. Países conservadores amigos de Bolsonaro, como a Polônia, insistem em leis anti-LGBTQIAP+. Mas Canadá, Alemanha, Dinamarca e Austrália já oferecem passaporte aos não binários (com x no lugar de gênero). Aos poucos, a Justiça vai autorizando aqui e ali pessoas não binárias a portar identidades com a inscrição “sexo não identificado”. No mundo, e no Brasil engatinhando, aumentam as iniciativas para inserir LGBTQIAPs+ no mercado de trabalho, com o slogan A Dignidade não tem Gênero.

Uma vitória foi a quantidade de pessoas transgênicas eleitas nas eleições de 2018 — que elegeram justamente Jair Bolsonaro, o transfóbico.

Chegamos hoje em 2021, Dia do Orgulho LGBTQIAP +, com preconceitos e uma polêmica em torno do Burger King que resolveu utilizar relatos de crianças de famílias trans na sua propaganda. Mas a comunidade está abrindo espaços. João do Rio, pseudônimo do famoso cronista João Paulo Emíio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), era o alvo perfeito para ataques no Rio de Janeiro do começo do século passado, por ser negro, gordo e homossexual. Mas hoje, a Coordenadoria de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio queria inaugurar uma placa em homenagem a este ícone gay na Associação Brasileira de Imprensa. Valeu o empenho, que só não se concretizou porque o prédio é tombado.

Hoje não vão faltar homenagens na data que marcou em 1969 a Revolta de Stonewall em Nova York quando a comunidade LGBTQIAP+ reagiu aos constantes ataques policiais ao bar que era point dos homossexuais e transexuais. Daniela Mercury vai fazer uma live cantando Eu Sou Tua Esposa que fez para celebrar o casamento no civil com a jornalista Malu Verçosa, há oito anos. Lulu Santos canta Toda Forma de Amor num clipe, e ainda tem lives de Zélia Duncan, Diogo Nogueira, Adriana Calcanhoto, o grupo Calcinha Preta…

Tem homenagens à poeta Safo, nascida há 2.600 anos, que se tornou ícone LGBTQIAP+ por ensinar mulheres a entender seus desejos não aceitos. E a Fernando Pessoa, pelos poemas homoeróticos como Antinoo e Daisy: “Contar àquele pobre rapazito / que me deu tantas horas tão felizes”. O poeta português é reconhecido e negado, na mesma proporção, como homossexual.

A comunidade ganhou espaços impensáveis noutras épocas, como a página inteira colorida no Globo deste sábado 26/6, com a frase “Se o Orgulho LGBTQIAP+ Não Foi Ouvido Pelas Ruas Esse Ano, Agora Ele Pode Ser Lido”.

E hoje no Globo, além de uma sobrecapa, dois cadernos inteiros somando 22 páginas, “Contra Qualquer preconceito, Vigore!” e “28 de Junho, Um Dia de Orgulho”.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).