Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra das palavras

Ler e ouvir diariamente, por dever de ofício, dezenas de notícias policiais é desagradável não só pelas crianças feridas e pelo número absurdo de mortos – foram assassinadas no Estado do Rio, entre janeiro e setembro deste ano, 4.460 pessoas. Dói também a torpeza do estilo.

A banalização dos conflitos levou a imprensa a aplicar frases feitas que lhe são passadas pelas fontes da polícia, as únicas disponíveis ou procuradas. Sem minimizar as dificuldades das forças de segurança, seguem algumas tentativas de tradução:

** ‘Os policiais faziam um patrulhamento de rotina na favela X’ – Não há patrulhamento de rotina em favelas onde há traficantes armados. Por segurança, só entram em grandes grupos. Ou então, para fazer negócio com os traficantes, como cobrar o arreglo – procedimento conhecido como ‘mineirar’.

** ‘Os policiais foram recebidos a tiros pelos traficantes’ – Se estão entrando para combatê-los, não estranha que sejam recebidos assim. É a infeliz lógica de guerra. Com frequência, como diz outra expressão clichê, ‘entram atirando’. Crianças e idosos costumam ser surpreendidos nesses casos pelas chamadas balas perdidas.

** ‘X bandidos morreram na operação’ – Pretos, pobres e mal vestidos são, a priori, bandidos, mesmo que não se saibam os nomes e se têm fichas policiais. Se familiares e moradores ‘fecham a avenida X para protestar com paus e pedras contra a polícia’, desconfia-se que algum inocente tenha morrido.

** ‘Deu entrada no hospital X, mas não resistiu aos ferimentos’ – Foi morto no confronto, mas não convém deixar o corpo para eventuais perícias –ainda que improváveis – ou queixas de parentes.

** ‘Será aberta uma sindicância para apurar as responsabilidades dos policiais’ – Nada acontecerá.

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Jornalista