Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia realmente tem o poder de manipular as pessoas?

À primeira vista, a resposta para a pergunta que intitula este artigo parece simples e óbvia: sim, a mídia é um poderoso instrumento de manipulação. A ideia de que o frágil cidadão comum é onipotente frente aos gigantescos e poderosos conglomerados da comunicação é bastante atrativa intelectualmente. Influentes nomes, como Adorno e Horkheimer, os primeiros pensadores a realizar análises mais sistemáticas sobre o tema, concluíram que os meios de comunicação em larga escala moldavam e direcionavam as opiniões de seus receptores. Segundo eles, o rádio torna todos os ouvintes iguais ao sujeitá-los, autoritariamente, aos idênticos programas das várias estações. No livro Televisão e Consciência de Classe, Sarah Chucid Da Viá afirma que o vídeo apresenta um conjunto de imagens trabalhadas, cuja apreensão é momentânea, de forma a persuadir rápida e transitoriamente o grande público. Por sua vez, o psicólogo social Gustav Le Bon considerava que, nas massas, o indivíduo deixava de ser ele próprio para ser um autômato sem vontade e os juízos aceitos pelas multidões seriam sempre impostos e nunca discutidos. Assim, fomentou-se a concepção de que a mídia seria capaz de manipular incondicionalmente uma audiência submissa, passiva e acrítica.

Todavia, como bons cidadãos céticos, devemos duvidar (ou ao menos manter certa ressalva) de preposições imediatistas e aparentemente fáceis. As relações entre mídia e público são demasiadamente complexas, vão muito além de uma simples análise behaviorista de estímulo/resposta. As mensagens transmitidas pelos grandes veículos de comunicação não são recebidas automaticamente e da mesma maneira por todos os indivíduos. Na maioria das vezes, o discurso midiático perde seu significado original na controversa relação emissor/receptor. Cada indivíduo está envolto em uma “bolha ideológica”, apanágio de seu próprio processo de individuação, que condiciona sua maneira de interpretar e agir sobre o mundo. Todos nós, ao entramos em contato com o mundo exterior, construímos representações sobre a realidade. Cada um de nós forma juízos de valor a respeito dos vários âmbitos do real, seus personagens, acontecimentos e fenômenos e, consequentemente, acreditamos que esses juízos correspondem à “verdade”.

Dificilmente um sujeito de esquerda deixará de apresentar o mesmo posicionamento político após ler uma matéria na revista Veja, ou um direitista mudará suas ideias ao entrar em contato com publicações como CartaCapital e Caros Amigos. Um parâmetro de conduta hegemônico não surge apenas pela visibilidade midiática. Todas as ideias esboçadas nos meios de comunicação provêm de mecanismos psicológicos já existentes alhures. A onda de “linchamentos” ocorrida ano passado não foi consequência exclusiva dos programas policialescos ou dos discursos inflamados da apresentadora Rachel Sherazade, como equivocadamente interpretaram alguns. Nesse caso, os setores sensacionalistas da mídia somente reverberaram e reproduziram em larga escala preconceitos e ações que remetem aos primórdios da civilização (“justiça com as próprias mãos”, “olho por olho, dente por dente”) ou estão na sociedade brasileira há séculos (a imagem de um negro acorrentado a um poste nos faz lembrar o período escravocrata).

Mídia não manipula, mas sugere pautas

Por outro lado, a enxurrada de informações presentes em um telejornal, por exemplo, faz com que a retenção de conteúdo midiático por parte do telespectador seja muito baixa. O estudo intitulado The Attention Factor in Recalling Network Television News revelou que mesmo um grupo composto por pessoas de bom nível educacional (às quais se pediu que prestassem atenção especial ao noticiário de uma noite específica na televisão) não foi capaz de recordar 25% das matérias assistidas apenas alguns minutos depois de encerrada a emissão, o que nos leva a considerar que a maioria das informações transmitidas por um telejornal não fica retida na mente dos telespectadores nem por uns poucos minutos.

Não obstante, a mídia é apenas um, entre vários quadros ou grupos de referência, aos quais um indivíduo recorre como argumento para formular suas opiniões. Nesse sentido, competem com os veículos de comunicação como quadros ou grupos de referência fatores subjetivos/psicológicos (história familiar, trajetória pessoal, predisposição intelectual), o contexto social (renda, sexo, idade, grau de instrução, etnia, religião) e o ambiente informacional (associação comunitária, trabalho, igreja). “Os vários tipos de receptor situam-se numa complexa rede de referências em que a comunicação interpessoal e a midiática se completam e modificam”, afirmou a cientista social Alessandra Aldé em seu livro A construção da política: democracia, cidadania e meios de comunicação de massa. Evidentemente, o peso de cada quadro de referência tende a variar de acordo com a realidade individual. Seguindo essa linha de raciocínio, no original estudo Muito Além do Jardim Botânico, Carlos Eduardo Lins da Silva constatou como telespectadores do Jornal Nacional acionam seus mecanismos de defesa, individuais ou coletivos, para filtrar as informações veiculadas, traduzindo-as segundo seus próprios valores. “A síntese e as conclusões que um telespectador vai realizar depois de assistir a um telejornal não podem ser antecipadas por ninguém; nem por quem produziu o telejornal, nem por quem assistiu ao mesmo tempo que aquele telespectador”, inferiu Carlos Eduardo.

Recorrendo ao pensamento de Saussure, é importante ressaltar que o cidadão comum não tem o domínio completo da estrutura linguística. Até um analfabeto funcional não representa um alvo completamente vulnerável à persuasão midiática, pois suas próprias dificuldades interpretativas o impedem de replicar fielmente qualquer tipo de discurso ideológico que seja oriundo dos meios de comunicação em larga escala. Como bem asseverou Muniz Sodré, a mídia não manipula, mas sugere determinadas pautas e, em última instância, cabe aos seus receptores aceitarem ou não. Os grandes veículos de comunicação podem até ter expectativas manipuladoras ou idealizar um modelo de público, mas a recepção de um enunciado sempre vai ser individualizada e recriada pelo sujeito.

Ganhar visibilidade e ser conhecido

Portanto, é extremamente reducionista afirmar categoricamente que o discurso midiático será automaticamente absorvido pelos seus receptores. À medida que melhoram os índices de instrução da população em geral e aumentam os pontos de vista alternativos ao status quo (como as redes sociais), a influência da mídia hegemônica tende a diminuir. Também não devemos deixar de mencionar que os trabalhos de Adorno e Horkheimer citados anteriormente contextualizam-se na onda de pessimismo acadêmico diante do êxito da propaganda ideológica nazista junto à população alemã.

Em suma, os atuais estudos sobre recepção ou audiência substituíram as clássicas concepções dos meios de comunicação como todo-poderosos, que atribui os efeitos da comunicação via mídia exclusivamente à ação do emissor sobre o receptor, pela ênfase na capacidade interpretativa do receptor, que pode modificar o significado das mensagens de acordo com suas próprias contingências. Ademais, afirmar que uma pessoa absorve passivamente o conteúdo midiático é negligenciar o próprio processo evolutivo que, ao longo de milhões de anos, dotou o ser humano de um cérebro que lhe propiciou uma postura reflexiva frente à existência.

Feitas as devidas observações sobre o tema manipulação midiática, um outro questionamento torna-se inevitável: ao relativizar a influência da mídia nas escolhas dos cidadãos comuns, podemos inferir que os conteúdos presentes nos grandes veículos de comunicação são neutros? Absolutamente, sem titubear, a resposta é negativa. Seria ingenuidade intelectual pensar o contrário. Não existe discurso despretensioso. Consequentemente, é quimérico exigir total imparcialidade para um jornalista, por exemplo. Décadas atrás, Bakhtin já nos alertava que todo emprego de signo é ideológico e todo recorte do real envolve julgamento. Para Bourdieu, um bom cidadão crítico deve considerar os jogos de poder e interesse que estão por trás dos grandes veículos da imprensa. A mídia influencia e também é influenciada por outros campos (política, economia, ciência, religião). Se, conforme o abordado anteriormente, podemos salientar que a mídia não manipula automaticamente o cidadão comum, isso não nos impede de asseverar que os veículos de comunicação em larga escala podem nortear as conversações cotidianas, contribuir para criar modismos e tendências ou alterar a agenda política de uma nação. Basta ressaltar que para uma determinada causa política ganhar visibilidade e ser do conhecimento de milhões de pessoas, deve passar, inevitavelmente, pelo prisma midiático.

Mídia condiciona e é condicionada por outras áreas

Em uma sociedade capitalista como a nossa o conteúdo presente nos grandes meios de comunicação condiz aos interesses das classes dominantes. Sendo assim, a maior parte das mensagens transmitidas é ideologizada pelas elites. Mensagens estas que serão mais bem sucedidas à medida que o cidadão comum não se dê conta de seu caráter ideológico. Em outros termos, conforme enfatizou o pensador esloveno Slavoj Žižek, a mediação ideológica atinge os fins colimados quando as pessoas não a percebem.

Não há como negar que a mídia ocupa um papel importante na sociedade contemporânea. Entretanto, no Brasil, os grandes veículos de comunicação estão concentrados nas mãos de apenas onze famílias que, embora não tenham o mesmo poder e influência de outras épocas, ainda decidem que tipo de informação a maioria dos brasileiros deve receber e quais não devem, por não terem relevância jornalística ou por não atraírem o interesse do público consumidor. Desse modo, para que a mídia possa contemplar a pluralidade de ideias ou, como sugeriu Jürgen Habermas, aproximar-se de ser um mecanismo privilegiado da esfera pública que gere visibilidade para as demandas de diferentes grupos, é necessário que, questões como a democratização dos meios de comunicação, restrição de propriedades cruzadas de veículos midiáticos, regulamentação da programação e o incentivo ao surgimento de rádios comunitárias sejam colocadas em pauta. Por outro lado, é importante salientar que as mudanças no âmbito dos meios de comunicação de massa, isoladamente, não alteram a realidade. Utilizando um termo marxiano, a mídia não é uma infraestrutura que determina outras instâncias sociais. É inócuo pensar em uma melhor qualidade da programação midiática, por exemplo, sem fomentar uma organização social composta por cidadãos que tenham amplas possibilidades de desenvolver pensamentos críticos ou que não precisem se preocupar com questões básicas da existência. Portanto, levando-se em consideração que a mídia condiciona e é condicionada por outras áreas, não faz sentido algum falar em melhorias no sistema de comunicação em larga escala sem propor um projeto sólido de mudança global da sociedade.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG