Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo contra si

Foto: Freestockcenter

O jornalismo sempre cumpriu um papel fundamental na democracia liberal. A função de fiscalizar o governo e forçar a transparência dos atos públicos é responsável pela noção de quarto poder. Nesse papel, há também o compromisso de estimular o debate público ao dar visibilidade para as correntes políticas em disputa. A crise da democracia liberal implica, assim, em uma crise também para o jornalismo.

Como aponta Miguel (2019), um dos elementos que compõem o cenário da crise da democracia é a mudança no ambiente informacional, com a presença cada vez mais importante de notícias falsas, disseminadas por sistemas alternativos de comunicação, que fortalecem o sentimento de pertencimento a grupos políticos rivais. Aliada a isso, a ascensão das chamadas fake news minou ambas as funções do jornalismo (fiscalização do governo e estímulo ao debate público) e comprometeu o desempenho da democracia liberal.

No Brasil, o problema se agrava com a polarização política, a partir de 2013, passando pelas eleições de 2014, pelo impeachment em 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018. Ainda segundo o autor, nos episódios do impeachment e da operação Lava Jato, os meios de comunicação de massa acabaram por contribuir para a cultura da desinformação, na medida em que criaram a falsa equivalência entre dois lados da disputa, que não eram igualmente legítimos.

A crise do jornalismo é geralmente tratada pelo viés econômico e tecnológico. O modelo comercial do jornalismo sempre dependeu do financiamento da publicidade; com as plataformas digitais e a migração da atividade para esse suporte, a sobrevivência financeira depende da circulação que a notícia alcança, a partir de critérios de visualizações, o que atinge a qualidade do conteúdo — gerando aí outro problema. A crise de qualidade se dá, entre outras coisas, porque o conteúdo final oferecido ao leitor é precário. O profissional precisa não apenas apurar, redigir e revisar o texto, mas também encaixar na sua rotina profissional etapas que envolvem pensar em como apresentar o material jornalístico para que ele se torne mais atraente e chame a atenção do leitor, gerando o clique; ao mesmo tempo que atenda os critérios de distribuição de conteúdo que plataformas como o Facebook e Google estipulam. Além disso, ainda é cobrado pelas métricas de audiência que aquele conteúdo gerou. Portanto, a partir do momento que se tem condições de medir aquilo que o público prefere, de fato, consumir, já não importa tanto se a informação é verdadeira ou verificada, desde que atinja um elevado número de views e/ou compartilhamentos.

Do ponto de vista teórico, em vez de debater as mudanças estruturais do jornalismo a partir deste novo cenário, a maioria dos trabalhos se concentra em observar as potencialidades tecnológicas oferecidas pela internet a partir da perspectiva de convergência e da inovação, pensando mais na forma do que no conteúdo das produções jornalísticas. Não que essas perspectivas não sejam importantes, mas também é necessário refletir sobre essas mudanças sob a ótica da desestruturação do lugar privilegiado que o jornalismo ocupava, o de ser a fonte central de fornecimento de informações confiáveis para o cidadão.

O jornalismo voltado a um público indiferenciado, baseado no modelo tradicional de jornalismo independente norte-americano, encontra dificuldades para se manter. Para Lycarião, Albuquerque e Magalhães (2018), esse padrão “catch-all” privilegia uma parcela de cidadãos sem identificação ideológica explícita. Os autores observam o surgimento de um padrão contrário, com tendências de identificação ideológica e por conteúdo “enviesado” (biased) com relação a diversos produtos da mídia noticiosa. Um exemplo dessa virada está na Gazeta do Povo, jornal centenário de circulação regional que encerra produção impressa em 2017, e se vende como digital nacional com orientação editorial claramente conservadora, explorando o nicho criado pela polarização política. Desde essa “virada à direita”, a Gazeta do Povo se intitula como o jornalismo que tem lado — e neste caso, é o conservador — e já foi protagonista de diversos casos polêmicos, como o Monitor da Doutrinação.

Em relação à democracia, as consequências desse “novo jornalismo” levam, segundo os autores, a um aumento da polarização política (deterioração do centro político) e uma expansão vertiginosa da oferta de novos produtos no mercado de mídia (preferência por produtos de entretenimento do que por notícias; e de conteúdos que reforcem o seu posicionamento pessoal). Eles apontam que o antipetismo do noticiário, do Mensalão, Lava Jato até o impeachment, contribuiu para construir uma narrativa de corrupção atrelada aos governos do PT capaz de agradar e fundamentar o sentimento antipartidário que crescia em meio a uma parcela significativa da opinião pública.

15 anos de jornalismo político

Para entender como a relação entre jornalismo e política chegou até aqui no Brasil, vale observar como esses acontecimentos foram tratados nos 15 anos de encontros bianuais da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica), especialmente no grupo de trabalho (GT) Jornalismo Político, instituído em 2011.

Sem um GT específico, os trabalhos sobre jornalismo político e jornalismo e política acompanharam as discussões centrais na política brasileira desde 2006, quando a Associação foi criada. O primeiro acontecimento marcante que recebeu registro foi o Mensalão — denúncia de repasses de fundos de empresas ao PT, transferidos a parlamentares em troca de apoio ao governo de Lula. Desde o início, os pesquisadores apontavam para a construção pelo jornalismo do escândalo midiático, que tende a destacar o fato de suas origens e apresentá-lo como um “caso” com seus personagens. Começava ali, indicavam as pesquisas, a criminalização da política pelos grandes jornais e emissoras de TV. Esse comportamento tornou-se padrão na cobertura da ação penal 470, instituída pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar os envolvidos no mensalão e do julgamento propriamente dito em 2012. Nesse último momento, a figura de Joaquim Barbosa, presidente do STF, ganha proeminência, quando deu sequência às prisões do então presidente do PT, José Genoíno, e do ex-ministro da Casa Civil de Lula, José Dirceu.

Em geral, a cobertura jornalística tende a tratar esse tipo de acontecimento como decorrência de um desvio de caráter de políticos; ao localizar esse desvio num partido, o jornalismo brasileiro alimentou o que mais tarde seria nomeado como antipetismo, elemento importante em outro processo político: o impeachment de Dilma Rousseff.

Uma vertente forte na pesquisa está voltada para a análise do comportamento do jornalismo na cobertura das eleições. Na interface com o marketing político, houve e ainda há estudos sobre campanhas e como o jornalismo apresenta as candidaturas. Aqui entram os trabalhos sobre formação da opinião pública no Brasil via preferência de voto. Nesses estão presentes aqueles aspectos relacionados aos escândalos midiáticos que reverberam tanto nas campanhas eleitorais como no tratamento jornalístico dado a elas.

Na medida em que esses estudos se tornavam mais presentes nos encontros da Associação, um grupo vai tomando forma a partir de 2009, com a criação de uma seção de Jornalismo Político, quando a pesquisa passa a valorizar linguagens específicas dos diferentes meios de comunicação, principalmente as revistas semanais. Com a instituição do GT em 2011, a discussão passa a abordar questões mais estruturais como a relação entre campo político e campo jornalístico na construção dos acontecimentos. A representação da política pelo jornalismo se torna, no GT, fundamental para todas as pesquisas que pretendem compreender os rumos da política brasileira.

A partir de 2013, além do julgamento do mensalão no STF, entra na agenda o papel das redes sociais na eleição de Barack Obama em 2008, as campanhas nos ambientes digitais e a ação política da chamada blogosfera e, com ela, uma reconfiguração da atividade jornalística para além das redações e a repercussão disso no ecossistema midiático. A partir de 2015, a pauta da corrupção passa a ser objeto de análise dos pesquisadores, com estudos de enquadramento noticioso que procuram mostrar os vieses não explícitos das coberturas jornalísticas. O processo de impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, torna-se um objeto privilegiado de análise, na medida em que mobiliza várias frentes de pesquisa: o posicionamento da imprensa brasileira, principalmente a partir dos editoriais, em relação ao pedido de afastamento da ex-presidente; as imagens produzidas pelo fotojornalismo; as mobilizações nas redes digitais; além dos tradicionais estudos de cobertura, mas agora voltados para questões de media effects e consequências para a democracia brasileira.

Outro tema tratado em muitos trabalhos foi a eleição de Jair Bolsonaro (então PSL) em 2018, com análises sobre a campanha, marcada pelo fenômeno das fake news e do WhatsApp como ferramenta de (des)informação, o julgamento e a prisão de Lula e seu consequente afastamento da disputa eleitoral, estimulados pela judicialização da política e da apologia à operação Lava Jato, e também o clima de terra arrasada no primeiro ano do governo.

Esse cenário é explorado na última edição do encontro (2021), quando predominou a discussão sobre a crise do jornalismo e a crise da democracia como fenômenos correlatos, com trabalhos sobre negacionismo científico — especialmente em relação à pandemia por coronavírus e aos movimentos antivacina —, sobre a ascensão da direita populista e sobre movimentos ideológicos endossados pela narrativa jornalística como o lulopetismo.

Diante de tantas possibilidades de abordagem teórica e metodológica, parece haver um consenso entre os pesquisadores associados à Compolítica: a necessidade de estudar como o jornalismo se relaciona intimamente com os contextos políticos. Uma indicação é a crítica do efeito normalizador que o jornalismo tem produzido sobre os grandes debates nacionais. Ao apresentar ameaças à democracia como trivialidades do sistema político, o jornalismo contribui para uma leitura da política como um campo separado da experiência dos cidadãos, habitado por pessoas necessariamente mal-intencionadas. Com isso, alimentam um sentimento antipolítica na sociedade, já atravessada pela polarização política, o que abre espaço para discursos de desqualificação das instituições democráticas. Se o jornalismo é uma delas, ao se comportar assim, a partir de um alegado distanciamento ideológico, essa antipolítica atinge o próprio jornalismo, caracterizando um paradoxal tiro no pé.

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As professoras Kelly Prudẽncio e Camilla Tavares coordenam o GT de Jornalismo Político da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política – Compolítica

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Referências

LYCARIÃO, D.; MAGALHÃES, E.; ALBUQUERQUE, A. (2018) Noticiário “objetivo” em liquidação: a decadência do padrão “catch-all” na mídia comercial. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/28384/0

MIGUEL, L. F. (2019) Jornalismo, polarização política e a querela das fake news https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/1984-6924.2019v16n2p46