Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O poder de um jornal

O imbróglio provocado pelas pingas ou doses de uísque que Lula costuma tomar, moderadamente ou em excesso, conforme reportagem assinada pelo jornalista Larry Rohter, correspondente no Brasil do New York Times, e que quase terminou com sua expulsão do país, poderia ter outro desfecho. E a imagem do Brasil não sairia arranhada.

Se os assessores do presidente da República, autores dessa medida absurda, soubessem o mínimo da história e do prestígio daquele jornal e a importância da imprensa para democracia, teriam evitado o vexame.

Esqueceram-se os ‘companheiros’ jornalistas André Singer e Luiz Gushiken que a imprensa continua um dos pilares da democracia, e que só em países em que impera a ditadura, como em Cuba, prende-se e se expulsa quem está a serviço da notícia. Havia outros meios de tratar a situação, como de fato acabou acontecendo. Ainda bem que o bom senso funcionou.

O repórter pediu desculpas, o governo aceitou, mas o NYT ficou na dele. O ex-presidente Fernando Collor, desrespeitado pelo Sunday Times, de Londres, ao ser apelidado de ‘Capitão Marvel’, e sua mulher de ‘Boneca Barbie’, agiu corretamente. Apelou à Justiça e saiu vitorioso, inclusive recebendo pedido de desculpas e indenização. Ao repensar o ato, o Brasil recusou-se a engrossar a lista de países autocráticos que perseguem jornalistas.

A história do New York Times, criado em 1851, logo, há 153 anos, é feita com exagerado respeito ao passado. A figura do antigo proprietário, Adolph Ochs, que o adquiriu a partir de 1895, aos 38 anos de idade, é venerada, como exemplo de dinamismo e modernidade. As recomendações e a filosofia implantada por ele são seguidas com fervor quase religioso. Parecem ressoar nos 14 andares do prédio, onde se acha localizado o jornal, na Rua 43, próximo da Broadway, em Nova York. Eis seu slogan desde 1896: ‘Todas notícias dignas de publicação’.

Ochs queria um jornal capaz de ter semelhança com uma mesa de café, na qual ‘não se maculasse a toalha da manhã’. As idéias empregadas para obter um produto de qualidade incluíam imparcialidade, noticiário completo, escrito de forma concisa, atraente, com linguagem polida, e saindo mais cedo. Ele, que fez de tudo em jornal, inclusive lavar o chão, transformou-se num jornalista respeitado. Não abriu mão das inovações.

Repórter infeliz

Eis a fórmula adotada por Ochs, a qual foi se aperfeiçoando, de acordo com as mudanças da sociedade e as exigências do leitor. The New York Times é a mais sólida instituição familiar dos Estados Unidos. Os descendentes continuam participando ou influenciando no seu destino. Nenhum governo quis briga com o jornal. Sempre que os presidentes daquele país são convidados para uma cerimônia ou entrevista, na sua sede, comparecem. Houve casos em que o jornal foi consultado pelo governo sobre a nomeação de algumas autoridades. Lyndon Johnson tinha um telefone direto com o comando do NYTimes. John Kennedy, que estudou Jornalismo, trabalhou por duas vezes no órgão.

O jornal tornou-se famoso não apenas pelos furos de reportagens. Na tragédia do Titanic esteve à frente dos acontecimentos. Abocanhou uma centena do mais famoso prêmio de jornalismo do mundo, o Pulitzer. Por diversas vezes envolveu-se em processos, por crimes de informação, saindo-se quase sempre vitorioso, ao alegar o espírito da Primeira Emenda à Constituição americana. O mais famoso dos processos travado com o governo diz respeito à publicação de documentos secretos do Pentágono, sobre a Guerra do Vietnã. No momento de baixa, passou pelo jornal um repórter-mentiroso, Jayson Blair, o qual fez uma série de reportagens com pessoas e situações falsas. Perdeu o emprego e o conceito profissional. Para um jornal que prima pela verdade, que não admite ‘foca’ (iniciante) e exige que os candidatos à redação tenham experiência e nunca idade inferior a 30 anos, foi um golpe duro.

O New York Times é conhecido pelo primor do texto jornalístico. Tornou-se numa bíblia e referência para o mundo, pelo prestígio. Corre a lenda que uma notícia só adquire status depois de publicada em suas páginas. O jornal tem milhares de anunciantes, o que lhe dá independência econômica e política. Chega a esnobar certos anúncios de milhares de dólares, e ainda se acha no direito de criticar algumas dessas propagandas, quando se trata de empreendimento que provoque danos ao meio ambiente ou produtos com defeito. A General Motors sofreu esse problema. Teve o direito de espernear, apenas. Sentir-se com tanto poder, às vezes, termina em abuso. Larry Rohter caiu nesse abismo, principalmente por renunciar a um princípio elementar do jornalismo: ouvir os dois lados.

Custava o repórter perguntar ao presidente sobre o seu antigo hábito de tomar ‘umas e outras’? Foi aí o grande erro. [Nota do OI: o repórter procurou o Palácio do Planalto por e-mail, e recebeu resposta curta negando o problema de bebida do presidente]. Lula teria dito, sem o menor constrangimento, que sempre gostou de umas doses, mas nunca chegou ao extremo da carraspana. O repórter foi infeliz ainda quando se baseou só em informações de quem não simpatiza com o governo Lula. Deu no que deu.

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Professor universitário, jornalista e escritor