Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O Waterloo da mídia nos EUA

Quando se completaram três anos do ataque militar, invasão e ocupação do Iraque pelas tropas americanas – acolitadas pelo decadente Império Britânico e meia dúzia de gatos pingados submissos, entre os quais Espanha e Itália, que pouco tempo depois arrependeram-se publicamente – a organização FAIR (sigla de Honestidade e Precisão na Reportagem) recordou a cumplicidade dos meios de comunicação com a ação arrogante do governo dos EUA.


Para pessoas submetidas à dieta jornalística americana, como era o meu caso naqueles dias, foi um momento histórico difícil de esquecer, pela subserviência dos profissionais de mídia. A encenação da derrubada da estátua de Saddam Hussein em Bagdá funcionou como uma espécie de senha para o espetáculo melancólico a que aderiram até organizações jornalísticas cujo passado autorizava esperar delas um mínimo de dignidade e profissionalização.


A data do início da guerra lançada por Bush contra o Iraque, claro, foi 19 de março – há seis anos. E o pretexto, as inexistentes armas de destruição em massa (ADM). Quase três anos e meio depois, repassei aos leitores aqui alguns dos registros da FAIR. Começando pela Fox News do império do magnata Rupert Murdoch – um australiano de nascimento que se naturalizou americano (talvez o mais patrioteiro deles) para ter o direito de ser dono de rede de TV nos EUA.


Os sábios que nada sabem


O então diretor da sucursal da Fox News em Washington – Brit Hume, substituído em 2009 à frente do Special Report, principal programa jornalístico diário da rede – atacou dias depois os críticos da invasão sob a alegação de que nada do que previam se confirmara. ‘Erraram completamente em tudo’, pontificou Hume. Quatro semanas depois, a Fox e o resto batiam de novo na mesma tecla, ao festejar o final da guerra – declarado pomposamente por Bush


A 1º de maio Bush vestira sua fantasia de piloto de guerra (o que nunca foi, pois perdera a oportunidade ao fugir da guerra do Vietnã) para desembarcar de um jato militar no porta-aviões Abraham Lincoln. Só havia então baixas reduzidas nas tropas dos EUA – uns poucos americanos tinham morrido. Sob a faixa ‘Missão cumprida’, ele declarou naquele momento que estavam encerradas ‘as grandes operações da guerra’.


A Fox News e Hume chegaram ao orgasmo. Tony Snow – então comentarista menor da rede, depois porta-voz oficial da Casa Branca – afirmou: ‘As forças da coalizão demonstraram o velho axioma de que a firmeza no campo de batalha produz vitória rápida e com derramamento de sangue relativamente pequeno. O Iraque destroçou totalmente as críticas dos céticos’. Nos meses e anos seguintes ao suposto fim da guerra o total de soldados americanos mortos elevou-se a 4.260. Mais de 30 mil ficaram aleijados, gravemente feridos ou mentalmente incapazes (e os civis iraquianos mortos ficaram entre 600 mil a 1 milhão).


Outro favorito da Fox – o comentarista neocon Charles Krauthammer, tido como um dos ideólogos da guerra – foi ainda mais longe ao festejar o suposto final do conflito ainda em abril de 2003, antes de Bush. ‘As únicas pessoas que pensam que ainda não ganhamos a guerra são os liberais do Upper West Side (de Nova York) e uns poucos aqui em Washington’, disse. Fred Barnes, colega dele na Fox, completou: ‘Difícil foi montar a coalizão e transportar 300 mil soldados. Instalar democracia não é difícil como ganhar uma guerra’.


‘Um herói como presidente’


Até supostos ‘liberais’ da Fox (comentaristas que assumiam esse papel para a rede alegar que reflete opiniões contra e a favor), como Morton Kondracke, Jeff Birnbaum, Ceci Connolly e Alan Colmes, somaram-se abertamente à comemoração precipitada. ‘Ainda há coisas a fazer, mas os céticos e críticos foram humilhados. A palavra final sobre isso é `Avante!´’. Connoly completou: ‘Muito parecido com a queda do muro de Berlim. (…) É de perder o fôlego!’


Hoje sabemos que a célebre queda da estátua de Saddam, ainda a cena mais repetida pela mídia como definidora da guerra, foi uma ‘operação psicológica’ (sigla oficial: PSYOPS) do Pentágono. Nenhum jornalista na época deu-se ao trabalho de apurar a farsa. Na CNN e na MSNBC (rede de cabo da NBC) procurava-se não buscar a verdade e questionar o zelo patriótico da Fox News, mas, ao contrário, imitá-la e até superá-la, no pressuposto de que essa rede tinha a receita mágica da audiência.


O principal apresentador da MSNBC, Chris Matthews, excedeu-se, por exemplo, ao festejar a fantasia de piloto de Bush: ‘Estamos orgulhosos de nosso presidente. Os americanos adoram um sujeito como ele na presidência, meio valentão, com preparo físico, um cara que não seja complicado como Clinton ou mesmo Dukakis, Mondale, McGovern. Querem alguém como Bush. Inclusive as mulheres. E elas adoram esta guerra. Todos nós gostamos de ter um herói como presidente.’


Um capítulo vergonhoso


Matthews disse tais pérolas a 1º de maio. Três semanas antes já tinha feito uma declaração de amor aos neocons – e bem explícita. ‘Agora nós todos somos neocons’, afirmou. Na mesma MSNBC, o comentarista Howard Fineman, também estrela da Newsweek, chegou perto dos excessos de Matthews e da Fox. ‘Já tivemos guerras que dividiram o país. Mas esta guerra uniu o país e trouxe de volta nossos militares’.


É bom não esquecer que a MSNBC, como a NBC, pertence ao império da General Electric (GE), grande fornecedora do Pentágono que fatura com guerras. Ao menos a CNN poderia ter ousado um jornalismo decente, mas mudou muito depois da Fox News. Quem se destacou mais ali no zelo patriótico foi o gordinho Lou Dobbs. Sobre o Bush fantasiado: ‘Parecia ao mesmo tempo um comandante em chefe, estrela de rock, astro de cinema. Era como qualquer um de nós’.


As redes CBS e ABC não foram diferentes. Nem mesmo as redes públicas de TV (PBS) e de rádio (NPR). Na imprensa escrita, o Washington Post continuou falcão em política externa, pedindo guerra nos editoriais. O New York Times manifestara ceticismo até a fala de Colin Powell na ONU. Contentou-se então com as provas falsas sobre as ADM do Iraque. Salvou-se apenas a mídia alternativa, no que pode ter sido o episódio mais deprimente da história do jornalismo americano.


Nada como um dia depois do outro. Tanto a guerra apoiada pela mídia como o presidente que ela proclamou herói já eram rejeitados pela grande maioria dos americanos três anos depois da invasão.

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Jornalista