Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os desertos de pautas imprescindíveis

Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, foi construída pelos imigrantes europeus sobre um território de encontro entre os biomas Mata Atlântica e Pampa, ou seja, um florestal, outro campestre. A transformação dos habitats das outras espécies da flora e da fauna nas estruturas que sustentam o desenvolvimento econômico inspira os demais municípios do Estado. No entanto, a qualidade da água e do ar estão precárias, apesar do cumprimento dos padrões legais, com o agravante de a conservação dos ecossistemas não ser uma prioridade na gestão deste território, por exemplo, através da atualização da lista das espécies ameaçadas da flora de POA, tão reivindicada pelo movimento ambientalista. Documento elaborado pelo Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) em 2016, e entregue ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam) e a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM), explicava: “Sem as informações do estado de conservação de nossa flora e fauna e da capacidade de suporte de atividades de impactos negativos e potencialmente sinérgicos, estaremos licenciando empreendimentos no ‘escuro’. Ou seja, sem a base de dados necessária para predizermos as consequências futuras de tais atividades, em geral progressivamente degradadoras, em um contexto local de expansão urbana quase sem limites”.

Em Porto Alegre, Território Indígena não teve a regularização concluída desde 2012. (Foto: Reprodução de Jornal Já/Deriva Jornalismo)

Enquanto a pauta da conservação, para o próprio desenvolvimento, segue sob disputa de sentidos entre os grupos sociais, com representação no Comam e na Secretaria, informações circulantes denunciam o avanço da especulação imobiliária sobre o que resta de áreas naturais em Porto Alegre. E, com o agravante de constituir uma ameaça às vidas humanas, e suas culturas, que estão no Território Indígena (TI) Pindó Poty, no bairro Lami, Zona Sul. A maior parte das informações tem sido divulgada pelas próprias fontes — que poderiam ser entrevistadas pela imprensa —, através dos seus sites e páginas de redes sociais, a respeito de invasões na área, que ainda não teve concluído o processo de regularização fundiária pela União e Fundação Nacional do Índio (Funai). A mobilização da comunidade Mbya Guarani e de diversas entidades apoiadoras, entre elas, muitas não-indígenas, segue intensa: denunciando, cobrando a responsabilidade dos órgãos, realizando eventos públicos e atividades no território, como o plantio e replantio de mudas frutíferas. No entanto, a qualidade da cobertura dessa pauta imprescindível, pela imprensa porto-alegrense, está precária. É o que sugere o resultado de uma busca, realizada em oito de maio último, em oito sites de jornalismo com palavras-chaves “Indígenas”, “Índios”, “Lami”.

Nos quatro sites da imprensa hegemônica, apenas no Correio do Povo, a busca resultou em uma notícia com a palavra-chave Índios e com Lami (a mesma), publicada em 22 de abril de 2021: “Ato reivindica demarcação de terra indígena, em Porto Alegre”. Reportou a mobilização em prol da demarcação do Território Indígena (TI) com as seguintes fontes citadas: o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), José Otávio Catafesto de Souza, que confirmou que o processo não está andando e as informações sobre motivações dos invasores se referirem a especulação imobiliária; nota do Ministério Público Federal sobre ação ajuizada em 2019 determinando a finalização dos procedimentos administrativos de identificação e delimitação das áreas de ocupação tradicional indígena pela União e Funai e, ainda que, em julho de 2020, soube de um casebre irregular situado na TI; e a Funai, que apenas repetiu que o processo está em andamento. Impossível não deixar aqui para refletirmos: por que nenhum membro da comunidade Mbya foi entrevistado?

Abaixo, um quadro apresenta as palavras-chaves e os links cuja busca atribuiu os resultados. E, ao clicar no nome do jornal, o link conduz à apresentação que a empresa de comunicação faz de si.

Já nos quatro sites da imprensa não-hegemônica, a busca com as palavras-chaves que, não trouxe nenhum resultado relativo à pauta em questão aqui, ocorreu em apenas num deles. É o que mostra o site do Extra Classe clicando em Indígenas, Índios ou Lami. Neste caso, assim como nos casos das outras três buscas (nos jornais hegemônicos) que não resultaram em notícias como era esperado, vale ressalvar que a falta de ordem na data pode ter impedido a sua identificação. A seguir, veremos um pouco de cada uma das únicas notícias publicadas pelos outros três sites.

O Jornal Já publicou reportagem do jornalismo independente “Deriva”, que está acompanhando no local a sucessão de acontecimentos, intitulada “Invasores montam barracos e desmatam território indígena no Lami, em Porto Alegre”. A pesquisa no site do Já apontou a notícia, de 20 de abril de 2021, através das palavras “indígenas” e “Lami” (não foi possível copiar o link). Além de trazer as informações dos órgãos públicos responsáveis, disponibilizou uma entrevista no Youtube com o cacique da TI, informações sobre os estragos causados pelos invasores e o contexto histórico: “A Aldeia Pindó Poty está em um território ancestral. Compõe junto com as aldeias do Cantagalo, Itapuã, Ponta do Arado, Lomba do Pinheiro uma grande área de circulação e de ocupação deste povo originário nas matas da Zona Sul da cidade de Porto Alegre.” Fotos grandes e de qualidade ilustram ricamente o encontro presencial do jornalista com as fontes principais.

Também ilustrada com imagens, o Matinal publicou, em 22 de abril, “Por omissão da Funai, guaranis de todo o Estado vêm a Porto Alegre blindar território de invasores”. A reportagem foi a mais completa, na diversificação das fontes, em comparação com as outras deste grupo.Foi localizada a partir das palavras-chaves Índios e Lami.

Ligada à palavra-chave “Lami”, o Sul21 trouxe informações importantes a partir de entrevista com uma fonte vinculada a entidade indigenista, em 20 de abril, sob o título “Mbya Guarani denunciam invasão de terra indígena no Lami para construção de loteamentos irregulares”. Parece que nenhum membro da comunidade Mbya Guarani foi entrevistado: “De acordo com o Cimi, a comunidade já notificou o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), cobrando medidas para evitar as invasões. Os indígenas, segundo o Cimi, temem ser expulsos de suas casas pelos invasores.”

Em comum, nos oito sites selecionados para este exercício de observação, foi marcante a insistência dessa imprensa porto-alegrense em seguir repetindo (das fontes), reproduzindo, e assim, produzindo, o conceito equivocado de “índio”. Daniel Munduruku tem explicado com generosidade o que nos cabe aprender como o Nonada, entre outros, já fizeram.

Já entre os quatro sites que publicaram a pauta, marcou, também, a coincidência entre a data da publicação e a convencional comemoração do “Dia do Índio”. Como as Retomadas Indígenas estão bastante ativas, a cobertura sobre o estado de conservação das últimas áreas remanescentes dos dois biomas nos municípios gaúchos, especialmente em Porto Alegre, deve se ampliar significativamente, ainda mais podendo-se ouvir as fontes “guardiãs da biodiversidade”, conforme a ONU classificou os povos indígenas recentemente.

Não obstante seja conhecido o conjunto de dificuldades enfrentadas nas redações jornalísticas em geral, as crescentes demissões e a consequente sobretensão naqueles profissionais mantidos, além da sobreposição da pauta da covid-19, as pautas não mudam seu status —como o de imprescindíveis. A qualidade das informações que os habitantes dos municípios necessitam para exercer a cidadania, também aparece na iniciativa Atlas da Notícia, que visa mostrar onde se encontram os chamados “desertos de notícias”, ou seja, aqueles que não possuem meios jornalísticos. Porto Alegre que possui os sites mencionados, e muitos outros, certamente não é um deserto, entretanto, a precária e limitada cobertura coloca esta população sob o risco de viver em um deserto de pautas imprescindíveis.

Texto originalmente publicado no Observatório de Jornalismo Ambiental.

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Eliege Fante é jornalista e pós-graduada pela UFRGS em Comunicação e Informação. Integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS).