Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A apologia do faroeste

É muito bom, de lavar a alma mesmo, quando a gente esbarra com um artigo que gostaria de ter escrito, em que alguém coloca os pingos nos is. Comigo, ao menos, volta e meia acontece isso. Pois foi essa a sensação que tive ao ler Venício Lima discorrendo sobre a recusa sistemática e raivosa da mídia gorda brasileira – que de tudo e todos se dispõe a falar e a criticar – em discutir a atuação de um único setor de nossa sociedade: ela própria, a mídia gorda [ver ‘Quem perde é a democracia’]. Diz o professor:




‘Na verdade, a grande mídia tem se colocado acima das leis, da Constituição e das decisões do Judiciário, apesar de se apresentar como defensora suprema das liberdades. Ao mesmo tempo, se recusa a discutir ou a negociar, boicota conferências nacionais, distorce e omite informações, sataniza movimentos sociais, partidos, grupos e pessoas que não compartilham de seus interesses, projetos e posições. Dessa forma, estimula a intolerância, a radicalização política e o perigoso estreitamento do debate público.’


Antes, Lima cita alguns trechos do Capítulo 5 do Título VIII da Constituição Federal. Com apenas cinco artigos, números 220 a 224, intitula-se ‘Da Comunicação Social’. Junto com o artigo 5 e uma dúzia de outros, deveriam, a meu ver, ser matéria de ensino na escola, para ajudar a formar brasileiros sabedores de alguns de seus direitos – passo essencial para que, um dia, possam vir a exigir seu cumprimento. Por sinal, estou encerrando algumas turmas de uma disciplina na graduação em que a leitura destes cinco capítulos – que, colocados num processador de texto, cabem em duas páginas – é feita em voz alta e discutida em sala de aula com os alunos. Ao contrário do que muitos podem pensar, em geral eles gostam da experiência e produzem um debate acalorado. Há quem faça questão de vir me dizer que considerou a aula mais importante do curso.


Direitos ignorados


Nossa Constituição data de 1988. Em outubro, fará 22 anos. Desde que começou a valer, uma série de leis fundamentais para a garantia de direitos e o exercício da cidadania foram elaboradas e promulgadas a partir de indicações no texto constitucional. Por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor.


Contudo, na área de comunicação, embora a Carta Magna estabeleça a necessidade de leis, órgãos e mecanismos federais para regulamentar o setor, continuamos numa terra de ninguém. Um cínico poderia argumentar que 22 anos é pouco tempo para o Congresso trabalhar – legislar – no sentido de cumprir a lei maior do país, elaborada lá mesmo. Ocorre, porém, que o atual estado de coisas não se mantém por acaso. Ele favorece os grandes. No faroeste e na selva, como bem nos ensinam os filmes de bangue-bangue e os documentários de bicho da TV a cabo, vencem os mais fortes.


Um dos pontos que impressionam nisso tudo é que os canais de radiodifusão – emissoras de rádio e televisão – são concessões públicas. Mas atuam como se não o fossem, pois não estão submetidas a praticamente nenhum tipo de regulação e avaliação. O vale-tudo é, por incrível que pareça, maior do que em setores como transportes (marítimo, aéreo, ferroviário, rodoviário, metroviário), energia elétrica, telefonia fixa, telefonia celular e fornecimento de gás. Pois, nesses, ainda que os serviços sejam caros e horrorosos e as empresas façam dos cidadãos gato e sapato e lhes roubem de diversas formas a cada dia, existem órgãos responsáveis pela fiscalização. Até os bancos, exemplo-mor de banditismo em terras brasileiras, estão, em tese, sujeitos à fiscalização e ao cumprimento de determinações do Banco Central.


Se tais instâncias fiscalizadoras – federais, estaduais e municipais – pouco ou nada fazem, é um outro problema. Na prática, quase sempre funcionam para ignorar os direitos e queixas dos cidadãos, as leis e o interesse público; e proteger as empresas. Ou seja, atuam de forma inversa em relação às funções para as quais foram criadas. Mas, ao menos, existem.


Pressão social


E na área de comunicação? Faroeste, terra sem lei, vale-tudo, estado de natureza. Nos últimos anos, algumas das poucas regulamentações existentes caíram por decisões do Supremo Tribunal Federal presidido por Gilmar Mendes – como, no caso do jornalismo, o diploma específico obrigatório para o exercício da profissão e a Lei de Imprensa. Veja bem, leitor: não estou entrando no mérito destas leis – que, não custa lembrar, datam de 1969 e 1967, respectivamente. Tenho, é claro, uma opinião sobre elas, mas esta não vem ao caso, no momento. Meu argumento é que, na maioria das vezes, uma lei ruim é melhor do que lei nenhuma.


Na publicidade e produção audiovisual, iniciativas tímidas como a classificação indicativa geram uma celeuma danada e campanhas inacreditáveis na televisão, em que esperneiam entidades que representam anunciantes (empresas multinacionais de grande porte, em sua maioria), agências de publicidade e veículos de comunicação da mídia gorda.


Em contrapartida, entidades e movimentos sociais, representantes de setores significativos da população e da sociedade brasileira, têm seus pontos de vista sistematicamente ridicularizados, ignorados, atacados. Seu pecado é exigir a garantia de direitos e a aplicação da Constituição Federal. Raros são os detentores de mandato no Congresso Nacional que vêm a público, nestas ocasiões, dar a cara à tapa e se arriscar a sofrer uma crítica furiosa da mídia gorda.


É bom lembrar que dezenas de congressistas são concessionários de serviço público de rádio e/ou televisão. Violam, portanto, o artigo 54 da Constituição Federal, que proíbe que detenham ‘cargo, função ou emprego remunerado’ em ‘empresa concessionária de serviço público’. Mas nada lhes acontece. (Para quem tiver interesse, um panorama da trágica situação está no projeto ‘Donos da Mídia‘, que presta um inestimável serviço à democracia brasileira ao tornar públicas as informações sobre propriedade dos meios de comunicação.) [Ver ainda, neste Observatório, ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento‘ e ‘Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)‘.]


Dos partidos, então, infelizmente espera-se menos ainda: mesmo aqueles à esquerda têm uma resistência colossal para abraçar a luta pela democratização da comunicação e lhe dar a importância devida. Uma importância que fica nítida se levadas em conta as características históricas da sociedade brasileira e da conformação dos grupos que compõem a mídia gorda.


Infelizmente, quando o assunto é comunicação e a mídia gorda se sente contrariada e ruge, mesmo o governo federal, eleito para um mandato pela vontade soberana do povo brasileiro (não cabe discutir aqui os numerosos problemas de nossa democracia), treme de forma impressionante.


Felizmente, contudo, graças a uma série de fatores – um deles a luta ferrenha, difícil, muitas vezes solitária de militantes da democratização da comunicação em todo o país –, o tema ganhou visibilidade inédita nos últimos anos. Oxalá, tal como tem ocorrido quanto à exigência da verdade sobre os crimes cometidos pelos agentes da ditadura, a pressão social garanta que o debate sobre a comunicação veio para ficar.

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Jornalista, historiador e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; edita o blogue A Lenda