Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Uma novela em dez capítulos

Mais uma edição do Fórum Social Mundial. Mais edições de jornais e revistas míopes. Dez anos depois, era de se esperar que a mídia conseguisse sair do seu cômodo lugar de simplificadora da realidade e compreendesse a complexidade do FSM? Não. Ainda bem, porque assim, não nos frustramos.


Quarta-feira, 27 de janeiro, acordei para mais um dia de atividades do FSM Grande Porto Alegre. Depois do café, acompanhei a edição do jornal Bom Dia Brasil, da Rede Globo. A manchete sobre o FSM é que o evento vive uma espécie de crise de identidade, esvaziado e sem propostas concretas.


Ora, o objetivo do FSM – nestes dez anos – foi construir um contraponto à visão de que a política é sinônimo de desenvolvimento econômico (numa menção direta ao Fórum de Davos), dar visibilidade às lutas e diversos movimentos e, por fim, articular estas lutas, promovendo uma sinergia, uma espécie de caldeirão, um espaço de processamento. Esta complexidade a mídia comercial nunca compreendeu. E sempre fez críticas ao FSM como espaço de ‘muita teoria e pouca prática’. Claro, um espaço que não se encaixa nas categorias cartesianas e que tem uma profundidade que o raso olhar da mídia privada não consegue alcançar. Um espaço da multiplicidade, da diversidade, da alteridade. Valores difíceis de a mídia estreita entender.


Correlação de forças


Um segundo ponto, em relação ao esvaziamento do evento, é – no mínimo – falta de informação. Este ano, ainda que Porto Alegre tenha concentrado um grande volume de atividades, o Fórum é descentralizado, e está acontecendo em mais de 27 grandes mobilizações ao redor do mundo. Ou seja, não se trata de um esvaziamento. Pelo contrário. O encontro em Porto Alegre, inclusive, superou as expectativas em termos de volume de público.


Por fim, durante o FSM, tive a oportunidade de acompanhar a cobertura da mídia gaúcha ao encontro na Região Metropolitana de Porto Alegre. Um olhar panorâmico pode nos fazer pensar que a mídia local é uma rara exceção. A cobertura é rica, diversa, aprofundada em muitos casos, plural no sentido das vozes que a protagonizam. Sim, é fato que a cobertura é um exemplo do que poderia ser em todos os demais meios. Mas é preciso ponderar que a mídia local tem um interesse direto na promoção de um evento que projetou Porto Alegre para o mundo e que traz inegavelmente uma movimentação econômica para a cidade.


Esta novela começou há dez anos. E a relação do FSM com a mídia comercial nunca terá um final feliz. Afinal de contas, faz tempo que os meios de comunicação deixaram de ser porta-vozes da elite, do poder e do mercado. Hoje, as empresas de comunicação integram este poder, se não são um dos maiores na correlação de forças global. Portanto, se o Fórum é um movimento contra-hegemônico, é um movimento ‘inimigo’ da grande mídia.


Marcha de abertura


Felizmente, o FSM vem amadurecendo – e muito – a sua concepção e comunicação e integrando esta dimensão à agenda do novo ciclo que se inicia rumo a Dakar, no ano que vem. Em 10 anos, de instrumento de divulgação, a comunicação avançou para eixo de debate e em seguida para direito a ser reivindicado pelos movimentos do campo do FSM (veja também ‘A comunicação nos dez anos do FSM‘).


Na mesa sobre sustentabilidade do Seminário Internacional que foi promovido em Porto Alegre nesses cinco dias, foi bom ouvir que a comunicação deve ser encarada antes de tudo como um direito, mas também como um questão do entorno, da esfera pública, do ambiente que nos cerca. E que a revolução de que precisamos é fortemente marcada por uma dimensão comunicacional-cultural.


Se, cada vez mais, a plataforma FSM incorpora as questões por uma comunicação democrática e suas práticas internas mostram que as comunicações públicas, livres e alternativas são possíveis, até quando a grande mídia conseguirá condenar o Fórum Social Mundial a retaliações, omissões e invisibilidades?


Como dizia a faixa das mulheres na marcha de abertura do FSM Grande Porto Alegre, ‘seguiremos em marcha até que todas estejamos livres’. Neste caso, até que todos/as tenhamos voz.

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Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica e doutoranda em Educação, integrante do Intervozes e assessora de comunicação da ONG Ação Educativa; autora de Um Mundo de Mídia (Editora Global)