Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A reação ao “caso Campos Mello”: acertos e lacunas

(Foto: Divulgação)

Em uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) destinada a investigar fake news, um depoente agride e chama de mentirosa a jornalista responsável pela mais reveladora reportagem sobre o tema, para o qual ele próprio contribuíra com depoimento e evidências.

Vestido e comportando-se como um gigolô de pornochanchada, como assinalou um jornalista, Hans River do Rio Nascimento coroa sua performance acusando, sempre sem apresentar nenhuma prova, a repórter de ter tentado seduzi-lo, no que é prontamente apoiado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que afirma, em plenário, não duvidar que ela “possa ter se insinuado sexualmente (…) em troca de informações”.

Respostas institucionais

A reação foi imediata e, em poucas horas, o caráter difamatório e sexista da agressão é em várias frentes repudiado. A Folha de S.Paulo, responsável pela publicação da matéria pioneira, que está na origem da CPMI das Fake News, divulga uma série de documentos acerca dos contatos entre a repórter Patricia Campos Mello – uma das mais corajosas e premiadas do país – e o depoente, os quais desmentem a cronologia e o conteúdo das afirmações de Hans River.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), é direto e contundente: “Falso testemunho, difamação e sexismo têm de ser punidos no rigor da lei”; a relatora da CPMI, Lídice da Mata (PSB-BA), aciona o MP para que investigue o depoente por falso testemunho, crime previsto no artigo 342 do Código Penal Brasileiro. Dois dias depois, o PTB anuncia a expulsão de Hans River. Juristas, jornalistas e parlamentares alertam, ainda, para a situação do deputado citado, cuja imunidade parlamentar não cobriria injúria e difamação a terceiros.

Reações em cadeia

Mas foi fora do universo institucional que as reações se mostraram mais avassaladoras. Primeiro, como de hábito, nas redes sociais; e, já na manhã seguinte à agressão, quando é publicado um manifesto condenando os “ataques sórdidos e mentirosos” sofridos por Campos Mello e a disseminação de “antigos e odiosos estigmas de cunho machista”. Assinado inicialmente por 770 mulheres jornalistas (e dezenas de mulheres de outras áreas), incluindo virtualmente todas as principais jornalistas brasileiras, a lista reuniria, em menos de 24 horas, o endosso de 2.836 profissionais do sexo feminino.

A partir daí, o movimento de repúdio às agressões sofridas por Campos Mello se vê impulsionado, por um lado, pelo ativismo feminista, muito forte nas redes sociais; e, por outro lado, pela solidariedade entre colegas de profissão – incluindo jornalistas homens que, impedidos de participar da lista, prestaram sua solidariedade e denunciaram as agressões em suas próprias colunas, sites e perfis.

Marco cívico

Foi uma reação em cadeia, visceral, volumosa, como raramente – ou talvez nunca – se viu no que diz respeito à atividade jornalística depois da ditadura militar.

Trata-se, portanto, de uma operação bem-sucedida naquilo que se propôs: denunciar os ataques machistas e sexistas a que estão sujeitas as jornalistas no país. Ainda assim, parece lícito levantar questões relativas ao modo como foi conduzida, às escolhas feitas e o que implicam em termos do resultado alcançado.

Padrões de agressão

Assumamos, como ponto de partida, que as múltiplas agressões perpetradas por Hans River – à verdade, à coerência, à decência, culminando com o sexismo – não são nem inovação individual trazida pelo personagem, nem prática disseminada nas relações entre poder e imprensa. Ao contrário, compõem o padrão distintivo de comportamento de uma força política específica: o bolsonarismo.

Prestemos atenção também ao fato de que tal comportamento vem atingindo principalmente dois grupos sociais: as mulheres, que, além de sofrer diariamente os efeitos das assimetrias socioeconômicas ligadas à questão de gêneros, são, como o episódio ilustra de forma didática, alvos preferenciais das agressões sexistas; e os jornalistas em geral, sem distinção de sexo, que sofrem agressões diárias, trabalhando sob condições inaceitáveis e tendo seu trabalho frequentemente achincalhado pelos atuais donos do poder.

Cunho feminista

Pois bem, como já abordado, o que se viu na reação ao “caso Campos Mello” foi uma mobilização que privilegiou, de forma deliberada, uma resposta de cunho exclusivamente feminista, não só pela própria participação no manifesto ser restrita a mulheres, mas pela adoção de uma pauta caracterizada por abordagem genérica dos ataques sofridos por jornalistas mulheres. O texto do manifesto é cristalino nesse sentido:

“Nós, jornalistas e mulheres de diferentes veículos, repudiamos com veemência este ataque que não é só a Patricia Campos Mello, mas a todas as mulheres e ao nosso direito de trabalhar e informar. Não vamos admitir que se tente calar vozes femininas disseminando mentiras e propagando antigos e odiosos estigmas de cunho machista.”

Falta de contexto

Não se trata, aqui, de julgar ou mesmo de valorar ou desvalorar qualitativamente tal estratégia de reação – de resto, repito, bem-sucedida -, mas sim de assinalar que, sendo uma estratégia de ação, implica em consequências e opções. Por exemplo, como a própria reação de jornalistas homens ante a agressão a Campos Mello explicita, o ataque – melhor dizendo, os ataques, pois são vários -, ao contrário do que afirma o manifesto, não se limita à jornalista agredida e a todas as mulheres, mas diz respeito a toda uma atividade profissional, a jornalística, o que engloba outros sujeitos, inclusive masculinos, além de práticas variadas.

A consequência mais óbvia de tal opção tática é facilitar a identificação de amplas parcelas do movimento feminista, que, como mencionado, conta com grande poder de penetração e difusão na internet brasileira, o que certamente contribuiu para reverberar a denúncia e aglutinar reação. Embora o ato deflagrador das reações seja uma situação concreta, tal opção tática se deu, paradoxalmente, através do privilégio à questão da discriminação geral e disseminada contra a mulher, sem especificá-la, em detrimento do foco nas formas, tipos e perpetradores de agressões específicas, concretas. Foi, assim, uma forma de tratar a questão no âmbito macro das políticas de gêneros, mas “despolitizando-a” no que diz respeito especificamente ao jornalismo e à política em sua dinâmica mútua atual, o que ficou relegado a um segundo plano (ou mesmo ignorado).

Tal opção implicou, notadamente, em abrir mão de correlacionar os ataques sofridos por Campos Mello a um modus operandi específico de determinadas forças políticas. E esse é um aspecto altamente negativo, pois o caso, protagonizado concretamente por dois bolsonaristas, era propício para trazer ao primeiro plano do debate as táticas antijornalísticas específicas, reiteradas e exclusivas de tal tendência política.

A inexistência dessa identificação específica de autoria, grave lacuna, permite ainda que tenha lugar, aqui e ali, o que eu chamo de “jornalismo de compensação” (que abordarei em um próximo artigo); no caso, um esforço para buscar no passado mais ou menos recente e em partidos políticos ora na oposição um caso de agressão semelhante ao sofrido por Campos Mello – operação, de resto, propensa a falsas comparações, posto que a combinação de injúria, difamação e acusações sexistas por parte de depoente, corroboradas por deputado em plenário, é inédita no pós-ditadura.

Circo presidencial

No que tange a comportamento agressivo contra jornalistas, destacam-se as “entrevistas” matinais do presidente Bolsonaro, nas quais os profissionais de imprensa ficam confinados a um significativamente chamado “chiqueirinho”, apupados a todo momento por uma claque governista e sendo submetido a agressões verbais e palavrões da própria lavra do entrevistado. Algo que, repito, jamais se viu no Brasil, tanto na forma como pelo grau de humilhação que impinge às relações entre o poder presidencial e a imprensa.

Tal situação, ela também inaceitável, e que vem crescendo em tensão, tem levado inclusive jornalistas do primeiro time – como Janio de Freitas e Ricardo Kotscho – a questionar se não estaria mais do que na hora de os repórteres reagirem e se negarem a participar de entrevistas em condições tão humilhantes. Aponta-se o exemplo britânico como linha a ser seguida pelos humilhados jornalistas brasileiros em defesa de condições respeitosas para o exercício da profissão. Pouco mais de uma semana antes da deflagração do “caso Campos Mello”, um grupo de jornalistas britânicos foi protagonista de uma ação inédita: ante a tentativa do gabinete Boris Johnson de impedir que alguns veículos tivessem acesso a uma reunião de briefing, os jornalistas a quem a entrada havia sido permitida decidiram se retirar em protesto. Nenhum veículo de imprensa participou da reunião e o caso se tornou emblemático. A reação dominante ao “caso Campos Mello” impediu o reforço de tal linha de ação ou qualquer iniciativa similar que significasse uma tomada efetiva de atitude pelos jornalistas brasileiros.

Agressão como tática política

Tudo somado, a reação ao “caso Campos Mello”, se por um lado serviu a uma pronta e vultosa manifestação contra o sexismo e reafirmação de pautas feministas de primeira importância, constituindo-se em um verdadeiro marco cívico, por outro, ao recusar dar nome aos bois e produzir um debate específico sobre as condições atuais da prática do jornalismo no país, perdeu oportunidades de expor o padrão inaceitável de comportamento do bolsonarismo para com a imprensa e não foi capaz de articular uma mudança efetiva de comportamento dos jornalistas para enfrentar humilhações que se tornaram corriqueiras.

Nesse sentido, pouco foi alterado: nada indica que a reação ao caso vá frear o comportamento dos que agridem, mesmo porque este é deliberado e intencional, com objetivos político-comunicacionais preestabelecidos.

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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).