Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Constituição ameaça a mídia?

Os leitores da edição de domingo, 17 de janeiro, do jornal O Estado de S.Paulo, encontraram na primeira página uma chamada – ‘Governo prepara novo ataque à mídia’ – acima da dobra, seguida de um texto que dizia:




‘Documento preparado sob coordenação do Planalto prega mais uma vez o `controle social´ dos meios de comunicação e a interferência nos conteúdos, informam Felipe Recondo e Marcelo de Moraes. O texto servirá de base para mais uma conferência, desta vez a da cultura, marcada para março. O documento propõe, ainda, maior intervenção em áreas como ciência e meio ambiente (ver aqui).


Em que consistiria esse ‘novo ataque à mídia’? A explicação estava na página 4, sob o título ‘Conferência de Cultura arma novo ataque à mídia‘. A longa matéria aponta que o ‘ataque’ do governo consta do documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura que será realizada entre 11 e 14 de março próximos.


Não é preciso mencionar que se trata de documento a ser discutido em conferência que, como todas as outras, é apenas propositiva. Mas, vamos em frente. Qual é exatamente o ‘ataque’?


Na verdade, não é um ‘ataque’. São vários. O primeiro, diz respeito à existência de monopólio nos meios de comunicação. Segundo o Estadão o ‘ataque’ estaria contido na seguinte frase:




‘O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural.’


O leitor atento, todavia, se lembrará do que está escrito na Constituição. Relembremos:




Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.


(…)


§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.


Situação curiosa


O segundo ‘ataque’ refere-se à ‘regulamentação de artigos que obriguem emissoras de televisão a cumprir cotas de regionalização na produção e exibição de programas’ (sic). A matéria cita o documento-base:




‘Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação. Nesse sentido, os fóruns de cultura e de comunicação devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da Constituição Federal de 1988 relativos ao tema [grifo nosso]. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221) [grifo nosso].’


O leitor atento poderá consultar a Constituição, mencionada no trecho citado do documento-base, e verificar que, de fato, está lá:




Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:


I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;


II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;


III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;


IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


Outro ‘ataque’ do governo estaria contido na observação:




‘As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social no País.’


Ainda uma vez o leitor atento se lembrará de que a Constituição estabelece o ‘princípio da complementaridade’ entre os sitemas privado, público e estatal de radiodifusão – prevendo, portanto, que critérios outros que não as demandas do mercado também possam dar ‘o tom da comunicação social no país’. Está escrito na Constituição:




Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.


A matéria reproduz ainda, separadamente, trechos que considera ‘polêmicos’ no documento-base. Além dos três ‘ataques’ já mencionados, inclui outro, sob o título ‘Controle social da mídia’, que se refere especificamente às ‘TVs e rádios públicas’.


Temos aqui a curiosa situação em que o ‘ataque’ do governo, segundo o Estadão, se dá não em relação à radiodifusão comercial, mas à radiodifusão pública. Quem senão o público deve exercer controle sobre a radiodifusão pública?


Reprodução em cascata


A matéria do Estadão, por óbvio, repercutiu na segunda-feira (18/1) nos jornalões Folha de S.Paulo e O Globo. Ambos, ‘por coincidência’, usaram praticamente o mesmo título do próprio Estadão: ‘Governo Federal prepara novo ataque à mídia’ e ‘Texto de 2ª. Conferência Nacional da Cultura traz ataques à mídia’, respectivamente.


Além disso, na mesma segunda-feira, o Estadão se apressou em repercutir a sua denúncia com a ANJ e a OAB, e, em nova matéria sob o título ‘OAB e ANJ vêem ataque à mídia pelo governo’, os ‘ataques’ do governo do dia anterior já se transformaram em ataques à liberdade de expressão. O representante da ANJ, no entanto, vai um pouco além. Diz ele:


‘Nesse caso, assim como em outros relatados recentemente, trata-se de proposta antidemocrática e anticonstitucional, uma vez que a plena liberdade de expressão é um dos preceitos básicos da nossa Constituição. É condenável essa tentativa de dirigismo, de interferência no conteúdo dos meios de comunicação’ (ver aqui, grifos nossos).


Quem ameaça quem?


Os ‘ataques’ do governo à mídia, identificados pela matéria do Estadão no documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura (que ainda sequer se realizou), repercutidos nos outros jornalões, referem-se à regulamentação de normas constitucionais, como é absolutamente simples de constatar.


O mesmo tipo de situação aconteceu em relação às propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e às diretrizes do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – ver, neste Observatório, ‘A mídia contra a Constituição‘). No último fim de semana, as revistas semanais foram unânimes em condenar o que consideram ‘controle da mídia’ e ‘atropelamento da Constituição’ pelo III PNDH.


Para surpresa geral, inclusive a revista CartaCapital embarcou nesta canoa em textos assinados por Mino Carta, Gilberto Nascimento e Walter Maierovitch.


Condena-se no III PNDH a ‘ação programática’ que propõe…




‘Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações.’


 …e a recomendação correspondente:




‘Recomenda-se aos estados, Distrito Federal e municípios fomentar a criação e acessibilidade de Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em Direitos Humanos.’


 Na verdade, essas propostas já se encontram nos dois PNDH anteriores, de 1996 e 2002 (cf. itens 57 e 100, respectivamente), e um ranking já é feito no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que instituiu, em 2002, a campanha ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’ a partir de deliberação da VII Conferencia Nacional dos Direitos Humanos.


A observação social da mídia, apesar de sua inquestionável relevância democrática, vem sendo desenvolvida, a duras penas, por uma rede de observatórios – da qual este Observatório da Imprensa é pioneiro – e por entidades como a ANDI, o Observatório do Direito à Comunicação e o Observatório Brasileiro de Mídia. Foi esse tipo de trabalho, aliás, que levou a uma ação judicial bem sucedida por iniciativa do Ministério Público de São Paulo em relação ao antigo programa de João Kleber, Tardes Quentes, na veiculado Rede TV!.


É de se perguntar, portanto, quem ameaça quem? É o governo – ou seria a sociedade civil que se reúne em conferências? – que ameaça a mídia ou é a mídia que considera alguns dispositivos da Constituição uma ameaça a seus interesses e ataca, como vem acontecendo nos últimos 21 anos, qualquer tentativa de sua regulamentação?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)