Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A decisão do STF e a ‘des’regulamentação da profissão

Declarações do presidente do Supremo e manifestações diversas após a decisão que afastou a obrigatoriedade do diploma para exercício do jornalismo têm gerado grande confusão sobre o futuro profissional. A principal delas está relacionada à regulamentação da atividade de jornalista. Afinal, ao fulminar a necessidade do diploma, o STF desregulamentou por completo a profissão?

Uma leitura minuciosa do voto condutor do julgamento e do extrato da decisão da Corte leva à conclusão de que não. A profissão ainda se sustenta por um marco legal que está em pleno vigor. Como sabemos, ao declarar a inconstitucionalidade da integralidade de uma lei ou de apenas um único dispositivo, o STF os afasta do ordenamento jurídico. Isso significa que a norma declarada inconstitucional não pode ser aplicada ou invocada pelo Judiciário ou pela Administração Pública para negar ou conceder direitos a quem quer que seja.

No julgamento que derrubou a obrigatoriedade do diploma, o Supremo deixou explícito que a decisão restringia-se ao afastamento de parte do decreto regulamentador da profissão, e não à sua integralidade. Eis o trecho da decisão que mostra, claramente, esse entendimento: ‘O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, ministro Gilmar Mendes (presidente), conheceu e deu provimento aos recursos extraordinários, declarando a não-recepção do artigo 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969, vencido o senhor ministro Marco Aurélio.’

Princípio da primazia da realidade

Do ponto de vista jurídico, a decisão do STF foi coerente com o pedido feito pelo Ministério Público Federal (MPF) e Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) no recurso endereçado ao Tribunal. As duas entidades não requereram a declaração de inconstitucionalidade de todo o decreto, mas somente o afastamento da norma que exigia o diploma como condição para o exercício profissional. Diante desses fatos, os ministros não poderiam mesmo, sob pena de decidir além do pedido formulado pelas partes – o que é vedado em nosso sistema processual –, afastar toda a norma regulamentadora.

Diante desse entendimento, quais são as conseqüências da decisão do Supremo em relação à regulamentação profissional? Com exceção da desnecessidade do diploma para exercício do jornalismo, as demais prerrogativas legais da profissão continuam de pé. Isso significa, por exemplo, que os empresários da comunicação terão que continuar a observar a carga horária de cinco horas diárias e a pagar as horas extras contratuais pactuadas com seus contratados. Também terão que cumprir as demais regras fixadas em acordos e convenções coletivas trabalhistas.

Assim, o jornalista – diplomado ou não – que exercer as atividades típicas da profissão, previstas no artigo 2º do Decreto-Lei 972/69, terá cobertura jurídica para, por exemplo, acionar a Justiça do Trabalho afim de reclamar direitos eventualmente violados decorrentes do exercício do jornalismo.

A esse propósito, vale lembrar que, nesse ramo da Justiça, prevalece o chamado princípio da primazia da realidade. O que vem a ser isso? Para os juízes do trabalho, pouco importa, na análise das reclamações ajuizadas, o nome que as empresas dão aos cargos ou mesmo o que está previsto em documentos formais. Nas relações trabalhistas têm mais valor os fatos reais, aquilo que efetivamente acontece na prática do dia-a-dia profissional.

Dispositivo produz a ‘coisa julgada’

Esse princípio, associado a outros não menos importantes, como o da interpretação mais favorável ao trabalhador, nos levam a crer que, ainda que alguns empresários esperneiem, a Justiça do Trabalho continuará a conceder indenizações a jornalistas que tiverem direitos laborais desrespeitados. A diferença é que, de agora em diante, não somente os diplomados poderão reclamá-los, mas todos aqueles que vierem a exercer, na prática, atividades típicas da profissão.

A confusão informativa gerada pela decisão do Supremo em relação aostatus atual da regulamentação profissional deve-se, em grande parte, às declarações recentes feitas pelo presidente do Tribunal a diversos veículos de comunicação. Em algumas delas, o ministro deu a entender que todo Decreto-Lei 972/69 seria inconstitucional. Pelo menos essa foi a interpretação feita por boa parte daqueles que acompanharam as entrevistas concedidas por ele.

Esse até pode ser o entendimento do presidente, mas, certamente, não foi o que decidiu o STF e não é o que pensam os demais ministros que participaram do julgamento. Para se certificar disso, basta ler os votos apresentados por eles, já disponíveis para consulta no site no Tribunal na internet.

Como se sabe, a parte das decisões judiciais que obriga as pessoas a cumpri-las é o chamado dispositivo. É ali que está a conclusão do que foi decidido, o trecho onde o juiz ou tribunal aplicam a lei ao caso concreto, acolhendo ou rejeitando o pedido formulado pelas partes no processo. O dispositivo também é a parte da decisão que a torna definitiva, imutável e indiscutível, produzindo a chamada ‘coisa julgada’.

A linha interpretativa

Essa maneira de compreender os efeitos práticos das decisões judiciais tem, no entanto, sido superada por teorias modernas de interpretação constitucional. Algumas dessas teorias admitem que outros trechos das decisões também têm a força de obrigar as partes. É o caso da teoria denominada ‘transcendência dos motivos determinantes’.

Essa doutrina de nome esquisito, que tem no ministro Gilmar Mendes um de seus principais defensores no Brasil, postula que os fundamentos utilizados nas decisões judiciais, e não somente a sua parte dispositiva, também vinculam as partes. Esses fundamentos seriam apenas aqueles cruciais para a resolução do processo, as razões que levaram o juiz ou o tribunal a decidir dessa ou daquela forma. Assim, coisas ditas de passagem e os comentários feitos nos relatórios e votos apresentados pelos magistrados nos julgamentos não teriam força vinculante.

Essa compreensão tem ganhado terreno no STF. Na Corte, há várias decisões que adotaram esse posicionamento nos últimos anos. Essa teoria também esclarece uma dúvida comum dos que acompanham os desdobramentos da cassação do diploma: a decisão do Supremo vale apenas para as partes do processo julgado ou é extensível a todos no país?

A resposta a esse questionamento deveria ser simples, mas não é. Como grande parte das coisas em Direito, dependerá da linha interpretativa escolhida. Se for a clássica, pode-se dizer que a decisão do STF relativa ao diploma vale apenas para as partes envolvidas no processo porque, na verdade, o que o Tribunal julgou foi um Recurso Extraordinário, e não uma ADIN.

Em desarmonia com a Constituição

Ou seja, nesse julgamento, o controle de constitucionalidade feito pela Corte se deu pela chamada via difusa, num caso concreto, e não de maneira direta, por meio de uma ação que ataca frontalmente um dispositivo inconstitucional. Por outro lado, se a opção for pela linha da ‘transcendência dos motivos’, é possível afirmar que a decisão no recurso extrapolará o processo e o estrito interesse das partes, podendo ser aplicadaerga omnes (contra todos) em outros casos semelhantes.

O fato é que, atualmente, não há nenhuma lei em vigor no país que confira caráter vinculante às decisões do STF proferidas pela via difusa no julgamento de recursos extraordinários. No entanto, o histórico das decisões recentes do Tribunal sobre outras matérias indica que ali continuará a prevalecer o entendimento de que os efeitos da decisão que acabou com a obrigatoriedade do diploma serão estendidos a outros processos.

De qualquer forma, ainda que se admita que a decisão produzida pelo STF é composta pelo somatório do dispositivo e dos fundamentos centrais dos votos dos ministros, não há ali qualquer menção explícita ao fim total da regulamentação da profissão de jornalista. O que se vê, sobretudo no voto do ministro Gilmar Mendes, são menções ao fato de que a lei regulamentadora é fruto dos anos de chumbo e que partes dela estariam em desarmonia com o espírito da Constituição atual.

Vazios normativos em conflitos

Embora parte disso seja verdade, os comentários feitos pelo ministro, por si só, não têm a força de fazer desaparecer por completo do ordenamento jurídico o decreto regulamentador da profissão de jornalista. Ao que parece, principalmente em razão de declarações de Mendes sobre a opção que as empresas têm agora de exigir ou não o diploma dos futuros profissionais contratados, não foi intenção do Supremo criar uma situação de total desregulamentação. Ou foi?

A decisão do Tribunal gerou uma série de protestos por todo o país e insinuações de que haveria intenção de beneficiar os donos de empresas de comunicação em detrimento dos jornalistas. Se a decisão do STF estiver de acordo com o raciocínio exposto neste artigo, de que ainda estão valendo as regras da legislação regulamentar, essas críticas talvez sejam amenizadas ao longo do tempo. Se, ao contrário, a compreensão for a de que caiu por completo a regulamentação, daí haverá munição suficiente a ser disparada a favor da tese de que a Suprema Corte pretendeu mesmo favorecer os barões da mídia.

Somente daqui a um bom tempo será possível ter clareza sobre de que maneira o Judiciário como um todo interpretará a decisão do STF. As decisões nas instâncias ordinárias, sobretudo na área trabalhista, darão o tom de como os juízes aplicarão a legislação de regência nos processos que envolverem aspectos ligados ao exercício do jornalismo.

Por fim, cabem aqui algumas perguntas: a quem interessa uma situação de completa ausência de regulamentação profissional? De que modo questões como jornada de trabalho e outras prerrogativas dos jornalistas, algumas conquistas históricas da categoria, conflitam com a livre manifestação do pensamento o com o livre exercício profissional?

Como guardião da Constituição Federal, o Supremo, mais do que qualquer outro tribunal do país, precisa refletir sobre as conseqüências sociais das decisões que toma. Entre outros aspectos, a existência de vazios normativos em situações conflituosas como as presentes nas relações trabalhistas de determinadas categorias profissionais geram sérios problemas de ordem prática, sob o ponto de vista da defesa de direitos, para quem integra os litígios e para os profissionais que lidam, rotineiramente, com questões jurídicas, como juízes, promotores e advogados.

******

Jornalista, bacharel em Direito e analista no Superior Tribunal de Justiça (STJ)