Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A violência que humilha e rebaixa

Há quase 200 dias sob censura prévia, imposta pelo Judiciário da capital federal e de certo modo aceita em instância superior, sob a luz claríssima da democracia reconquistada pelo povo brasileiro, o Estado de S.Paulo comemora 135 anos de circulação. Não é a primeira vez que vê tolhida a liberdade de informação, a despeito da disposição constitucional que veda qualquer tipo de censura.


Fui repórter desse jornal e, na minha caminhada, presenciei dois períodos de cerceamento à liberdade de informação. No primeiro, eu era aluno do antigo curso ginasial em escola pública no norte do Paraná, à qual, como às demais, chegavam determinações emanadas de um governo ditatorial, o ciclo de Getúlio Vargas. Tudo era proibido e notícias apenas as oficiais, como as veiculadas pela Rádio Nacional e pela A Noite, ambas do governo. Tudo ao sabor e ao requinte do extravagante Departamento de Imprensa e Propaganda, o nada saudoso DIP, copiado do regime nazista (o Nationalsozialismus) que vigorava na Alemanha de Hitler e com o fascismo, a doutrina totalitária de Benito Mussolini então vigorante na Itália.


Em 1940, o DIP determinou intervenção no Estado. Sua direção foi destituída e o jornal submetido ao controle de um representante da ditadura Vargas até 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, que coincide com o fim do Estado Novo. Extinto, nesse mesmo ano, o DIP foi substituído pelo Departamento Nacional de Informações (DNI), mais tarde transformado no Serviço Nacional de Informações (SNI).


Exemplos de resistência


Como escolar, era obrigado, como todo o alunato, a ficar de mão no peito, com a escola formada para o hasteamento da Bandeira Nacional, entoando um hino de louvor a Vargas (o estribilho dizia: ‘Getúlio Vargas, Getúlio Vargas/ nobre filho dos Pampas do Sul’).


Não só a isso se resumiam as posturas do chamado Estado Novo, o regime político centralizado e autoritário fundado em 1937, que se prolongou até 1945. Por ordem do Palácio do Catete, então sede do governo federal, no Rio, o tradicional desfile escolar de 7 de Setembro, Dia da Pátria, foi antecipado para 5 de setembro, em homenagem a um inacreditável Dia da Raça, de inspiração ditatorial e criado como se aqui fosse a terra de Joseph Goebbels, o ministro do Povo e da Propaganda de Adolf Hitler e executor severo do controle sobre instituições educacionais e meios de comunicação na Alemanha nazista.


Não sei a extensão desse ‘feriado’ Brasil adentro. Não existia televisão e a telefonia era muito precária. Na pequenina cidade de Jacarezinho, meu colégio público teve o privilégio de contar, como diretor, com um democrata, o professor Guido Arzúa. Visando a driblar a compulsória comemoração, ele instituiu uma prova pedestre de revezamento, a ‘Corrida do Livro’, que se desenrolaria simultaneamente com o desfile. Essa modalidade mobilizava muitos corredores, que, de quarteirão em quarteirão, ao invés de bastão, iam repassando um livro. Os familiares também se mobilizavam na torcida, assim obnubilando o significado da data nazista.


O outro ciclo é mais recente: o regime militar de 1964. Fomos obrigados a conviver por duas dezenas de anos com o Estado de exceção. Aí entra a nova tragédia imposta aos meios de comunicação, com a censura prévia. Os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde davam exemplos de resistência, publicando textos de Camões e receitas culinárias nos espaços vetados pelo lápis vermelho dos censores.


Verdade histórica


O noticiário político originário de Brasília enfrentava mil peripécias redacionais. Na abertura das matérias (o lead, no jargão jornalístico) os repórteres localizavam as falas de líderes da Arena. Recheadas de trololós, meras frases vazias em resposta a denúncias do MDB. Desatentos, os censores encantavam-se com as frases dos governistas, plenas de elogios ao sistema, sem perceber nos parágrafos seguintes as críticas oposicionistas, em discursos na Câmara e do Senado.


Isso dava certo e chegou a levar a Brasília o historiador brasilianista Thomas Skidmore, desejoso de conhecer pormenores a respeito. Entreguei-lhe cópias do registro jornalístico de minha autoria, com a síntese de palestra por ele proferida, no auditório de música da Universidade de Brasília. Adverti-o de que, no dia seguinte, no lugar da descrição de sua palestra, ele iria ler mais um trecho de Os Lusíadas.


O Estado jamais deixou de se esforçar e sempre busca estampar com isenção a realidade do dia a dia, no país e no mundo. Em caso de dificuldades, desenvolve esforços sem tamanho para que sua missão não fique incompleta. Nos primórdios do 31 de março e um pouco antes, as comunicações com Brasília foram cortadas e o aeroporto fechado. Logo no restabelecimento dos voos e com a cidade ainda sem telefones, fui instruído para tomar o primeiro avião e levar o noticiário recente e uma retrospectiva de dias angustiantes para uma população sitiada, como o indescritível momento do voo rasante do Caravelle da velha Varig/Cruzeiro sobre o DF. Viera com a missão de levar o presidente Goulart para o exílio no Uruguai.


Esses dados ajudam a desnudar uma verdade histórica: a censura só ocorria em esquemas de exceção. Jamais sob a democracia. O atual episódio vivido pelo Estado fere a liberdade. Estaria faltando apreço à ordem constituída? Em nome de quem rasgam a Constituição? Com a censura, eles aviltam o povo e rebaixam o Brasil.

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Professor, foi repórter e redator do Estado de S.Paulo