Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dossiê sobre uma matéria infundada — 1 

Sobre o conteúdo da matéria intitulada ‘Made in Paraguai – FUNAI quer demarcar terra para paraguaios’ [Veja nº 1999, de 14/03/07], como antropólogo especialista em cultura guarani há mais de vinte anos, conhecedor da realidade destes índios em toda a América do Sul, especificamente a dos grupos guarani do litoral do estado de Santa Catarina, gostaria de esclarecer os seguintes pontos:


Não existe nenhum documento que prove a descontinuidade física e cultural entre os Guarani que ocupavam o litoral brasileiro no período histórico e os guarani atuais. Segundo os Guarani, o repórter José Edward nunca esteve no Morro dos Cavalos, por este motivo a foto que abre a matéria é, na realidade, dos índios da comunidade de Imaruí, localizada no sul do Estado de Santa Catarina.


Augusto da Silva Karai Tataendy nasceu em Mangueirinha, Terra Indígena localizada no Estado de Paraná (conforme pode ser verificado em sua certidão de nascimento e em sua carteira de identidade), sendo, portanto, brasileiro, não paraguaio como afirma o repórter.


Logo, as informações veiculadas pela revista Veja não são verdadeiras. É, então, de se questionar a origem destas informações (pois a fonte não é citada), apresentadas de forma irresponsável ao público como verdadeiras. Solicito o direito de resposta, até então negado pela Veja. A seguir, dossiê detalhado.


***


Made in Paraguai’ (Veja nº 1999, 14/3/ 2007)


Mensagem enviada pelo repórter José Edward Lima à antropóloga Maria Inês Ladeira, do Centro de Trabalho Indigenista – São Paulo:


Prezada antropóloga Maria Inês Ladeira:


Estou fazendo uma reportagem sobre a demarcação da TI Morro dos Cavalos (SC). Como o relatório circunstanciado/laudo antropológico que norteia o processo é de sua autoria, peço-lhe que, por favor, me responda às seguintes questões:


Baseada em que a senhora afirma que a região da Serra do Tabuleiro, especificamente o Morro dos Cavalos é território original dos Mbyá? A historiografia registra que os guarani que habitaram a costa de Santa Catarina foram os Carijó, os quais tinham características bem distintas dos Mbyá e foram extintos no final do século XVII…


A senhora afirma em seu relatório que aquela região é tradicionalmente ocupada pelos Mbyá. Mas estive lá e os indígenas mais antigos me disseram que só mudaram-se para lá, vindos do Paraguai ou da Argentina, no início da década de 1990, estimulados por antropólogos. Assim sendo, sua proposta de criação de uma TI para os Mbyá não vai contra o artigo 231 da Constituição Federal, o qual exige, entre outras coisas, que, para ser declarada indígena, a área tem que necessariamente ser habitada ‘tradicionalmente’ pela etnia em questão?


Não é um contrasenso colocar os indígenas em um local tão acidentado como o Morro dos Cavalos, onde eles não têm sequer condições para plantar e/ou fazer criações? O próprio cacique da tribo, o argentino Artur Benites, me garantiu que tão logo o DNIT libere os recursos referentes às ‘medidas compensatórias’, eles vão comprar terras em outro lugar, pois ali não dá para sobreviver.


Acórdão do Tribunal de Contas da União critica a atuação dos antropólogos que fizeram laudos antropológicos referentes à TI Morro dos Cavalos, inclusive a senhora. Diz, por exemplo: ‘(…) o que se vê no EIA/Rima (e em outros textos sobre a ocupação da área) é uma grande lacuna de matérias de conhecimento. E essa falta de matéria de conhecimento foi suprida pelos antropólogos com matéria de fé (…)’. Orienta também o DNIT a utilizar ‘profissionais ou expertos isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades’. O que a senhora a tem a dizer sobre isto?


A senhora não acha um precedente perigoso entregar oficialmente terras a indígenas originários de outros países? Pelas informações que temos, várias outras famílias de Mbyá têm se mobilizado para deixar o Paraguai e mesmo Missiones, na Argentina, estimulados pela possibilidade de conseguirem não apenas terras, como também benefícios sociais do governo brasileiro (bolsa família, cestas básicas etc).


Em tempo:


a) Tentei falar com a senhora por telefone nos escritórios do CTI em Brasília e em São Paulo. Como me disseram que a senhora estava viajando e não me forneceram o número do seu celular, tomei a liberdade de enviar-lhe as questões por e-mail


b) Peço-lhe que, por favor, me responda com urgência, pois a matéria deverá ser fechada esta semana.


Meu e-mail é o seguinte []


Grato, desde já, pela atenção.


José Edward Lima – Repórter/Revista VEJA


Resposta de Maria Inês Ladeira


Prezado repórter José Edward Lima


Revista Veja


Agradeço sua atenção em tentar me localizar para elaborar reportagem sobre a demarcação da TI Morro dos Cavalos (SC). Estive fora toda a semana passada, incluindo os dias de carnaval, e sem celular. Infelizmente é difícil acompanhar o cronograma apertado da imprensa no momento em que nos contatam, para colaborar em reportagens, tais como a em questão, que merecem toda a atenção e clareza quanto às informações.


A TI Morro dos Cavalos é uma das várias Terras Indígenas Guarani cujos procedimentos administrativos necessários à regularização se encontram paralisados devido à complexidade da situação fundiária envolvendo interesses particulares e políticos próprios das regiões em que estão situadas. Assim, pela relevância do assunto seria necessário discorrer com maior profundidade para esclarecer aspectos que constam nas questões que me foram direcionadas, de modo que a matéria seja informativa ao leitor. Cabe-me apenas, neste momento, fazer breves referências sobre o teor das questões, a título de contribuição.


Vale ressaltar que Relatório de Identificação de Terras Indígenas é um trabalho de natureza diversa à de matéria jornalística, tanto em termos metodológicos quando de objetivos. O primeiro implica em estadias prolongadas no campo e pesquisas minuciosas que acarretam implicações no futuro de comunidades indígenas e o segundo tem a tarefa não menos importante de informar corretamente a população sobre questões relevantes e atuais.


Como o senhor deve ter se inteirado, a elaboração do Relatório deve seguir as normas definidas pela portaria n.º 14 do MJ que regulamenta o parágrafo 6º do artigo 2º do decreto n.º 1775/96. Requer a realização de pesquisas etnográficas que envolvem levantamentos genealógicos, investigação de terminologias, sistemas de parentesco, de formas próprias de organização social, estudos da cosmologia, além de levantamentos da história oral, de registros documentais, do conhecimento da bibliografia especializada, e de procedimentos criteriosos para o levantamento de dados ambientais referentes às áreas de uso da comunidade indígena. Tais estudos devem ser executados por um Grupo de Trabalho constituído por profissionais de áreas diversas com qualificação profissional, formação acadêmica, experiência acumulada de trabalho, coordenado por antropólogo especializado, e, em todas as etapas, deve contar com o acompanhamento e a participação ativa da comunidade em questão. Devo esclarecer ainda que os referidos estudos exigem, não apenas dedicação e tempo da equipe, mas alcançarão maior eficácia e exatidão quando realizados por antropólogo com conhecimentos sobre a língua indígena. Fato que não deve ser menosprezado é que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos foi aprovado pela comissão de análise da FUNAI, tendo o parecer conclusivo publicado no DOU em dezembro de 2002, as contestações então apresentadas foram devidamente refutadas pela FUNAI no prazo estipulado pelo decreto n.º 1775/96, e o processo encaminhado finalmente à aprovação do Ministro com o parecer favorável da assessoria jurídica do Ministério da Justiça.


Como o senhor deve ter constatado no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, produzido entre os anos de 2001 e 2002, a aldeia Morro dos Cavalos, como outras aldeias Guarani, se insere na rede de relações de consangüinidade e de afinidade que integram parentelas e grupos residenciais dispostos em diferentes localidades nas regiões sul e sudeste do Brasil (do RS ao ES), em Misiones na Argentina, no nordeste do Paraguai, o que pode ser verificado a partir dos dados genealógicos coligidos em campo. Estas relações definem o território ocupado pelo povo Guarani, tal como testemunharam seus primeiros cronistas (vide relatório), muito antes das classificações vigentes na etnografia atual, e antes mesmo da definição das fronteiras nacionais que vieram sobrepor-se aos territórios indígenas. Portanto é comum encontrar nas aldeias Guarani (tanto no Brasil como na Argentina ou no Paraguai) indivíduos e/ou famílias que moraram ou nasceram em diferentes Estados nacionais. A complexa dinâmica de mobilidade Guarani não se fundamenta tão rudemente em critérios essencialmente utilitaristas (programas assistenciais, políticas públicas e legislações favoráveis), lembrando que enfrentam dificuldades enormes em todas as unidades administrativas nacionais (províncias, estados, departamentos) estabelecidas no seu território, não sendo atualmente o Brasil um modelo ideal. (São notórios as violências impingidas aos Guarani no Mato Grosso do Sul, em Ocoí no Paraná, em Araçaí em Santa Catarina, além da paralisação dos processos demarcatórios e das ações judiciais no litoral).


Desconsiderar a tradicionalidade da ocupação Guarani na TI Morro dos Cavalos seria o mesmo que ignorar a ocupação tradicional deste povo nas áreas de domínio da Mata Atlântica nas regiões sul e sudeste, onde travaram relações com tantos outros grupos indígenas. É pois um contra-senso reconhecer o povo Guarani, como um povo que manteve idioma, religião e conhecimentos profundos sobre a flora e a fauna da Mata Atlântica, e não reconhecer sua ocupação tradicional em nenhuma das terras que ocupam atualmente. Torna-se sim importante, neste momento, levantar quais os interesses que pesam sobre as terras ocupadas pelos Guarani, uma vez que, de modo extemporâneo, se buscam argumentos de qualquer tipo para tentar descaracterizar a tradicionalidade de sua ocupação em todas elas.


Diversamente do que me foi atribuído, enquanto autora do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, não afirmo ‘que a região da Serra do Tabuleiro, especificamente o Morro dos Cavalos é território original dos Mbya’, e sim que os Guarani ocupam toda a área pleiteada tradicionalmente. Haveria que discorrer sobre termos e conceitos empregados corriqueiramente de modo errôneo que remetem a sentidos e significados distorcidos. O Relatório deixa claro a partir dos depoimentos prestados pelas famílias indígenas que a comunidade elegeu apenas partes vitais das áreas ocupadas por seus ascendentes e antigos moradores, áreas que inclusive transcendiam os limites identificados entre 2001 e 2002. Conforme afirmam os Guarani, antigamente não haviam fronteiras nem a necessidade de definir limites.


Cumpre ainda notar que os povos indígenas não são meros objetos que são colocados em aldeias, ao sabor dos desejos de antropólogos e nem estes possuem interesses particulares nas Terras Indígenas. Ao contrário procuram cumprir uma tarefa, cada vez mais difícil, de ampliar o entendimento e compreensão sobre outros povos e sociedades cujo reconhecimento dos direitos históricos territoriais torna-se imprescindível para continuarem vivendo. A desconsideração de formas próprias de expressão, de organização social e de uso do espaço durante os processos de reconhecimento oficial dos direitos territoriais indígenas conduz a equívocos e a práticas discriminatórias e racistas que resultarão em violências irreparáveis para os índios, como o foram as repetidas invasões e práticas predatórias de suas terras, as sistemáticas expulsões e genocídio cometidos contra os índios desde o início da colonização. Já não é mais possível, nos dias atuais, negar aos índios a condição de sujeitos de sua própria história.


Para um tratamento adequado da reportagem recomendamos a leitura do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, com atenção na carta elaborada pelos índios às autoridades justificando os limites escolhidos; os ofícios da comunidade encaminhados ao Ministro da Justiça, a integra do documento ‘Decisão do TCU sobre Br 101 trecho Morro dos Cavalos’; Análise Jurídica Do Despacho Gab/CJ N.° 175 / 2005 da Consultora Jurídica Substituta do Ministério da Justiça, elaborada pela assessoria jurídica do CIMI. Além disso seria importante a consulta a outros profissionais especializados que acompanham o processo de regularização da TI Morro dos Cavalos e que podem contribuir para a qualidade da reportagem.


Atenciosamente, Maria Inês Ladeira, Centro de Trabalho Indigenista – CTI


Matéria publicada




Índios – A Funai quer demarcar reserva para paraguaios
Made in Paraguai – A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome


10/03/2007


José Edward, da Serra do Tabuleiro (SC)


No período do descobrimento, o litoral de Santa Catarina era habitado por índios carijós, subgrupo do povo guarani. Escravizada pelos colonizadores portugueses, a etnia foi considerada extinta em meados do século XVII, segundo os registros dos historiadores. Essa versão não foi contestada até 1993, quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) adotou a tese – controvertida – de que ainda havia remanescentes dos carijós. A fundação se baseou num estudo publicado dois anos antes pela antropóloga Maria Inês Ladeira. Ela defende que alguns dos carijós teriam se refugiado no Paraguai, onde seriam chamados de embiás. Depois que o trabalho foi divulgado, dezenas de embiás paraguaios (e alguns argentinos) sentiram-se legitimados para invadir o parque ecológico da Serra do Tabuleiro, nas imediações de Florianópolis. Os índios se instalaram no Morro dos Cavalos, um dos pontos mais acidentados da região. Invasão consumada, a Funai planeja transformar o local em reserva indígena. Para brasileiro pagar e paraguaio (e argentino) usufruir.


Muito escarpada, a região é considerada imprestável tanto para a agricultura quanto para moradia. Mas ganhou valor econômico porque o Morro dos Cavalos fica à margem da Rodovia BR-101, que atravessa a maior parte do litoral brasileiro e está sendo duplicada. A pista adicional cortará a área que a Funai quer converter em reserva para os embiás. Com base nisso, a fundação determinou que o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit) construa túneis sob o Morro dos Cavalos para não incomodar os hermanos invasores. A obra foi orçada em 150 milhões de reais. Mais: por exigência da Funai, o Dnit terá de pagar uma indenização aos embiás. Ou seja, os paraguaios (e alguns argentinos) serão compensados já por uma reserva que ainda não foi criada. Como o território que a Funai pretende demarcar está dentro de um parque ecológico estadual, o processo acabou na Justiça. O Ministério Público catarinense tenta impugnar a demarcação. Na opinião de seus integrantes, Maria Inês Ladeira produziu uma fraude e a Funai embarcou nela. ‘Os carijós tinham características físicas e culturais distintas das dos embiás e estão extintos’, afirma o promotor José Eduardo Cardoso.


Segundo o Ministério Público, Maria Inês empenhou-se para convencer a Funai de que os embiás são de origem carijó. Na seqüência, a fundação contratou Maria Inês para elaborar o relatório que instrui o processo de demarcação. O promotor Cardoso aponta falhas metodológicas no estudo que transubstanciou embiás paraguaios (e alguns argentinos) em carijós de ascendência brasileira. Segundo Cardoso, a antropóloga baseou a tese no depoimento de uma única família de paraguaios que chegou a Santa Catarina nos anos 60. Em um trecho do trabalho, ela chega a sugerir que alguns carijós teriam permanecido escondidos no Morro dos Cavalos desde o século XVII. Diz Manoel João de Souza, morador da região: ‘Acho que eles eram invisíveis. Estou aqui há 87 anos e só vi o primeiro índio nos anos 90’.


Ao comentar o assunto, os embiás são de uma objetividade raramente atribuída ao pensamento indígena. ‘Os antropólogos nos incentivaram a vir para cá, dizendo que a terra era nossa’, afirma o paraguaio Augusto Karai Tataendy, que se mudou para o local em 1992. Eles, no entanto, decidiram deixar a Serra do Tabuleiro mesmo que a reserva seja demarcada. Querem usar a indenização do Dnit para recomeçar a vida em um lugar menos inóspito do que o Morro dos Cavalos. ‘Vamos pegar o dinheiro para comprar terras em outro lugar. Aqui não dá para viver’, diz o cacique argentino Artur Benites. Atualmente, os hermanos vivem dos repasses do Bolsa Família. Foi por um triz que não receberam a bolada do Dnit em 2005. O departamento estava prestes a começar a duplicação da estrada e, por conseqüência, a liberar as indenizações, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) declarou que a tese de Maria Inês era inconsistente. Procurada por VEJA para explicar seu estudo, a antropóloga enviou uma correspondência na qual esmiúça as leis e os procedimentos burocráticos da Funai, mas deixa de lado as incongruências históricas e antropológicas apontadas pelos promotores e pelo TCU.


Nos últimos vinte anos, a Funai se converteu numa indústria de reservas. O número de áreas demarcadas saltou de 210 para 611. As aberrações na delimitação de terras para índios são corriqueiras. No Espírito Santo, a fundação classificou moradores de Aracruz de tupiniquins, uma etnia extinta há um século. Para tal, desconsiderou um relatório elaborado por funcionários seus em 1982 que apontava sinais de fraude nesse processo. O documento mostrava como os tais tupiniquins foram inventados por um jornalista e por missionários católicos: ‘Habitantes da região foram pagos para colocar enfeites de pena na cabeça, usar anzóis adornados à moda indígena e afirmar que moravam em aldeias’, registra o relatório. Em outro caso grotesco, a Funai tentou decuplicar uma reserva caiabi do Centro-Oeste do país. A Justiça bloqueou a ampliação porque o presidente da Funai, Mércio Gomes, incitou os índios a invadir a região.


Imbuída de um voraz espírito demarcatório, a Funai é leniente com os índios que vivem em reservas antigas. O exemplo mais eloqüente do fracasso da política indigenista está em Mato Grosso do Sul. As reservas dadas aos caiovás e nhandevas do estado são um cenário de horrores. Nelas, 30.000 índios moram confinados em 40.000 hectares. Nas aldeias, imperam a prostituição, o alcoolismo e, sobretudo, a fome. Desde 2005, 47 crianças caiovás morreram de desnutrição. Neste ano, já houve seis casos. A degradação é tamanha que, por ano, registram-se sessenta casos de suicídio nessas comunidades. O último ocorreu na semana passada. O sociólogo Carlos Siqueira, que chefiou o setor de indigenismo da Funai entre 1997 e 1998, não tem dúvida de que a fundação precisa sofrer uma intervenção. ‘A Funai está sendo regida pelos interesses dos antropólogos e das ONGs, e não pelos dos índios’, afirma Siqueira.


Manifestações contrárias à matéria


1. Maria Inês Ladeira


A desinformação veiculada pela Revista Veja sobre a Terra Indígena Morro dos Cavalos – SC


O processo de reconhecimento oficial da Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos, localizada no estado de Santa Catarina, vem tornar-se caso exemplar das dimensões alcançadas pelos conflitos que têm obstado a regularização fundiária das Terras Indígenas com o recente agravamento da violência racista fomentada contra os índios, e as injúrias e insultos propagados contra antropólogos e instituições especializadas. O crescente agravamento deste caso revela-se diretamente proporcional à inoperância e à protelação dos atos conclusivos do governo federal para a regularização das Terras indígenas no país.


Devemos ressaltar inicialmente que esta Terra Indígena Guarani foi identificada e delimitada com a publicação do Despacho do presidente da FUNAI nº 201 em 17 de novembro de 2002 no Diário Oficial da União (e no Diário Oficial do Estado em 2003), aprovando os estudos realizados pelo Grupo de Trabalho instituído pelo órgão indigenista oficial em outubro de 2001, apresentados no ‘Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos’.


Posteriormente à identificação e à delimitação, o processo de reconhecimento oficial da Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos foi submetido aos procedimentos do contraditório, conforme estabelece o Decreto nº 1.775/96. Terminado o prazo estipulado de noventa dias para a apresentação de contestações, a Funai encaminhou, em outubro de 2003, o processo em pauta ao Ministério da Justiça, com a devida refutação fundamentada às manifestações apresentadas por particulares e por órgãos do governo estadual de Santa Catarina. A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça expediu, então, parecer conclusivo favorável à publicação da Portaria Ministerial Declaratória da Terra Indígena Morro dos Cavalos, compreendendo 1.988 hectares, conforme os limites definidos no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.


Mesmo após o término do prazo estipulado legalmente para a apresentação e a análise de contestações por parte de eventuais atingidos, o Ministro da Justiça, de modo inexplicavelmente extemporâneo, e sem qualquer alegação técnica ou administrativa, cedeu às gestões entabuladas pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina e remeteu, de forma arbitrária, o processo de volta à FUNAI.


Desde 2002 as comunidades Guarani têm solicitado reiteradas vezes ao Ministro da Justiça providências urgentes para o reconhecimento da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em razão das pressões e restrições sofridas. Dado o fato incontestável de os trâmites administrativos constituintes do processo para o reconhecimento oficial da TI Morro dos Cavalos haverem sido cumpridos, atendendo plenamente os requisitos legais, eis que os mesmos representantes de interesses particulares e do governo estadual contrários à demarcação da Terra Indígena, cujos pleitos já tinham sido refutados formalmente na fase do contraditório, pretendem agora barrar politicamente a ação governamental e reverter o processo de regularização fundiária com o recurso pelo qual tentam forjar o desvirtuamento de uma acórdão emitido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em maio de 2005. Tal acórdão dispõe sobre as alternativas técnicas para a duplicação da BR 101 que atravessa a TI, determinando ao DNIT e à FUNAI a realização de estudos específicos para viabilizar a construção de 2 túneis com menor custo e menor impacto à comunidade indígena.


Entre as diversas investidas contrárias a demarcação desta TI, a matéria veiculada pela Revista Veja (edição 1999 de 14 de março de 2007) intitulada ‘Made in Paraguai’ é a mais perniciosa pois multiplicada em escala de propaganda massiva, desinformando eventuais leitores pelo país afora. Reações favoráveis e indignação surgirão, infundidas, infelizmente, com base em mentiras grosseiras covardemente alardeadas.


Não cabe aqui responder às investidas desqualificadas do repórter. Importa apenas, neste momento, informar sobre o desencadeamento dos fatos que antecedem tal publicação.


No final do mês de fevereiro de 2007, um repórter da Revista Veja remeteu, via e-mail, uma série de questões tendenciosas, baseadas em informações e documentos deturpados, apresentados adiante, à coordenadora do GT de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, Maria Inês Ladeira antropóloga do CTI – Centro de Trabalho Indigenista.


Como se pode constatar, a matéria veiculada na revista superou as piores expectativas possíveis, em todos os sentidos: má qualidade, má fé, deturpação inescrupulosa de fontes, preconceitos raciais e étnicos, além de falsidade deliberada em imputar à antropóloga e coordenadora do GT de Identificação da Terras Indígena, a autoria de atos e afirmações inverídicos. O mais grotesco, porém, se não fosse trágico, é o oportunismo do autor, ao tentar tirar proveito da crítica situação fundiária dos Guarani kaiová no MS (que vivem na região de fronteira com o Paraguai), contrapondo-os aos Guarani Mbya e Nhandéva, e a outros povos indígenas citados na matéria. Tal oportunismo está explícito na chamada do artigo: ‘A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome’.


2. Silvio Coelho dos Santos


Senhor Diretor de Redação:


O jornalista José Edward na matéria ‘Made in Paraguai’ (Veja 1999, de 14/03/07) extrapolou todas as regras do bom jornalismo. Sua matéria está eivada de erros históricos e antropológicos além de dar uma visão extremamente estereotipada em relação aos Guarani do Morro do Cavalos, à Funai e aos antropólogos. Assim sendo encareço que V.Sª abrigue minha indignada manifestação.


Sílvio Coelho dos Santos. Professor Emérito da UFSC; Coordenador do Núcleo de Estudos de Povos Indígenas/UFSC; ex-Presidente da Associação Brasileira de Antropologia; ex- Secretário Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; Pesquisador Sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


3. Terra Indígena Guarani de Morro dos Cavalos


13 de Março de 2007, Palhoça, Santa Catarina.


À: Revista VEJA, Editora Abril


Viemos por meio deste informar aos editores e responsáveis da Revista VEJA que toda a comunidade Guarani de Morro dos Cavalos está indignada e transtornada com a reportagem intitulada ‘Made in Paraguai’, publicada na Edição 1999, de 14 de março de 2007, páginas 56, 57 e 58, de autoria do jornalista José Edward Lima, em que é tratado o processo de Demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, Palhoça, Santa Catarina.


Estamos nos sentindo gravemente insultados e desrespeitados pelas calúnias e distorções escritas na matéria que contém racismo e imoralidade, difamando a autenticidade da História Indígena Guarani no Brasil. Nos sentimos também agredidos pela manipulação das informações cedidas em entrevista.


Além de distorcer nosso depoimento e o depoimento de nossos parentes, usaram de inverdades para justificar a reportagem. O repórter não teve o cuidado de conhecer um pouco mais a nossa história, o nosso território e a nossa luta pela terra. Bastaria ler o relatório circunstanciado de identificação e delimitação, que muita coisa iria ficar esclarecida, ele preferiu confiar em fontes pouco confiáveis, essa mesma fonte que há muito tempo vem ameaçando nossa comunidade. O repórter afirma que a TCU declarou inconsistente a ‘tese’ da antropóloga: bastaria o repórter ter lido o Acórdão do TCU pra saber que o referido tribunal informa que não teve acesso a ‘tese’.


Por isso, exigimos o direito de resposta, nos termos do Art. 29 da Lei 5.250, de 9.2.1967, na mesma quantidade de espaço da citada reportagem, para podermos esclarecer à população brasileira a verdade sobre a História Indígena de Morro dos Cavalos.


Caso o pedido não seja atendido, seremos obrigados a recorrer a via judicial para defender nossa honra e esclarecer as verdades dos fatos.


Atenciosamente,


Artur Benite, Cacique


4. Marianna Kutassy


Sr. Editor,


Ao ler hoje a reportagem Made in Paraguai, fui tomada de revolta pela forma como esta foi elaborada. Há ali uma construção claramente xenófoba, além de leviana, o que sempre deve ser rechaçado por uma revista do naipe de VEJA, sobretudo quando se trata de índios guaranis que, como sabemos, vivem em centenas de aldeias situadas no Paraguai, Argentina e Brasil.


Ressalto, entretanto, um aspecto importante: o jornalista José Edward menciona a antropóloga Maria Inês Ladeira e diz que a mesma foi procurada para explicar o seu estudo. Pergunto se o autor da matéria leu esse relatório da terra indígena aprovado pela Funai, uma vez que a conjuntura parece ser bastante complexa, somando questões que envolvem a arqueologia, a história, a antropologia, a duplicação da rodovia BR 101, o parque ecológico da Serra do Tabuleiro, entre outras.


Impossível conquistar a credibilidade junto aos leitores de um texto com tamanha denúncia, quando se apresenta apenas um lado da questão.


Atenciosamente


Marianna Kutassy, Produtora Cultural, Niterói/RJ


5. Adriana Biller


Venho por meio desta repudiar a matéria veiculada nesta revista sobre o povo Guarani em Santa Catarina por abordar de forma preconceituosa e tendenciosa uma importante questão transnacional.


Adriana Biller Aparício, advogada e mestranda em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC


6. Maria Dorothea Post Darella


Sr. Editor,


Lamentavelmente a matéria Made in Paraguai é um total desserviço à informação. Reúne uma gama de dados de forma inconseqüente e irresponsável, desconsiderando inteiramente a complexidade do contexto que envolve Terra Indígena Morro dos Cavalos – Parque Estadual da Serra do Tabuleiro – Duplicação da rodovia BR 101. Como antropóloga que acompanha o processo de regularização fundiária, ressalto alguns pontos, a título de esclarecimento à população:


1) O povo Guarani tem várias denominações de subgrupos, que podem variar no espaço e no tempo, de acordo com os entendimentos dos próprios índios, apontados desde o século XVI. Desta forma, Carijó, Mbyá (e não embiá), Kaiová, Nhandeva, assim como outras denominações, como Tambeopé, Paim, Chiripá, Apapocúva, dizem respeito a este povo, o maior povo indígena do Brasil.


2) O território de ocupação e mobilidade guarani é extenso (e sabidamente não-exclusivo), abrangendo países como o Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Isso está documentado através de pesquisas arqueológicas, históricas e etnográficas. Desta forma, é necessária a compreensão que os índios Guarani possuem percepção territorial distinta daquela das sociedades nacionais, percepção que integra a sua visão de mundo.


3) A antropóloga Maria Inês Ladeira é reconhecida nacional e internacionalmente como autoridade acadêmica quanto aos Guarani, trabalhando há trinta anos junto a suas aldeias. Os próprios índios Guarani qualificam sua atuação como de total credibilidade e competência. Desta forma, alardear que seu trabalho relacionado a Morro dos Cavalos é uma fraude é, no mínimo, leviano e inaceitável.


4) Há registros de sítios e evidências arqueológicas guarani em toda a região mencionada na matéria, bem como registros orais de famílias Guarani que ocupavam a região de Morro dos Cavalos há décadas, algumas de forma ininterrupta e outras temporariamente, antes mesmo da criação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.


5) Os índios possuem direitos relacionados à duplicação da BR 101, que podem ser denominados como medidas mitigadoras deste projeto de desenvolvimento. As centrais estão relacionadas à questão fundiária. Desta forma, não se pode confundir o processo demarcatório da Terra Indígena de Morro dos Cavalos e o processo de aquisição de uma outra área, na qual apenas parcela da atual população de Morro dos Cavalos pretende viver.


6) Uma das citadas fontes – Walter Alberto Bensousan – possui interesses particulares no impedimento da demarcação de Morro dos Cavalos. Em 1996 ajuizou ação de reintegração de posse (2a Vara Federal da Seção Judiciária de Florianópolis-SC), processo que em 2001 foi julgado extinto sem julgamento do mérito, com fundamento no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil.


Atenciosamente,


Maria Dorothea Post Darella, Museu Universitário/UFSC, Florianópolis/SC]


7. Beate Isleb


A VEJA, em sua edição 1999, traz em suas páginas centrais a matéria Made in Paraguai que, no meu entender, é tendenciosa e preconceituosa. Ao que tudo indica aqui no litoral de Santa Catarina, o contexto vivido pelos índios guaranis da área de Morro dos Cavalos é dramático, mas não consegue ser devidamente explanado pela reportagem, o que faz com que a matéria instigue justamente o preconceito contra os índios. Sei que existem várias aldeias guaranis tanto no litoral quanto no interior deste estado, bem como em outros estados do Brasil, estendendo-se aos países Argentina e Paraguai. Este dado, por si, indica que os guaranis devem ter uma interpretação e uma vivência territorial bastante diferente daquela da população não-indígena. Assim que, falar em índios guaranis paraguaios, argentinos e brasileiros parece ser impróprio e leviano.


Beate Isleb, Turismóloga, Blumenau, SC


8. Gelci José Coelho – Diretor do MU/UFSC


O Museu Universitário da UFSC possui pesquisadores nas áreas de arqueologia, história, sociologia e antropologia que, ao se depararem com a matéria Mande in Paraguai (VEJA, edição 1999), a reputaram como absurdamente tendenciosa e preconceituosa. Desta forma, como diretor deste órgão, gostaria de esclarecer que a situação vivenciada pelos Guarani da área do Morro dos Cavalos é tão precária quanto complexa, o que não consegue ser explanado pela reportagem. Ao contrário, o jornalista induz a erros crassos que produzem posicionamentos contrários aos direitos indígenas neste país, o que é lastimável. É preciso
considerar, por exemplo, que existem várias aldeias guarani no litoral e interior deste estado, bem como em outros estados do Brasil, estendendo-se aos países vizinhos Argentina, Paraguai e até recentemente Uruguai, o que comprova possuírem os Guarani uma interpretação e vivência territorial baseada em sua cosmologia. Sublinho igualmente que a antropóloga citada, Maria Inês Ladeira, conta com nosso mais profundo reconhecimento, por sua lisura, competência e atuação há décadas junto aos Guarani.


Gelci José Coelho, Historiador / Diretor do Museu Universitário da UFSC


9. Sergio Eduardo Carrera Quezada


Diretor de Redação:


Sr. José Edward:


Na última edição da revista foi publicada uma matéria intitulada ‘Made in Paraguai’, da autoria do Sr. José Edward –utilizando os subsídios, em termos de informação e dados, do Sr. Walter Alberto Bensousan- na qual é tratado o tema polêmico sobre os processos CONSTITUCIONAIS de demarcação e homologação de Terras Indígenas em Santa Catarina e os obstáculos impostos por alguns que manifestam como proprietários das terras disputadas. Depois de ter lido várias vezes a matéria, não posso deixar de expressar minha indignação e repúdio pela falta de comprometimento jornalístico e imparcialidade contida no texto, assim como pelo desrespeito à população referida, os membros do subgrupo Mbyá, (e não embiás, conforme foram tratados na referida matéria), os quais são denominados como pertencentes à família lingüística e grupo étnico Guarani. O desconhecimento tanto de conceitos jurídicos, antropológicos e históricos, sem contar a forma evidentemente tendenciosa com que foi realizada a matéria, bem como a maneira como foram utilizados os dados e considerando os conflitos fundiários nos municípios catarinenses onde se localizam as aldeias guarani, especificamente Palhoça e a região do Morro dos Cavalos, a publicação desta evidencia a influência política do Sr. Walter Alberto Bensousan, que diz ser um dos proprietários da área onde está situada a aldeia indígena. Evidentemente, os dados foram manipulados de forma que servissem de base para a criação de um estereótipo dos Mbyá frente à opinião pública, taxando-os como ‘hermanos invasores’, ignorando a forma de vida, os costumes e as formas de organização social e territorial deste subgrupo Guarani, apresentando uma versão distorcida das características culturais e criando assim subsídios para a argumentação que visa impedir a continuidade dos processos de homologação de Terras Indígenas.


Ao longo de 2006 tive a oportunidade de conviver com a população Mbyá-Guarani em três aldeias do litoral catarinense (Morro dos Cavalos, Massiambu e Cachoeira dos Inácios), a fim de conhecer os problemas territoriais enfrentados por este grupo perante os conflitos por terras, a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil, a duplicação da BR 101 e o projeto de construção de linhas de transmissão elétrica pela Eletrosul. Como mestre em antropologia social, consegui registrar uma série de dados de campo entre os Mbyá destas aldeias, os quais foram constatados com pesquisas arqueológicas, históricas e etnográficas. O objetivo da carta que aqui apresento aos senhores é de mostrar as carências da matéria jornalística, as inconsistências dos dados expressados pelos informantes, a manipulação das fontes, o desconhecimento dos conceitos jurídicos e antropológicos dentro da política indigenista e a forma tendenciosa com que foram utilizados os dados.


Em primeiro lugar, o termo Carijó foi uma imposição terminológica dada pelos primeiros conquistadores e colonizadores, que foram espanhóis e franceses (e não portugueses, conforme referencia a matéria) para a população nativa que habitava o litoral sul do Brasil antes do século XVI. De forma genérica, o termo Carijó refere-se ao conjunto de subgrupos guarani, cuja população estendia-se pelos atuais estados meridionais de Brasil, o oriente de Paraguai e o nordeste de Argentina e Uruguai, conforme as pesquisas arqueológicas e os registros históricos proporcionados pelos primeiros cronistas dos séculos XVI e XVII (Gonneville, 1504; Solís, 1515; Alexo Garcia, 1512; Cabeza de Vaca, 1541). Na tentativa de atacar a tese de Maria Inês Ladeira que defende a ocupação guarani como parte do território tradicional do grupo indígena, a matéria aqui referida emprega o depoimento do promotor José Eduardo Cardoso, que manifesta, sem nenhum fundamento, que ‘os carijós tinham características físicas e culturais distintas das dos embiás e estão extintos’. O que foi extinto foi o termo Carijó para nos referirmos ao conjunto de subgrupos Guarani, pois este grupo sempre esteve presente, tanto no Brasil quanto nos países vizinhos, e na medida em que foi sendo ampliado o conhecimento acerca de suas parcialidades (Mbyá, Nhandeva-Xiripa-Avá, Kaiowá, Guarayo, Paï Tavytera), passaram a ser reconhecidos a partir de suas próprias classificações e não mais pelas nossas categorias impostas. Dentro desta mesma problemática, o jornalista tenta argumentar que a Funai, por influência de antropólogos e ONG’s, ‘planeja transformar o local [o Morro dos Cavalos, a qual será afetada pela duplicação da BR 101] em reserva indígena’, ao mesmo tempo em que manifesta que a Funai permitiu que o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes ‘construa túneis sob Morro dos Cavalos para não incomodar os hermanos invasores’. Sendo este um dos enunciados mais preconceituosos contidos na matéria, além de mostrar o pleno desconhecimento da organização social mbyá-guarani baseada na mobilidade espacial (sendo esta freqüentemente confundida com nomadismo, pois uma vez que membros do grupo decidem se deslocar, os antigos assentamentos dificilmente são totalmente abandonados), o jornalista também mostra seu desconhecimento sobre a diferença entre Reserva Indígena e Terra Indígena. Os depoimentos proporcionados por Mbyá e registrados no texto referido mostram uma clara manipulação, como por exemplo o depoimento de Augusto da Silva Karai Tataendy, que segundo o autor da matéria afirma ser paraguaio. Meus registros de campo, assim como outras pesquisas, demonstram que Augusto da Silva nasceu em Mangueirinha, Terra Indígena localizada no estado de Paraná, ou seja, que ele é Mbyá e ao mesmo tempo brasileiro, como consta na sua carteira de identidade. O argumento utilizado para caracterizar aos Mbyá como ‘estrangeiros’ e ‘invasores’, além de ser vergonhoso, é inconsistente, pois no Brasil habitam cerca de 4.400 Mbyá. Nas aldeias do litoral de Santa Catarina, a população guarani é de 768 aproximadamente, sendo em sua maioria nascidos dentro de território brasileiro, como foi constatado através do registro de campo.


O objetivo da matéria publicada é de interesse político que beneficia mais aos proprietários particulares que vêem uma porção de seus interesses prejudicados, com uma posição evidentemente preconceituosa e racista sobre uma parte da população BRASILEIRA (os índios no Brasil). Esta publicação é uma afronta direta aos direitos indígenas (por não dizer também a certos processos constitucionais), e fere gravemente os logros alcançados na luta pelo reconhecimento destes direitos e as agências que os apóiam, tentando desvirtuar os fatos e os contextos, influindo uma visão negativa dos indígenas entre a opinião pública, sem contar o desprestígio sobre a atuação de instituições acadêmicas e não governamentais.
Para finalizar, considero que o texto aqui referido carece do posicionamento das pessoas afetadas, principalmente dos próprios Mbyá. A matéria não consta que a precariedade nas aldeias Guarani (assim como da maioria de outras populações indígenas) se deve ao desmatamento desmesurado, a políticas públicas incorretas (incluo também as políticas indigenistas), a pressão da sociedade dominante que historicamente tem contribuído para a desterritorialização dos espaços ocupados pelas sociedades indígenas, e aos interesses de proprietários regionais. Um dos problemas ainda por resolver (e que talvez seja o mais positivo da matéria, pois é um dos principais argumentos) refere-se ao tratamento de populações nativas em fronteiras nacionais. Quando as populações nativas podem servir aos interesses do Estado e da sociedade dominante, então estes são chamados para defender as fronteiras nacionais, como é no caso de populações indígenas que transitam entre as fronteiras dos estados brasileiros de Acre, Amazonas e Roraima, e os países vizinhos, criando ‘milícias indígenas’ comandadas pelo exército brasileiro, por fazendeiros ou garimpeiros regionais na defesa de seus territórios e interesses particulares. Por outro lado, não se pode esquecer que a população de Santa Catarina (assim como dos outros estados do sul do Brasil) foi formada através das políticas de colonização impulsionadas pelo Estado brasileiro a finais do século XIX e inícios do XX, sendo que os registros da presença guarani nestes espaços datam de muitos séculos antes da chegada dos migrantes açorianos, alemães, italianos e outros migrantes europeus. A falta de registros históricos da presença Mbyá-Guarani nos séculos XVIII-XIX se deve a nosso próprio desconhecimento, mas isto não significa seu desaparecimento ou extinção enquanto grupo étnico. Por outro lado, no passado o Brasil já entregou terras para estrangeiros e migrantes, dentro de uma política de colonização que hoje caracteriza à população dos estados sulistas, mesma que hoje reclama ser ‘nativa’ perante grupos que demonstram uma ocupação mais antiga.


Atenciosamente:


Sergio Eduardo Carrera Quezada, Mestre em Antropologia Social, UFSC.


10. Eliana Elisabeth Diehl


Prezados Senhores,


Venho manifestar minha indignação e repúdio à reportagem ‘Made in Paraguai’ sobre os índios Guarani que vivem no Morro dos Cavalos, publicada no n. 1999 do dia 14 de março de 2007. Sou professora da Universidade Federal de Santa Catarina e faço pesquisa na área da saúde nessa comunidade indígena. Lá vivem em torno de 30 famílias (aproximadamente 150 pessoas), sendo que a maioria é nascida no Brasil, mantendo laços de parentesco com índios Guarani residentes em Terras Indígenas do litoral das regiões sul e sudeste, incluindo ainda parentes em Terras Indígenas do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Considerando que a região citada está localizada no belo litoral de Santa Catarina, próxima a Florianópolis e, portanto, com grande potencial para a especulação imobiliária, turística, comercial e industrial, devemos questionar quais são os reais interesses não-indígenas em torno da área.


Eliana Elisabeth Diehl, professora doutora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Departamento de Ciências Farmacêuticas, Centro de Ciências da Saúde, UFSC,
Campus Universitário, Florianópolis, SC.


11. Moreno Saraiva Martins


Gostaria de parabenizar a Revista Veja pela reportagem MADE IN PARAGUAI, publicada na revista de 14/03/2007. Esta reportagem conseguiu jogar no lixo mais de 30 anos de produção antropológica brasileira, feita nas melhores Universidades do Brasil.


Sabemos que os meios de comunicação não são imparciais, mas esconder-se atrás de uma pretensa parcialidade para publicar uma reportagem tão mal elaborada e mal intencionada, feita a partir de uma pesquisa que um aluno de ensino fundamental faria melhor, é um absurdo.
O repórter José Edward ou agiu de má fé, com intenções escusas por trás da reportagem, ou é um péssimo repórter e sugiro então à Revista Veja que o demita imediatamente. Como imagino que essa última opção não seja a que melhor retrata a situação, parece claro que setores que têm grandes interesses em não demarcar terras indígenas no Estado de Santa Catarina ‘encomendaram’ essa reportagem. Um desses setores é a iniciativa privada, que embalada pela especulação imobiliária, têm planos mirabolantes de eco-turismo e coisas do gênero para o local. O outro setor é o próprio Governo do Estado que além de não querer contrariar os interesses do setor de turismo, um dos mais proeminentes de Santa Catarina, ainda se interessa pelos impostos que a exploração da área pode trazer.
Em primeiro lugar: embias e carijós não existem e nunca existiram. Existem sim indígenas da etnia guarani. No século XVI, quando os portugueses aqui chegaram, obviamente não existia nenhum estudo sobre as populações indígenas. Desta forma, a designação das populações nativas era arbitrária, pois os portugueses não falavam as línguas nativas e em geral essas populações não tinham auto-denominações. Assim, é comum encontrar etnônimos pejorativos, quando apontados por etnias rivais, ou senão etnônimos que significam ‘ser humano’, como é o caso de um sub-grupo guarani que é chamado de mbyá (a pronuncia desta palavra usa fonemas que não tem equivalentes em português), que está entre as chamadas parcialidades guarani, e que parece que são os embiás referidos na reportagem. Além dos mbyás, foram citados na reportagem os nhandeva e os kaiowas, duas outras parcialidades guarani.
Os guarani mbyá ocupam pelo menos seis estados no sul e sudeste do Brasil, além de áreas na Argentina e no Paraguai. Poucos locais ocupados por estes indígenas são ideais para uma ocupação tradicional, seja no Brasil, na Argentina ou no Paraguai. Processos históricos de colonização fizeram com que grande parte da população indígena da América do Sul fosse dizimada por guerras, doenças ou fome e a parte sobrevivente foi sumariamente expulsa das terras que tinham qualquer valor para a agricultura ou para especulação imobiliária. Ficaram então reclusos em áreas sem valor para a agricultura, separadas umas das outras por cidades, plantações ou acidentes geográficos. Assim se conformou a ocupação indígena principalmente no sul e no sudeste do Brasil, onde a terra tem o maior valor comercial se comparado com outras regiões. Os guarani ficaram então ilhados em um oceano de ‘civilização’.


Os guarani são conhecidos por seu constante deslocamentos, seja de indivíduos entre aldeias, seja de aldeias inteiras em busca de lugares mais propícios para se viver. Estes deslocamentos já são apontados em cartas de jesuítas dos séculos XVI e XVII como nos ensina Hélène Clastres que estudou os documentos jesuítas deste período. No início deste século Kurt Nimuendaju, eminente etnólogo alemão acompanhou migrações de um grupo guarani, desde o Rio Paraguai, território reconhecido dos guarani, até o litoral de São Paulo. Hoje os guarani continuam se deslocando, por razões que são explicitadas nos trabalhos citados acima e nas centenas de trabalhos posteriores a eles, como podemos ver em estudos bibliográficos sobre o tema feitos por Bartolomeu Meliá e Eduardo Viveiros de Castro, antropólogos de renome nacional e internacional. Estas razões fazem parte do modo de compreensão que os guarani tem do mundo, e que não pode ser comparado com a visão de mundo ocidental.


Assim, se existem guaranis que são nascidos em outros países residindo no Brasil isso se deve ao fato de que eles se deslocam muito entre aldeias. Da mesma forma é possível encontrar guaranis nascidos no Brasil residindo no Paraguai e na Argentina. O que mais importa aqui não é sua nacionalidade, mas seu pertencimento a um determinado grupo, que por razões impostas por nós se chama guarani, pois essa necessidade de auto-denominação veio junto com os europeus, assim como a necessidade de se dividir o espaço em países, fruto da criação do Estado Nação na Europa pós feudalismo. Assim os guarani não são brasileiros, não são argentinos e nem paraguaios. Eles são guaranis. E entender isso é respeitar efetivamente a pluralidade cultural presente aqui no Brasil, coisa que a reportagem da Revista Veja fez questão de anular, colocando questões completamente tendenciosas para confirmar uma tese que serve a interesses próprios de alguns grupos relacionados à questão da demarcação de terras indígenas. A questão importante no caso não é o local de nascimento dos indígenas e sim a possibilidade que eles podem ter de usufruir de um território de maneira tradicional, território esse que estudos arqueológicos mostram com clareza terem pertencidos aos ascendentes das populações guarani atuais.


Sem mais e dados os erros crassos cometidos na reportagem referida, sugiro que a Veja ofereça espaço para que seja publicado um direito de resposta, redigido por jornalistas apontados pela comunidade indígena.


Moreno Saraiva Martins, Mestrando em Antropologia Social no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina


12. Valéria S. de Assis


À redação da Revista Veja,


Escrevo para expressar meu estranhamento e espanto ao ler a reportagem assinada por José Edward. O que mais chamou a atenção é a pouca qualidade do texto jornalístico. É evidente a intenção de desqualificar os índios que vivem em Morro dos Cavalos. Essas pessoas (os índios Guarani), em condições difíceis de vida, e que esperam, pacífica e pacientemente pelo reconhecimento das autoridades e dos poderes nacionais para viverem dignamente, não merecem ser apontadas como coisas ou como estrangeiros (‘hermanos’ ou ‘paraguaios’) como aparece no texto. O jornalista demonstra desrespeito aos índios também ao grafar intencionalmente sua autodenominação como ‘embiás’ em substituição a Mbyá. O jornalista escreveu seu texto sem ter feito a lição de casa com o menor cuidado, ou seja, não pesquisou minimamente o assunto e demonstra isso com grande recorrência de equívocos. Não possui a mínima idéia do que seja tradicionalidade do ponto de vista jurídico ou antropológico. Há muitos povos indígenas que vivem em um território no qual se sobrepõem fronteiras políticas de países vizinhos e não cabe, em tais circunstâncias, identificá-los com qualquer nacionalidade (como é o caso dos Yanomami, seu território está em terras brasileiras e venezuelanas).


Verifica-se que se trata de um trabalho de jornalismo ruim, desqualificado. É algo que evidentemente tenta ter visibilidade ou credibilidade da forma mais antiética possível: agredindo desnecessariamente os índios Mbyá de Morro dos Cavalos e a antropóloga Maria Inês Ladeira. Mais que isso, o jornalista transborda preconceitos, inverdades e racismos dos mais grosseiros. Enfim, um texto muito mal escrito e que destoa da qualidade da revista como um todo. Com isso, o texto cumpre um papel ruim, de desinformar e aumentar as dificuldades já tão grandes que essa população indígena vem enfrentando no sul do país.


Valéria S. de Assis, Antropóloga e professora DFE – CCH – Universidade Estadual de Maringá/PR


13. Silvia Maria de Oliveira


Sr. Editor


A Comissão de Apoio aos Povos Indígenas – CAPI, ONG situada em Florianópolis/SC, vem manifestar seu veemente repúdio à matéria Made in Paraguai, veiculada na edição 1999. Entende se tratar de matéria tendenciosa, preconceituosa, xenófoba, por desconsiderar a complexidade do mosaico relacionado à Terra Indígena Morro dos Cavalos, aos índios Guarani. Outrossim, a CAPI posiciona-se favoravelmente à divulgação de dados sobre populações indígenas quando as fontes possuem credibilidade e competência.


Silvia Maria de Oliveira, Coordenadora da Comissão de Apoio aos Povos Indígenas, Florianópolis / SC]


14. Ismenia de Fátima Vieira


Revolta, repúdio, indignação e todos os outros adjetivos que revelem o sentimento de rejeição a tudo que está escrito na matéria: ‘Made in Paraguai’ veiculada na edição 1999 da Veja. Registro a minha indignação e repúdio ao repórter que escreveu a matéria e a revista por ter publicado uma matéria tão preconceituosa e mentirosa. Basta de perseguição aos Guarani, eles são tão brasileiros quanto o autor da matéria. Os povos indígenas neste país sofrem perseguições dos invasores desde o ‘período do descobrimento’ expressa no início da matéria. Que descobrimento? Invasão dos colonizadores que não se cansam de perseguir os povos tradicionais e expropriar as suas vidas e o seu sossego. A revista Veja está cada vez mais tendenciosa, mentirosa, digna de ser ignorada. A imprensa deve servir para divulgar a verdade, é melhor obter mais informações e produzir matérias respeitáveis. O que acabei de ler foi uma matéria que denigre os índios Guarani e privilegia quem?


Por esse tipo de matéria e por outras, que faz muito tempo que não gasto o meu dinheiro com essa revista.


Respeitem os seres humanos!


Ismenia de Fátima Vieira, Mestre em Educação, Docente no Programa de Formação para professores Guarani, Florianópolis/SC


15. Ana Lúcia Vulfe Nötzold


Faço uso desta ferramenta para manifestar minha surpresa e indignação em relação à matéria veiculada na Revista Veja, edição 1999, sob o título: ‘Made in Paraguai’.


Surpresa e indignação pelo fato de uma revista do porte da Veja publicar matéria tendenciosa e com clara manifestação de parcialidade quando se refere aos assuntos indígenas, demonstrando total desconhecimento e desrespeito à diversidade cultural, quando vivemos num país pluriétnico.


Não bastasse esse fato, o autor da reportagem comete inúmeros outros erros, como em relação à grafia dos sub-gupos guarani, desconhece a mobilidade territorial das populações indígenas e quando os trata por ‘hermanos’ esquece-se que os indígenas já estavam aqui muito antes dos europeus aqui aportarem.


Considero que as matérias para circularem nacionalmente como as matérias dessa revista, seus autores deveriam preocupar-se em esclarecer os fatos e não apenas em fazer matérias sensacionalistas.

Profa. Dra. Ana Lúcia Vulfe Nötzold, Coordenadora do LABHIN – Laboratório de História Indígena, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis SC (cont.)


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[Continua em http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=430JDB010]

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Ph.D, antropólogo, Florianópolis, SC