Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O deputado e a incoerência ética

Instituindo a exigência do diploma, o que contraria o preceito constitucional que determina que o exercício do jornalismo não pode ser limitado, e arrolando assessoria de imprensa como função jornalística, afrontando restrição ética que vigora em todo o mundo democrático, retorna à pauta o projeto que cria a Ordem dos Jornalistas.

A Câmara dos Deputados voltará a analisar mais essa tentativa do sindicalismo pelego, agora por intermédio de um parlamentar, de legitimar a ocupação por jornalistas de cargos no serviço público e na iniciativa privada que por direito pertencem a diplomados em Relações Publicas. E, por estranho que possa parecer, o deputado Celso Russomanno (PP-SP) considera seu Projeto de Lei 5.253/05 um instrumento de defesa do jornalismo e da ética. Poderia parecer uma piada se não fosse trágico.

Em 2002, projeto com o mesmo teor (PL 6.817/02) foi apresentado por Russomano, mas foi recusado pelo Plenário com proposta do Executivo que criava o Conselho Federal de Jornalismo (PL 3.985/04). O novo projeto do deputado, além de criar a OJB, prevê alterações no exercício da profissão de jornalista, com o objetivo de ‘disciplinar os excessos em que incorrem certos profissionais inescrupulosos e indiferentes à ética’. Inescrupuloso e indiferente à ética é seu artigo 38, que estabelece as funções jornalísticas, no parágrafo XII, legitimando a invasão da seara dos RPs por jornalistas – uma triste realidade do mercado brasileiro. Esta lá, ‘XII – assessoria de imprensa ou comunicação social em entidades públicas ou privadas’.

Policial e assessor

Enfim, o aperfeiçoamento da imprensa brasileira preconizado pelo deputado Russomano vai na contramão do que vigora em todo o resto do mundo civilizado, onde assessoria de imprensa é considerada função incompatível com o exercício do jornalismo. Assim está nos códigos de ética dos jornalistas portugueses, franceses, americanos, italianos. Mas, desde a ditadura militar, a restrição foi suprimida dos códigos de ética do sindicalismo pelego, que tratou de promover furiosa ocupação de cargos públicos por jornalistas diplomados, colocando boa parte da classe na dependência do governo. Irregularmente, saliente-se, porque nem mesmo a legislação capenga instituída pelos militares no poder regularizava a invasão do mercado dos RPs pelos jornalistas diplomados brasileiros.

Tanto que o Tribunal Superior do Trabalho (TST), nossa instância máxima trabalhista, considera que as tarefas do assessor de imprensa não se enquadram na descrição das atividades de jornalistas previstas no Artigo 302 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no Decreto 972/69. Essa decisão consta do Acórdão 261.412, de 22/4/98, publicada no Diário de Justiça de 15/5/98, na página 451, e está disponível no portal do Tribunal Superior do Trabalho. Aprovada por unanimidade pela Terceira Turma do Tribunal, o que a transforma em jurisprudência consolidada, transcrita literalmente, a emenda estabelece:

‘Assessor de imprensa não exerce atividades típicas de jornalismo, pois o desempenho dessa função não compreende a busca de informações para redação de notícias e artigos, organização, orientação e direção de trabalhos jornalísticos, conforme disciplinado no artigo 302, parágrafo primeiro, da CLT, Decreto-Lei 972/69 e Decreto 83.284/79. Atua como simples divulgador de notícias e mero repassador de informações aos jornalistas, servindo apenas de intermediário entre o seu empregador e a imprensa.’

Sendo o Brasil signatário dos acordos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o TST não poderia, aliás, decidir diferentemente, alterando funções profissionais de uma categoria para outra, ao seu bel-prazer, para atender a uma irregularidade perpetrada durante o período ditatorial que o país ainda procura superar. Russomano chega a prever, em seu artigo 41, a suspensão do registro do jornalista que ‘IV – passar a exercer, em caráter definitivo, atividade incompatível com o jornalismo’. Normalmente, como é o caso da legislação portuguesa, essa cláusula restritiva arrola, entre as atividades incompatíveis, as de policial e assessor de imprensa. Ao considerar assessor de imprensa jornalista, entretanto, o deputado evidentemente procura burlar o preceito ético que vigora no resto do mundo democrático.

Letra morta

A partir dessa brecha que o deputado tenta abrir nos deveres éticos dos jornalistas, vários artigos da sua proposta soam igualmente incoerentes e impraticáveis. Por exemplo, seu artigo 6º, que estabelece que ‘além das mencionadas no art. 4º, a OJB tem por finalidade pugnar pelo direito à livre informação plural e pelo aperfeiçoamento da Imprensa’. Como um assessor de imprensa, subordinado pelas exigências do cargo à divulgação de imagens positivas do seu cliente, poderá pugnar pela livre informação plural? Alguém imagina que os assessores de imprensa do Tribunal da Justiça do Trabalho poderiam investigar e divulgar as irregularidades do Lalau? Cerca de 20 mil jornalistas que ocupam cargos públicos, segundo cálculos dos próprios sindicatos, consumindo um orçamento equivalente a um Fome Zero por ano, com certeza ficariam devendo à opinião publica a pluralidade de informações e reais contribuições para o bom exercício da imprensa.

Ao estabelecer, no seu artigo 36, que ‘exercem atividades de jornalistas, sujeitando-se pois ao regime desta Lei, além do regime próprio a que se subordinem, os assessores de imprensa e/ou comunicação social de órgãos da Administração Pública, inclusive dos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista’, o parlamentar dota esses profissionais de prerrogativas que extrapolam as concedidas pelos estatutos dos servidores públicos. Cria uma área de conflito de interesses, e por isso o jornalismo é incompatível com assessoria de imprensa, que certamente penderá para as disposições estabelecidas por quem paga para ter suas informações divulgadas, no caso, o próprio governo por intermédio de seus prepostos no Executivo, nas instituições publicas e nas estatais.

Mas o deputado insiste, em seu artigo 48, em que ‘a relação de emprego público ou privado, na qualidade de jornalista, não retira nem reduz a independência e a isenção técnica e profissional inerente ao Jornalismo’. Obviamente, mais um texto candidato certo a letra morta no âmbito do serviço público. Assim como os dois graciosos parágrafos do artigo 53, que estabelecem, insistindo na informação plural, que ‘§ 1º, O jornalista, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância. § 2º, Nenhum receio de desagradar quem quer que seja deve deter o jornalista no exercício da profissão’. Assessor de imprensa independente e sem receio de desagradar ao patrão num país sem nenhuma proteção ao emprego coloca-se entre as mais hilárias fantasias que ordem alguma poderá fazer valer na pratica.

Lalau mostra as contas

Alguém, em sã consciência, poderá imaginar um assessor de imprensa do governo fazendo valer os direitos estabelecidos, por exemplo, no artigo 55? Está na proposta de Russomano que são direitos dos jornalistas:

‘II – recusar-se a realizar trabalho que afronte a lei, a ética profissional ou, ainda, suas convicções pessoais; III – ter liberdade de acesso e obtenção de informações junto a repartições públicas, autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, podendo examinar, obter cópias ou tomar apontamentos de documentos e autos de processos judiciais, findos ou em curso, desde que não estejam sob o regime de segredo de justiça, e de processos administrativos findos ou em curso; IV – examinar em qualquer repartição policial autos de prisão em flagrante, de inquérito, diligência ou sindicância, findos ou em andamento, mesmo que estejam sob decreto de sigilo, podendo obter copias ou tomar apontamentos’.

Este último é uma gracinha que deixará os assessores de imprensa do Executivo na ridícula situação de enfrentar as restrições de sigilo impostas pelos seus patrões.

Russomano continua arrolando entre os direitos dos jornalistas:

‘V – ingressar livremente, para colher informações, em qualquer recinto ou edifício em que funcione repartição pública, inclusive autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, e sala de sessões dos três Poderes da República; VI – dirigir-se às autoridades públicas nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário ou audiência previamente marcados, observando-se a ordem de chegada; VII – permanecer, sentado ou em pé, e retirar-se independentemente de licença, de quaisquer dos locais mencionados no inciso V; VIII – ser tratado de forma compatível com a dignidade do Jornalismo e condições adequadas ao seu desempenho por autoridades e servidores, de qualquer Poder, nível, órgão ou entidade, estatal ou paraestatal; IX – ter respeitada, em nome da liberdade de informação e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas, devendo qualquer busca ou apreensão ser autorizada por magistrado e acompanhado por representantes da OJB’.

Dá para imaginar um assessor do Lalau pedindo para examinar as contas das obras do Tribunal de Justiça de São Paulo e distribuindo um release informando à sociedade do desvio de centenas de milhões de reais? E, quando irregularidades do gênero forem denunciadas, a Ordem punirá os assessores que não exerceram seus direitos e não fiscalizaram e divulgaram as irregularidades cometidas por seus patrões?

Preceito afrontado

Não se pode deixar de considerar, também, que os jornalistas que exercem assessoria de imprensa, principalmente os do governo, estão atrelados a estruturas político-partidárias que lhes dá considerável poder de controle sobre a categoria no jogo democrático. Tanto que hoje controlam a maioria dos sindicatos e a própria Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) entidades que lutam para legalizar as atividades de assessoria de imprensa por jornalistas diplomados, em confronto direto com o Conselho Nacional de Relações Publicas, que considera aqui, como no resto do mundo civilizado, que esta é uma função deles.

Russomano, nas suas justificativas, alega que ‘é inegável o potencial lesivo da imprensa, notadamente em relação à honra pessoal’. Reforça e até se refere, no mesmo parágrafo, à preocupação manifestada pelo governo quando apresentou o rejeitado projeto do CFJ, quando o Executivo defendeu a necessidade de ‘criação de um órgão disciplinador da honrada e laboriosa classe, a qual tantos e tão assinalados serviços tem prestado à coletividade, não obstante os excessos em que incorrem certos jornalistas inescrupulosos, indiferentes à ética da profissão.’ Ao legitimar seus assessores como jornalistas e, por conseqüência, entregar o controle da Ordem a eles, já que nenhum grupo independente conseguiria enfrentar a fabulosa máquina empregadora do governo, Russomano procura estabelecer um instrumento abominável de controle da imprensa, um mecanismo antiético e imoral que ameaça um dos mais sagrados direitos do homem, sustentáculo de todo regime democrático, o da liberdade de expressão.

Por conter tantos princípios contraditórios, inclusive restabelecendo um diploma que deixou de ser considerado obrigatório por decisão judicial, pois afronta o estabelecido em preceito constitucional, esse projeto merece certamente ser engavetado, como o foi o do CFJ. Ou violentamente corrigido, retirando de seu bojo a autorização implícita para jornalista trabalhar em assessoria de imprensa, respeitando os direitos dos RPs, punindo e cassando o registro de jornalista daqueles que o fizerem, considerando desrespeito à ética o acúmulo das duas funções. Sem isso, não passará.

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Jornalista