Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O peso de uma bolinha de papel

A construção da notícia é aprimorada com requintes semelhantes a um roteiro cinematográfico. Tal qual em uma novela, há as presenças definidas do narrador, do mocinho, dos vilões da história e das testemunhas. Outra semelhança é a figura oculta de um autor da história, o qual define o que ela irá provocar em quem a presencia. Assim o foi com a reportagem veiculada no Jornal Nacional, da Rede Globo, na última quinta-feira (21/10), a respeito do fato envolvendo o candidato José Serra (PSDB) e o objeto atirado em sua cabeça.

Para quem acompanha o atual cenário político brasileiro, ficou claro o rumo tomado pelo telejornal com a apresentação de tal notícia. Não foi a simples ocorrência do candidato tucano e a dita bolinha de papel atingida em sua cabeça a razão da relevância da notícia, mas sim, uma junção de fatores. O lamentável comentário feito pelo atual presidente da República horas antes da veiculação da reportagem apenas deu mais força ao que a edição do Jornal Nacional pretendia.

A notícia possui características de uma matéria veiculada em programas jornalísticos como o Fantástico, da mesma emissora. Quem trabalha em jornalismo há de confirmar a anormalidade de uma reportagem tão longa em um telejornal com menos de uma hora de duração, recortado com blocos de propaganda de cinco minutos cada, aproximadamente. Sete minutos reservados para uma notícia que deixou de lado outros assuntos mais importantes à sociedade como um todo.

Imagens discutíveis

O referido telejornal é conhecido por ser um dos mais antigos ainda em execução. Talvez por isso seja um dos mais importantes. Telespectadores de várias classes sociais, culturas e credos diferentes consomem as notícias deste noticiário. Inclusive de ideologias diferentes. Mas os petistas não tiveram qualquer chance de ver algo que gostariam, até porque foi uma parcela deles que deu embasamento para o veredicto alcançado pelo Jornal Nacional. Serra é vítima e sofre com os opositores que o atacam sumariamente. E foi agredido. Especula-se que as armas foram uma bolinha de papel e um rolo de fita adesiva. Armamento ‘perigoso’ que nem os criminosos mais poderosos acreditavam como sendo fundamentais para dar tanto destaque a um assunto.

A candidata oponente a Serra na corrida eleitoral, Dilma Rousseff, também foi vítima de ataques. Munidos de balões de água, indivíduos descontentes com a popularidade da petista atiram-lhe os objetos. Tal notícia, porém, não recebeu tanto destaque. Nem deveria. Afinal de contas, os políticos sabem dos riscos que correm em passeatas. O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy, na década de 1960, deveria ser um exemplo. Mas o corpo-a-corpo é fundamental para angariar mais votos. Dilma, porém, não precisa disso. Ancorada na popularidade de Lula que, descaradamente a apoia, Dilma já tem muitos votos garantidos, vindos do assistencialismo barato que em nada auxilia o povo brasileiro. Mas a questão presente neste artigo não é esta.

Quando se pensava que o jornalismo era uma das profissões com mais rivalidade entre seus pares, eis que a ferida mais uma vez é escancarada. A equipe jornalística da SBT é posta em cheque na reportagem feita pela emissora global. A imagem que o cinegrafista da emissora de Sílvio Santos fez não é crível. Pelo contrário. É julgada como improcedente. Mais uma vez, a Rede Globo querendo mostrar sua superioridade aos brasileiros que ainda confiam nela. A discrepância é que as imagens utilizadas pelo Jornal Nacional para comprovar a sua tese são tão discutíveis quanto aquela veiculada pelo SBT.

O que significa corpo-a-corpo?

Usando imagens de um repórter da Folha de S.Paulo feitas por um celular, o telejornal tenta explicar o que seria a ‘verdade’. Uma imagem estremecida, irregular e de baixa qualidade é colocada ao ar para dar embasamento à hipótese levantada pela emissora, de que outro objeto teria sido lançado no candidato tucano. O que fica claro, porém, é que não há como verificar o que seria. Mesmo se a imagem fosse transmitida em câmera lenta os telespectadores não iriam identificar o tal objeto não identificado.

Um comparativo entre cenas é feito, tal qual um retrato falado de um criminoso de alta periculosidade. Após isso, o perito Ricardo Molina é acionado para dar um laudo sobre as imagens. Em sua página pessoal, o profissional apresenta como se fossem troféus os casos mais importantes por ele investigados. Mortes como a de PC Farias e o assassinato da adolescente Eloá Pimentel foram alguns dos fatos analisados. Agora, a bolinha de papel de Serra também ganha destaque. A sua análise, porém, é digna de ser mote para chacotas:

‘São dois eventos completamente diferentes: um evento bolinha e outro evento rolo de fita. Uma bolinha de papel é um objeto muito leve. Tem toda a aparência de ser uma bolinha de papel porque ele é disforme, não tem forma definida, exatamente como uma bolinha de papel. E outra coisa: objetos leves, quando batem, rebatem quase com a mesma energia com a qual ele se projetou. Então a gente vê isso perfeitamente. Ao passo que o evento fita tem um núcleo rígido e bate exatamente de lado, como a gente vê na imagem. Com certeza absoluta houve um segundo momento, são dois eventos completamente separados. Um evento é uma fita, a gente vê que é alguma coisa redonda, com uma circunferência central. Ela bate na região superior da cabeça, frontal superior. Quer dizer, é completamente diferente do evento bolinha. O evento bolinha bate de um lado e a fita, do outro.’

Até este momento, os telespectadores mais críticos e sedentos por uma informação consistente devem ter se perguntado: ‘Qual a importância do fato?’. Nem os critérios de noticiabilidade ensinados nas academias de Jornalismo conseguiriam explicar a razão de tanta ênfase para algo irrelevante. Não que a agressão ao Serra seja imprópria. Pelo contrário. Não há explicação para usar a violência quando o processo eleitoral poderia ser mais democrático, limpo e indolor.

A reportagem utiliza, ainda, o depoimento do próprio agredido que narra as outras supostas agressões sofridas, como ‘… empurrões, raspões de bandeira’ e um ‘objeto mais pesado’, identificado por Molina como possivelmente uma fita adesiva. Será que o candidato tucano não entende o que significa corpo-a-corpo? Não há como sair ileso em uma passeata com a quantidade de pessoas presentes.

Rede Globo mostrará o poder?

Após o incidente, a notícia ganhou repercussão internacional. Não por sua importância, mas pela visibilidade alcançada. Nas redes sociais, como o Twitter, o fato virou piada. Até perfis da bolinha de papel foram criados para gerar discussões a respeito do tema. Isto, a equipe do JN não poderia prever. Diferente de décadas passadas, quando a televisão, os jornais e as revistas eram fontes exclusivas de informação, agora o público dispõe de outros meios, interagindo e expondo seu ponto de vista.

A notícia poderia ter a mesma quantidade de tempo, os mesmos autores, mas uma ótica totalmente distinta. Poderia apresentar à população os riscos do uso da violência e o ônus acarretado ao processo democrático, os ânimos acirrados por conta dos últimos dias até o segundo turno, explorar não só a agressão contra José Serra, mas também a sofrida por Dilma. Enfim, a notícia poderia ter atendido aos anseios das parcelas interessadas no tema política, sejam os simpatizantes do PT, sejam do PSDB e demais partidos coligados de ambas bandeiras, além daqueles telespectadores que simplesmente não se sentem representados por nenhum dos dois candidatos.

Nessas horas reflete-se sobre o real papel do veículo informativo. Com a utopia pregada por eles de que ainda existem qualidades como a imparcialidade e isenção, transmite-se a ludibriosa sensação de que há, de fato, a menção da verdade. No entanto, algo só é verdadeiro dependendo do ponto de vista de seus interlocutores. Era preferível o posicionamento claro favorável a um ou outro candidato, como o caso da revista CartaCapital. Assim como na eleição, é o público quem decide se irá ou não acreditar no que é dito pelo jornal X ou Y. Mas infelizmente ainda há as empresas jornalísticas que se dizem detentoras da verdade. O fato, porém, é que a Rede Globo não possui a mesma popularidade de antes. Mas talvez seu trabalho surta resultado.

Caso Serra seja o vencedor no dia 31 de outubro, sua capacidade será questionada. Talvez a fatídica bolinha de papel tenha um peso maior, garantindo-lhe força. E, assim como vinte e um anos atrás, a Rede Globo mais uma vez mostrará o poder que ainda lhe resta sobre os rumos desse país.

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Jornalista, Florianópolis, SC